© Cecilia Paredes.
No instigante filme O Livro de Cabeceira (The Pillow Book), a pele (e por extensão o corpo) literalmente serviu de papel para a palavra, subvertendo suas funções orgânicas e biológicas. O filme, inspirado na obra homônima da literatura clássica japonesa escrita no século X pela dama-da-corte imperial Sei Shonagon, e lançado em 1996 pelo diretor britânico Peter Greenaway, apresenta-nos Nagiko (interpretada pela bela Vivia Wu) que de forma sensual e erótica usa o corpo de seus amantes para escrever e fazer com suas peles seu livro de cabeceira.
Nas fotografias da peruana Cecília Paredes Polack, pele e corpo são suportes para a imagem pictórica. Em sessões que chegam a durar sete horas, o corpo da própria artista é minuciosamente pintado por assistentes e depois fotografado. Uma curiosidade aproxima Greenaway de Paredes: ambos têm formação em artes plásticas. No início de sua carreira profissional, o diretor britânico foi pintor e, quando dirigiuO Livro de Cabeceira, buscou inspiração em diversos pintores orientais e ocidentais como Utamaro, Hosukai e Hiroshige e Gauguin, Degas, Whistler, Schiele, Toulouse Lautrec, Vuillard e Klimt.
Tanto no filme de Peter Greenaway quanto nas photoperformances de Cecília Paredes, a arte está o tempo todo a nos provocar com reflexões estéticas, filosóficas, históricas e antropológicas. Enquanto em O Livro de Cabeceira as peles dos personagens recebem caligrafias ideográficas, resultando em 13 livros escritos sobre os corpos, nas fotografias de Cecília Paredes pele e corpo são metamorfoseados em imagens antropomórficas de animais, plantas e paisagens com a intenção deliberada de a artista de confundir o próprio corpo com a natureza e a natureza com o corpo. Nesse exercício de revela-esconde de Paredes, nada é o que parece ser, tudo é ilusão tridimensional.
© Cecilia Paredes.
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Ao introduzir-se nas paisagens de natureza (a artista também é fotografada inserida em paisagens de desenhos geométricos), Cecília Paredes mostra-se presente e observadora para a questão da pele da natureza e a natureza da pele. Uma espécie de alerta para o atual processo de extinção da flora e fauna do planeta. A artista já declarou que ao inserir-se nas paisagens também trabalha a questão de construir a sua própria identificação com o ambiente, ou a parte do mundo onde ela vive e que sente que pode chamar de lar. Tudo a ver com a sua biografia, a qual define como nômade.
Talvez essa seja uma necessidade da artista em abordar o seu processo de deslocalização constante. Mudança, adaptação a ambientes, migração e equilíbrio entre o homem e a natureza são alguns dos temas de sua obra, na qual estética e antropologia estão reunidas em registros de fragmentos da memória pessoal e social da artista. Os deslocamentos de Cecilia Paredes começaram quando ela ainda era jovem e saiu de sua cidade natal, Lima, no Peru, para estudar artes na Inglaterra e Itália. Depois, voltou para as Américas. Hoje ela tem simultaneamente mais de um lar e vive e trabalha entre Filadélfia, nos Estados Unidos, e San José, na Costa Rica, país onde viveu por 23 anos e com o qual tem uma ligação forte, pois foi lá que desenvolveu sua carreira.
© Cecilia Paredes.
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Em um primeiro olhar pode-se pensar que o que Cecília Paredes faz é camuflagem corporal. Mas um olhar mais apurado revela que a artista não tem a intenção de desaparecer por completo, tanto que deixa à mostra os próprios cabelos negros. Mimetismo talvez seja a definição mais apropriada. Ao mesmo tempo que partes do corpo dela são detectadas,este é confundido com o cenário.
Aqui uma curiosidade: se o cabelo negro à mostra é uma pista para denunciar o corpo da artista, no filme de Peter Greenaway ele está ali para sugerir o brilho da tinta preta. Na versão inicial do roteiro de O Livro de Cabeceira, construído em forma de verbetes em 1984 e intitulado "26 APONTAMENTOS SOBRE A PELE E A TINTA* - O Livro de Cabeceira, de A a Z", Peter Greenaway escreve o seguinte verbete: “A - A pele mais adequada para ser escrita deve ser muito clara, talvez a de um corpo cujo cabelo bem escuro sugira o brilho da tinta preta”.
© Cecilia Paredes.
© Cecilia Paredes.
Entramos então nos campos da inspiração e da sugestão. Vale lembrar que a arte de Cecília Paredes caracteriza-se pela cartografia que nos possibilita entrar no intrincado arquivo da imaginação, segundo o escritor e crítico de arte Luis Fernando Quiros. Podemos imaginar assim uma simbiose pictótorica onde o sagrado e o profano interagem, onde pele e corpo são ao mesmo tempo coadjuvantes e protagonistas.
Desde o início da carreira da artista, a questão corpo (e sua memória) estão presentes. O corpo é apresentado como o fundamento da cultura e já houve quem observasse que, ao metamorfosear-se em natureza, o corpo-objeto de Paredes rompe com a perniciosa tradição judaico-cristã da vitimização feminina. Na arte de Cecília Paredes o corpo não é uma dimensão inferior e limitada, contraposto à alma (perfeita, eterna e imutável), tal como afirmava Platão. Ao contrário, esse “veículo biológico frágil, instável e perecível” revela-se poderoso e infinito de possibilidades.
Enquanto no filme de Peter Greenaway o corpo serve para a metáfora do “livrocorpo”, na arte de Cecília Paredes ele é “telacorpo”, objeto de experiências estéticas e espaço de repercussões dialéticas e metafóricas. Foi o francês Maurice Merleau-Ponty em seu ensaio O Olho e o Espírito (L’oeil et l’esprit) quem disse: “É emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura”. Cecília Paredes não apenas empresta o seu corpo ao mundo, mas a sua própria alma. E nesse processo de transmutação no qual o corpo é mais do que pele, carne, sangue, músculos, células e nervos ela transforma o mundo em arte, vida e poesia. Não necessariamente nessa ordem. Conheça mais sobre a arte de Cecilia Paredes no site da artista.
© Cecilia Paredes.
© Cecilia Paredes.
© Cecilia Paredes.
© Cecilia Paredes.
Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2012/04/cecilia_paredes_arte_a_flor_da_pele.html#ixzz1sLoOlYFy
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