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quinta-feira, 30 de maio de 2019

Questões com gabaritos da ESPM.



Texto para as questões de 61 a 64:

As minhas traições

SOU UM traidor. Sou um hipócrita. Não tenho defesa. Nem perdão. Mas guardar segredo é pior que partilhá-lo. Partilho.
Imagine o leitor: eu, num círculo de amigos literatos, discutindo as últimas novidades da “rentrée”. Subitamente, alguém fala sobre o futuro do livro. E elogia as qualidades do livro eletrônico.
É nesse preciso momento que eu faço cara de nojo, limpo o suor da testa com meu lenço de renda e disparo um “jamais!” que faz tremer o salão. O meu mundo é o mundo de Gutenberg: o mundo arcaico do papel e da tinta, não de “pixels”, “bits” e outras barbaridades linguísticas. Livro eletrônico? É como fazer amor com uma boneca insuflável.
“Um livro é um livro”, disparava eu, em conhecido clichê. Nada substitui o objeto físico que transportamos, dobramos, sublinhamos. Tocamos. Cheiramos. Por vezes, rasgamos ou queimamos. A ideia de ler um romance, uma biografia, um mero ensaio em suporte eletrônico chegava para cobrir a minha costela conservadora de um horror herético. Nem morto.
Mas então aconteceu: uma oferta familiar em dia de aniversário. Bateram à porta. Entregaram a encomenda. Era o famoso Kindle da Amazon, com capa de pele, bonitinho. Perigosamente bonitinho. Farejei o bicho com desconfiança primitiva. Cocei o crânio com pasmo neandertal e senti-me um dos macacos de Stanley Kubrick, na sequência inicial de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”.
Como se um objeto estranho tivesse vindo diretamente do futuro. Por milagre não quebrei o aparelho com a força das minhas ossadas. Um livro eletrônico era aquilo? “Jamais, jamais”, gritava a minha pobre consciência.
Os dias passaram. O objeto, a um canto, mendigava a minha atenção sempre que passava por ele. “Jamais, jamais”, repetia ainda. E sempre com menor convicção.
Uma tarde, aproximei-me. Tentei ignorá-lo, lendo ostensivamente as “Páginas Amarelas”. O objeto soltou um suspiro de tristeza, quem sabe de abandono. E eu, com caridade cristã, decidi dedicar-lhe dois minutos de atenção, não mais. Liguei o Kindle. Com enfado, fui lendo as instruções. E, por cada página lida, a pergunta mefistofélica: experimentar nunca fez mal a ninguém, certo? Experimentei. Diretamente do site da Amazon, fui importando livros grátis. Os clássicos gregos. Os clássicos romanos. Algum Maquiavel, algum Hobbes, algum Swift. Os pensamentos dePascal. Uma edição completa das peças do bardo. Tudo a preço zero. Em 60 segundos, a Biblioteca de Alexandria viajava até minha casa. O meu entusiasmo começava a ser perigoso. Embaraçoso. Numa tarde, descarregara 50 livros. Outros 50 vinham a caminho.
E, pior, já começara a ler um: a autobiografia de Tony Blair, que comprei a preço reduzido. Lia. Inacreditavelmente, sublinhava. Mais inacreditavelmente ainda, escrevia notas. Aquilo não era um livro. Era melhor que um livro. Que foi mesmo que eu disse?
Hoje, levo uma vida dupla. Em público, passeio os meus grossos volumes da “Enciclopédia Britânica”, em gesto de resistência ao mundo virtual. Finjo. Quando me falam nas virtudes do Kindle, ou do e-book, as minhas gargalhadas são jocosas, ofensivas, delirantes. Mas são também forçadas e encenadas: chego em casa e chamo logo pelo meu Kindle como quem chama pelo gato. E ele vem, pronto para miar centenas e centenas de obras-primas. Se um dia a casa arder e eu estiver em estado delirante, o leitor já sabe o que significa “Salvem o gato! Salvem o gato!”.
Moral da história? A internet foi a primeira grande revolução da minha existência literária. Mas o livro eletrônico será a segunda ao introduzir a mais importante divisão intelectual da vida.
Haverá sempre livros que desejarei ter; e “ter” no sentido tangível do verbo: como objetos físicos, artísticos, existenciais. Nesse sentido, as livrarias continuarão a ser os únicos templos laicos que frequento com religioso fervor. Mas depois existirão os livros que quero ler. Simplesmente ler. Não amanhã, ou depois, ou um dia qualquer. Mas hoje. Agora. Já. O sonho de qualquer leitor curioso, insaciável, ditatorial.
Regresso ao início: sou um traidor. E no dia em que os meus amigos literatos, cansados de minhas mentiras, vierem buscar-me para a fogueira, nada peço em minha defesa. Espero apenas que poupem o gato.

(João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo, 05/10/2010)

rentrée: em francês, regresso, retorno, reentrada.
herético: relativo a ou que envolve heresia.

QUESTÃO 61 - A traição ou a hipocrisia que o narrador assume no início do texto estão ligadas ao fato de:

a) guardar segredo de sua visão preconceituosa sobre o livro eletrônico.
b) não  revelar  para  os  amigos  literatos  sua  aversão  ao “e-book”.
c) substituir definitivamente o livro tradicional de papel pelo livro virtual.
d) ter uma postura de herege ante o livro eletrônico, não reconhecendo as qualidades deste.
e) render-se, depois de tantas críticas e resistência, aos atrativos do “Kindle”.

