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domingo, 15 de novembro de 2015
MARIA RITA REDESCOBRE ELIS, E OS APLAUSOS VÃO PARA O TEMPO!
Apesar de termos desde sempre a plena consciência de que o tempo não para, vivemos praticamente alheios a este detalhe. Ainda bem que temos esta capacidade de abstrair o tempo, pois ela é sem dúvida a forma mais inteligente de se lidar com esta verdade inexorável que é a passagem do tempo. No entanto, o tempo parece querer nos fazer percebê-lo a todo instante. Para isso, ele se utiliza de suas artimanhas e mistérios sutis. E assim a vida vai apresentando-nos provas de que não há como fugir deste senhor que, sem a menor cerimônia, fazemos questão de evitar.
Naquela noite, estávamos esperando o início do novo show que a cantora Maria Rita faria em homenagem à sua mãe, Elis. À mesma mesa, além de um companheiro de há tempos, estavam as duas senhoras que me falavam de sua amizade de mais de cinquenta anos. Amizade que nasceu em um tempo anterior ao sucesso de cada uma daquelas canções, imortalizadas na voz da mãe, que seriam interpretadas naquela noite pela filha, também cantora. De vez em quando, eu olhava o relógio para me certificar da hora. Estávamos ansiosos e, portanto, incomodados com o atraso no começo do espetáculo. Como sempre, preocupados com o tempo.
De repente, as luzes se apagaram. Soaram os primeiros acordes. Ouviu-se, então, depois de tanto tempo, a mesma ordem para que as redes fossem jogadas ao mar. Viram-se os mesmos gestos largos e circulares anunciando uma nova pesca milagrosa. “Valha-me Deus, Nosso Senhor do Bonfim. Nunca, jamais, se viu tanto peixe assim”. Por um instante, eu tive a impressão de ter ludibriado o tempo. De repente, fui tomado por uma sensação inexplicável, como se eu tivesse tomado posse de uma lembrança que nunca foi minha. A emoção de reviver um momento que não vivi. Um déjà vu de algo nunca visto. Era como se o tempo estivesse me dando uma segunda chance, ainda que em verdade não tenha havido a primeira. De imediato, eu enxerguei o tempo a se mostrar naquele palco.
Canções que ouvia desde menino, desde o tempo em que elas me encantavam apenas pela sonoridade, pois ainda não diziam nada sobre minhas histórias, sobre minhas lembranças. Durante todo o espetáculo, eu fiquei mergulhado nesse mistério. O tempo me levando a brincar em sua ciranda, convidando-me a girar em sua brincadeira de roda. Eu não tive escolha. “Vai como a criança que não teme o tempo”, a cantora grávida nos dizia. Sim, a cantora estava grávida. O tempo mais uma vez fazendo das suas. “Eu vi a mulher preparando outra pessoa. O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga”. Chamou-me atenção o ciclo. Fez-me lembrar da história do deus grego – Cronos – que engolia os próprios filhos com medo de que estes viessem a lhe tirar o trono e o poder. O implacável tempo a devorar tudo que ele mesmo produz. Mas a grande mãe – Reia – engana até mesmo o Tempo, afim de proteger seu filho Zeus. A luta de Cronos e Zeus, que faz o pai vomitar todos os filhos devorados, devolvendo à vida o que é imortal.
“A vida é amiga da arte. É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada, que nunca passou.” A música, a arte, trazidas de volta pelo tempo a todos nós, pobres mortais daquela noite. “Nossos ídolos ainda são os mesmos. E as aparências não enganam não.” O paradoxo do tempo que não para, mas que, no entanto, parece gostar de se repetir. “Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar”. Ciclo. Ciranda. E a cantora seguia a nos dizer: “É você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem!”. Confundindo-nos a mente. E assim seguimos a noite, inebriados, fascinados, tontos de emoção.
Ao fim do espetáculo estávamos todos maravilhados com a beleza das canções, com a pureza e força daquela voz, com a coragem e ousadia da filha, que com personalidade e talento indiscutível mantém viva a arte e a memória da mãe. No entanto, o que aplaudimos de fato foi o espetáculo que nos proporcionou o tempo. O tempo que fez questão de assumir o papel principal naquela noite. O tempo que renova. Traz o novo de novo. O tempo que passa. O tempo que engole, rumina, metaboliza, transforma e devolve, vomita. Recicla.
Aplaudimos o tempo, o senhor da razão, que cicatriza feridas, cura dores, ameniza saudades, adormece paixões. O tempo que pode tornar banal a maior das complexidades. O tempo, este senhor tão bonito, que com uma mão tanto nos tira – juventude, beleza, pele fresca –, mas que com a outra nos dá com tamanha generosidade: equilíbrio, parcimônia, sabedoria, liberdade.
Aplausos ao tempo, “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, que fez surgir os cabelos brancos na fronte do artista, do poeta, que naquela semana completava seus setenta anos de idade, mas que, no entanto, nunca envelhece. O tempo que também esbranquiçou os meus cabelos, que também me transformou e me conduziu ao lugar que eu tanto sonhei. O tempo que me deu histórias, memórias, amores e dores, que tingiram de nuances mais intensos e encheram de significado aquelas canções, que hoje também são minhas, porque dizem de mim. E, como propôs o mesmo poeta, meu velho tempo, eu também quero entrar num acordo contigo e, para tanto, peço-te o mesmo prazer legítimo e movimento preciso, “de modo que o meu espírito ganhe brilho definido, e eu espalhe benefícios. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo.”
© obvious
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