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terça-feira, 28 de junho de 2011

A ARTE DA VIDA

Não é preciso estar em um museu para contemplar uma obra.
                                       Ao seu redor há um mundo feito de arte.



Existe uma célebre frase, atribuída ao líder indiano Mahatma Gandhi, que diz algo como: "A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte". Essa ideia é discutida não apenas por quem pensa o comportamento humano, mas também por artistas e por quem reflete o papel da arte no nosso cotidiano. Não se trata de questionar apenas o que é a arte e sim onde ela está e de que maneira diz respeito a nós, espectadores.

O artista brasileiro Hélio Oiticica foi um dos principais responsáveis por tirar essa discussão do meio acadêmico e trazê-la para o grande público. No início da década de 1960, ele publicou o texto "O Museu É o Mundo", no qual questionava o lugar da arte. Até então se falava apenas nas quatro paredes de um museu. Para Hélio, não era preciso entrar em um para vê-la. Ela estaria no dia a dia, nas ruas, nas casas, nas atitudes, no mundo. "Pretendo estender o sentido de ´apropriação` às coisas do mundo com que deparo nas ruas. Isto seria um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc., e ao próprio conceito de exposição - ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo; é a experiência cotidiana", escreveu Oiticica em 1966. Curiosamente, a curadora Lisette Lagnado lembra que, ao mesmo tempo que o brasileiro falava dessa experiência aqui, nos Estados Unidos outro autor dizia exatamente o contrário: o mundo é um museu, defendendo o caráter estático da arte.

E o que isso quer dizer? Para Oiticica, tudo ao nosso redor poderia ser uma obra de arte. Parece meio estranho pensar isso em relação a um lápis ou um chaveiro jogado na mesa, mas a ideia está longe de ser tão simplista. "Para o artista, o dia a dia de alguém pode ser uma obra de arte. É só descondicionar seus hábitos, como beber um copo de água de uma maneira diferente", observa Paula Braga, crítica de arte e autora do livro Fios Soltos: A Arte de Hélio Oiticica (Perspectiva, 2008).

Oiticica mostrava que as coisas estão ali, no mundo, prontas para ser experimentadas e se tornar arte. Com a série de trabalhos chamada Bólides (a partir de 1963), ele deixou essa marca bem clara. Trata-se de recipientes simples (caixas, sacos, latas, bacias) com materiais elementares e manipuláveis que induzem à experimentação. O Bólide Lata-Fogo, por exemplo, mostra que a lata pegando fogo não precisa estar dentro de um museu para se tornar arte. Ela está no mundo, na vida. E é arte porque toca, chama atenção.

Nós no papel de artistas
Ao desenrolar o conceito de que o museu está por toda parte, outra noção veio à tona: a de que o público não seria apenas um espectador que vê passivamente a obra, e que a arte só se concretiza quando existe integração.

Segundo o próprio Oiticica, "o participador lhe empresta os significados correspondentes - algo é previsto pelo artista, mas as significações emprestadas são possibilidades suscitadas pela obra não previstas, incluindo a não participação nas suas inúmeras possibilidades também". Ou seja, o artista nunca sabe ao certo qual resultado a obra terá, tudo vai depender de quem participa dela.

De certa forma, esse conceito se aproxima da pedagogia proposta por Paulo Freire, que criticava a passividade do aluno perante o professor, o qual seria o detentor do conhecimento. Freire acreditava que o professor deveria propor seu conhecimento aos estudantes, assim como Oiticica propunha sua obra ao público. O resultado final aparecia quando ocorria a chamada integração entre as duas partes.

Integrar, no caso da arte, significa usar todos os sentidos e não apenas a visão - assim, os trabalhos de Oiticica ultrapassam a mera contemplação das obras ao misturar a visão ao olfato, ao tato, à audição e ao paladar. Nesse ponto, uma referência importante foi o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, que afirmava que nossa percepção do mundo se dá por meio da integração dos cinco sentidos e não de cada um separadamente. Oiticica ampliou a ideia: não existe a audição sozinha, nem o tato sozinho e assim por diante. Da mesma maneira, não existe a arte sozinha, nem a política, nem a sociologia. Tudo está misturado. É como se perguntava o sociólogo francês Roland Barthes: "A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação?"

"Com os Núcleos, de 1960-1963, espaços definidos por planos ortogonais dependurados do teto por fios, Oiticica inaugurou a construção de um espaço de cor que podia ser penetrado pelo espectador. Daí o termo penetráveis, que o artista usaria até o final de sua carreira. Esses ambientes exigem mais do que um espectador: a obra só faz sentido quando experimentada, habitada", diz Paula Braga.

Quem experimenta e quem habita? Ora, o corpo. Oiticica passou a ter um contato diferente com o próprio corpo ao começar a frequentar o Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro. Teve aulas de dança e tornou-se passista da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Descobriu que seu corpo era muito mais do que um mero receptor de estímulos sensoriais, ele era parte do ambiente. Foi daí que nasceu sua mais famosa série de obras, os Parangolés, feitos a partir de 1964, os quais exigem um corpo que dança e se movimenta.

Diversos artistas têm bebido dessas referências para compor suas obras. Marcelo Cidade, por exemplo, usou na intervenção Eu-Horizonte seu próprio corpo como matéria-prima para reivindicar um horizonte na capital paulista. Até que ponto um horizonte é importante no contexto urbano? Em uma performance, o artista aparece nu, suspenso, em uma movimentada esquina da zona leste de São Paulo. Apesar de admitir a referência dos anos 1960, Marcelo acredita que se Oiticica estivesse vivo a discussão seria outra. "Naquela época, tratava-se de um mundo polarizado, entre ideologias de direita e esquerda. Atualmente, discutimos como podemos viver eticamente", afirma.

Aonde então chegariam os conceitos "oiticiquianos" hoje? De que maneira eles conduziriam a relação da arte no mundo, da participação do indivíduo, da coautoria? Será que qualquer um poderia vir a ser um artista do seu próprio dia? Não se sabe ao certo. Oiticica deixou essas questões em aberto. "Hélio imaginava a arte como um elástico, que sempre pode ser esticado para um lado que ainda não foi", explica Paula Braga. Talvez esse lado seja justamente uma obra em aberto, como ele deixou, prestes a ser construída por algum de nós.




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Fontes
Matéria: Mariana Sgarioni - Itaucultural 

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