QUESTÃO 62 - A frase que expressa um conceito paradoxal é:

a) “para cobrir a minha costela conservadora de um horror herético.”
b) “Cocei o crânio com pasmo neandertal...”
c) “Hoje, levo uma vida dupla.”
d) “as livrarias continuarão a ser os únicos templos laicos que frequento com religioso fervor.”
e) “Espero apenas que poupem o meu gato.”

QUESTÃO 63 - Ao longo do texto, o narrador se mostra avesso ao “Kindle” (livro eletrônico). O fato que explica sua primeira alteração de postura transparece em:

a) “mendigava minha atenção”
b) “O objeto soltou um suspiro de tristeza”
c) “com caridade cristã”
d) “experimentar nunca fez mal a ninguém”
 e) “Salvem o gato!”

QUESTÃO 64 - Sobre a frase: “Um livro é um livro”, pode-se afirmar que é um exemplo de:

a) preterição, por tratar de um assunto ao mesmo tempo que se afirma que será evitado.
b) aforismo, por se tratar de uma sentença breve e conceituosa, uma máxima.
c) tautologia, pelo fato de sujeito e predicado serem expressos com o mesmo termo e mesmo conceito.
d) lugar-comum ou chavão, por expressar um argumento ou ideia já muito conhecida ou repisada.
e) pleonasmo vicioso, pelo fato de a frase expressar um conteúdo redundante.

Texto para as questões de 65 a 70:

A massacrante felicidade dos outros

            (...) Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: “Eu espero / acontecimentos / só que quando anoitece / é festa no outro apartamento”.
Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são - ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.
As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim.
Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados. Pra consumo externo, todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada / todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”. 
Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta.
Nesta era de exaltação de celebridades - reais e inventadas - fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça. Mas tem. Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. (...) Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está sentada no sofá pintando as unhas do pé?
Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista. As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento.

(MARTHA MEDEIROS, jornalista e escritora, colunista do jornal "Zero Hora" e de "O Globo")

QUESTÃO 65 - Todas as metáforas espaciais usadas no texto estão no mesmo plano semântico, exceto:

a) “outros apartamentos” b) “grama do vizinho” 
c) “em algum lugar”        d) “mesmo barco”           e) “festa lá fora”

QUESTÃO 66 - Os versos de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa): “Nunca conheci quem tivesse levado porrada / todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo” confirmam ironicamente:

a) o sentimento de rejeição sofrido pelo indivíduo ante a felicidade contagiante da sociedade.
b) a imaginação fértil da maioria das pessoas em relação ao sucesso e felicidade alheios.
c) a comemoração, por toda a sociedade, do próprio êxito financeiro e amoroso.
d) a exaltação do triunfo das pessoas ante as adversidades da vida.
e) a ocultação, por parte do ser humano, de suas angústias, aflições ou fraquezas.

QUESTÃO 67 - As frases interrogativas no penúltimo parágrafo são:

a) parábolas que querem provocar no leitor uma reação mais vibrante em relação à vida.
b) perguntas retóricas que questionam os estereótipos vigentes relacionados à felicidade.
c) alegorias que buscam uma postura mais crítica do leitor para os modelos de felicidade.
d) monólogos interiores que revelam as dúvidas da autora sobre a melhor forma de felicidade.
e) solilóquios que extravasam de maneira ordenada e lógica os pensamentos e emoções da autora.

QUESTÃO 68 - “Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista.” Levando em conta o texto, o termo em destaque possui melhor definição em:

a) que produz sensação intensa.
b) que desperta viva admiração ou entusiasmo; espetacular; formidável.
c) que há divulgação e exploração, em tom espalhafatoso, de matéria capaz de emocionar ou escandalizar.
d) que há surpresa ou grande impressão devida a um acontecimento raro, incomum.
e) que produz fato de grande comoção moral; emocionante.

QUESTÃO 69 - No texto, aquilo que pode ser considerado “falsos holofotes” são os(as):

a) “amigos leais” b) “nossas músicas” c) “livros” d) “paixões e fortunas” e) “estes versos”

QUESTÃO 70 - O texto todo faz alusão ao recorrente jogo entre ser e parecer praticado pela sociedade. A passagem que não expressa diretamente esse enfoque é:

a)  “Passei minha adolescência com esta sensação...”
b) “é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias.”
c) “Os notáveis alardeiam muito suas vitórias...”
d) “Pra consumo externo, todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores.”
e) “Nesta era de exaltação de celebridades – reais ou imaginárias...”

QUESTÃO 71 - Assinale a opção em que a manchete de jornal não apresenta duplo sentido.

a) Envergonhado, Papa Bento 16 condena abusos de crianças nos EUA
a) Golfo do México: barreira nos EUA não contém óleo que vazou
c) Amiga de Eliza diz que o goleiro Bruno a ameaçou
d) Rodízio completa 15 anos com efeito quase nulo sobre ar de SP
e) Bolsa paulista tem pior dia em 6 semanas com pessimismo externo

QUESTÃO 72 - Hipálage, segundo Massaud Moisés, “designa um expediente retórico próprio da poesia, mediante o qual uma palavra troca o lugar que logicamente ocuparia na sequência frásica por outro, junto de um termo ao qual se vincula gramaticalmente.” Em todas as frases abaixo, ocorre essa figura de linguagem, exceto em uma. Assinale-a:

a) “uma alvura de saia moveu-se no escuro” (Eça de Queirós)
b) “Mandados da rainha, que abundantes / Mesas de altos manjares excelentes” (Camões)
c) “apetite necrófago da mosca” (Augusto dos Anjos)
d) “o riscar dos fósforos espavoridos” (Clarice Lispector)
e) “de um povo heroico o brado retumbante” (Osório Duque Estrada)

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