Desejo agradecer imensamente ao anônimo que me ajudou a retificar a postagem.
Sou admiradora da escrita de Mário de Andrade, e humilde para deixar registrado no Tribarte a colocação correta do mesmo.
Felizmente não sou um dicionário ambulante e perfeito, e apreendo todos os dias a estudar e pesquisar mais e mais.
Deixo também uma colaboração do professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify) que escreve aos domingos, uma vez por mês para a Folha de São Paulo para refletirmos sobre o assunto.
Mário de Andrade, Candido Portinari e Oscar Simon, na calçada da casa de Portinari no Leme em 1941
Poema português é atribuído a Mário de Andrade até em vestibular público
POR
jorge coli
"Já faz tempo. Eu era examinador numa banca de mestrado. O candidato atribuía, sem fundamento, frases, observações e ideias ao autor que estudara.Assinalei algumas delas, pedindo que explicasse. O candidato, de nariz empinado, passou a se defender por meio de um discurso genérico, empolado e confuso. Perdi a paciência e interrompi: "Fulano, você não pode afirmar que um autor disse uma coisa quando ele não disse". O nariz não desempinou e veio a resposta altiva: "Professor, eu pertenço à geração da cultura do ouvir dizer".
De lá para cá, a cultura do ouvir dizer muito se alastrou. As redes sociais estão cheias de citações mentirosas; os falsos perfis de gente célebre se multiplicam; histórias fictícias são tomadas como verdades. As notícias falsas, que viraram "fake news", jorram descontroladas para alimentar espantos, indignações e ódios.
No mundo da internet, para não sermos embrulhados, devemos aguçar a desconfiança e aprender a separar o joio do trigo.
Bem mais grave é quando isso atinge a universidade. Tenho outra historinha recente a respeito. No último dia 11, um contato do Facebook, Rafael Puertas de Miranda, que é professor em Mogi das Cruzes, me perguntou se eu conhecia um poema de Mário de Andrade, "Retrato de Novembro".
Não sou autoridade sobre o grande modernista, mas ele foi, em tempos remotos, tema de meu doutorado e, embora eu não tratasse de sua poesia, tenho alguma familiaridade com a sua obra.
Rafael indicou-me um site em que esse poema é apresentado sob a autoria de Mário de Andrade. Respondi que não o conhecia e que o poema me parecia estranho.
A estranheza veio por causa das formas portuguesas que continha, como "Manda-os embora! / Não abalam". Difícil, quase impossível, imaginar Mário de Andrade, o autor de "Macunaíma", batalhador por uma língua brasileira, empregando formas lusitanas, ainda que por troça ou paródia.
Verifiquei se "Retrato de Novembro" estava nas suas "Poesias Completas". Nada. Mandei uma mensagem para Telê Porto Ancona Lopez, que consagrou sua vida intelectual ao modernista e há décadas analisa com microscópio seu acervo no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Se Telê não soubesse, ninguém saberia. E ela também não conhecia.
Rafael enviou-me um link em mais uma mensagem. Eis que o poema misterioso caíra no vestibular de 2017 da Universidade de Pernambuco (estadual). Foi apresentado, sob autoria de Mário de Andrade, com quatro proposições de múltipla escolha, escritas em linguagem pedante e pomposa: "eu lírico questionador" para cá, "olhar crítico sobre a realidade brasileira" para lá.
Ele descobriu depois que o poema não era mesmo de Mário de Andrade, mas de um alentejano, José Pires Campaniço. Como em seus versos existem algumas referências precisas, mas obscuras, fucei e encontrei o e-mail de Campaniço.
Escrevi a ele, comunicando-lhe a atribuição errada e perguntando o sentido da menção a certos "massacres do Alentejo". Respondeu-me amável e atônito. Tratava-se de alguns operários agrícolas assassinados em 1979, e o poema está incluído em seu livro "A Cítara Ardente", de 1980.
Por obra e graça de vários sites que o publicaram como tal (Jornal de Poesia, Tribarte, Escola Educação, Abril de Novo Magazine, entre outros), o poema de um português contemporâneo se transformou em produto de Mário de Andrade.
Ele está em italiano numa antologia bilíngue, no qual uma nota sapientíssima explica que o autor se referia aos imigrantes do Alentejo perseguidos pela ditadura de Salazar e refugiados no Brasil...
Resumo da ópera: alguém postou em algum lugar o poema de Campaniço sob a autoria de Andrade. O copiar/colar fez o resto, e o poema apócrifo estava em vias de se tornar um dos mais populares do modernista brasileiro.
Ninguém, nem mesmo os responsáveis pelo vestibular de uma universidade, deu-se ao trabalho de procurar alguma edição confiável. Não fosse Rafael de Miranda, Mário de Andrade continuaria como o autor de uma obra que não é sua.
Mas não é só isso. O caso do vestibular em Pernambuco vai além de uma questão errada. Demonstra que a poesia perde seu sentido ao ser tratada pela cultura de múltipla escolha.
Não é assim que ela será amada pelos alunos, como não o foi por professores que só conhecem Mário de Andrade pela internet. E sem amor, a poesia e as humanidades viram pó de traque."
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