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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Sob o olhar de Teixeira Coelho, "A semana de arte moderna de 22"


'O Ovo ou Urutu' (1928), de Tarsila do Amaral: em sintonia com Oswald de Andrade

SEMANA DE ARTE MODERNA de 22


22 e o final (feliz) da arte brasileira

Teixeira Coelho (O Estado de S.Paulo, 11/2/2012)

Por hábito cultural, a Semana de 22 costuma ser vinculada ao surgimento da arte realmente brasileira. De passagem, não o é para o cenário internacional da arte. Os manuais internacionais, assinados por desconhecidos ou estrelas como Hal Foster e Rosalind Krauss, ignoram a Semana: para muitos deles, a arte brasileira só começa com Lygia Clark e Hélio Oiticica. Dizer que propor algo assim é dar sinal de preguiça mental, preconceito ou viés geopolítico resolve pouco. Pior é que sob um aspecto, têm razão, sem tê-la de todo.

Entendida em sentido estrito como aquele evento de 22, ou em sentido amplo de modo a incluir, antes de 22, Anita Malfatti, e, depois, Tarsila, a Semana não marcou o início da arte brasileira. Marcou seu início e seu concomitante fim. Antes da Semana, a arte aqui feita, agora vista com os olhos da Semana, tinha pouco mais do que um valor cultural (i.e., local), não um pleno valor artístico. Quando o cenário mundial já havia conhecido o impressionismo, o cubismo, o suprematismo e o início da arte concreta, o panorama brasileiro continuava o das belas-artes arcaicas. A Semana mostrou, com atraso, que o anterior era um modelo esgotado que existira apenas como cultura. Mas, as propostas e alcance da própria Semana foram limitados, mesmo porque aquilo que a Semana antropofagou do Moderno europeu para compor sua “brasilidade” já estava corroído quando ela o devorou. E tanto que, pouco depois, seus expoentes, em particular suas duas expoentes, no feminino, a abandonaram e retornaram a uma secundária ordem pré-Semana, de leve atualizada.

A Semana não marcou o início da arte brasileira, mas seu fim. Seu início e fim. Sobretudo como programa dirigido de cultura nacional, supostamente convocado por um território e uma nação. No lugar do que destruiu, colocou pouco mais do que uma possibilidade: era o que lhe permitiam suas posses estéticas. O indício externo mais claro da potência de uma proposta está em seus desdobramentos. A da Semana não se desdobrou. Dobrou-se sobre si mesma. E quando chegam os anos 50 com a primeira arte aqui feita que de fato estava mais próxima das vanguardas mundiais, as heranças de 22 já quase haviam virado pudim, como sugere Regina Silveira em seu Pudim de Arte Brasileira. Hoje, nos centros acadêmicos e de pesquisa dominantes, no Norte, se diz que o século 21 está deixando de ver as antigas vanguardas latino-americanas (atenção para esse rótulo) do século 20 como mero reflexo das vanguardas europeias, quer dizer: como atraso. Hoje, continuam esses centros, descobrem-se naquelas vanguardas sulinas do século 20 - das quais, se presume, a Semana fez parte - “originais sinais de identidade própria”.
É típico das engrenagens universitárias e de pesquisa descobrir, a cada tanto, novas realidades ali onde nem sempre estavam. Isso tem o nome de revisão crítica e é o que responde, por exemplo, pela invenção de uma História da Arte Brasileira Que Começa e se Condensa (e Talvez se Esgote) em Lygia Clark e Hélio Oiticica, outro estrabismo da ótica global às vezes replicado pela brasileira. E quando não é o mecanismo universitário ou de pesquisa que o exige, é o mecanismo do mercado, ao qual aquele está associado apesar de, para a plateia, posar como o grande denunciante do segundo.

Há sinais de identidade própria nas primeiras obras de Tarsila? Sim. Eram originais? Para o Brasil, de início sim. Mas, se os novos centros hegemônicos da arte parecem agora jogar uma boia na direção da Semana, sem pensarem nela ou só nela, de modo a resgatá-la do limbo, em seguida eles a despejam na vala comum de uma certa arte “latino-americana” sem que ninguém envolvido na operação pareça lembrar-se de que esse conceito ideológico, errático e pegajoso, nada mais foi do que um truque neocolonialista da França de Napoleão III para tentar unir sob seu controle os países da cultura do Lácio e pô-los contra os da cultura anglo-saxã, mais adversários da própria França que do restante das Américas. Se a Semana tem algo a seu favor foi que não se diluiu, naquele instante, na geleia geral latino-americana - de resto então inexistente e na qual agora a querem colar.

Mas, voltando ao ponto: a Semana não marcou o começo da arte brasileira. Como não teve descendentes, marcou seu fim. Seu começo e fim. O que está bem. O ambiente provinciano da arte nas primeiras décadas do século 20 brasileiro dificilmente poderia sobreviver ao Novo Mundo pós-2.ª Guerra Mundial. Não sobreviveu. Quando a arte concreta e a abstrata se instalaram no país a partir dos anos 50, as propostas da Semana já eram o passado. A Semana não preparou as décadas de 50 e 60. A História o fez.
E quando chegaram os concretos e os neos, os não objetos de Lygia e os penetráveis de Oiticica, não foi a “arte brasileira” ou “realmente brasileira” que com eles chegou; nesse momento, a cena da arte no Brasil já estava no depois da arte brasileira: já estava na era de uma arte que passava a falar em pé de igualdade com a arte mundial, cada vez mais no momento mesmo em que as novas ideias se geravam e não 20 ou 30 anos depois. A questão da arte brasileira que a Semana se colocara já estava resolvida. A Semana, culturalmente, teve seu papel: fez surgir a arte brasileira e no mesmo gesto a enterrou. Um grande feito.

A cada dez anos se comemora a Semana. É uma efeméride. Se não era, aquela arte agora, sim, virou cultura. Mas, o que se comemora? Em 1952, Lévi-Strauss escrevia que era tolice, e inútil, preservar um conteúdo do passado e que o mais importante, se esse conteúdo fosse prezado, era preservar as condições que lhe deram origem. No caso da Semana, as obras serão preservadas, claro. Mas, nem seu conteúdo, nem, menos ainda, suas condições de surgimento (as do atraso) são para preservar-se. A arte de agora quer estar longe daquilo. E está. Olha-se demais para o espelho retrovisor, neste país. Tem mais coisa pela frente. Mais interessante. E mais perigosa.



 Teixeira Coelho é curador do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e autor de 'O Homem que Vive' (Iluminuras), entre outros trabalhos.

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