Ulysses Guimarães enfrentando a polícia em Salvador (Ba), em maio de 1978
Escrevi este texto há quase 5 anos e ontem, durante a passeata de Salvador (Ba), lembrei-me desses acontecimentos e fiz alguns paralelos sobre as passeatas do final dos anos 70 e aquela de ontem.
Ainda estou elaborando as ideias. Enquanto isso, relembre comigo.
EU ESTAVA LÁ
Gerivaldo Neiva *
Quando alguém se sente pertencente a um lugar, este sentimento repercute em participação e solidariedade com os que fazem parte do mesmo lugar. Sociólogos e antropólogos chamam isso de “sentimento de pertença.”
Eu já tive muitas participações de “pertencimento” na vida e tenho orgulho de muitas delas. Não me arrependo de ter participado de nenhuma delas. Tenho alguma frustração, no entanto, de algumas “não-participação.” Participar é conseqüência de pertencer. Como tenho muito forte um “sentimento de pertença” com o mundo e com a humanidade, ando sempre atento para não perder a oportunidade de participar.
Às vezes penso que Deus foi um pouco perverso com Adão ao lhe expulsar do paraíso, mas penso que Ele quis exatamente que Adão experimentasse o sentimento de pertencer ao mundo e ser responsável por ele. Tenho dúvidas se Adão cumpriu este desígnio e se seus descendentes também cumpriram, pois às vezes vejo tantos comportamentos de humanos como se o mundo não pertencesse ao homem. Uma coisa é certa: perdido o “pertencimento”, perde-se também a solidariedade e a humanidade.
Dentre os acontecimentos que me orgulho de ter participado como conseqüência desse sentimento de solidariedade e compromisso com a humanidade, mesmo limitado à condição de estudante secundarista, foi do movimento de redemocratização do país.
Mais especificamente, lembro-me de um acontecimento que até hoje tenho forte na lembrança. Em maio de 1978, Ulysses Guimarães veio à Bahia participar de um comício na sede do MDB, na Praça do Campo Grande. A eleição para presidente continuava de forma indireta. O governo militar apoiava o general Figueiredo e o MDB estava apoiando a candidatura do também general Euler Bentes Monteiro.
Naquela época, a oposição era o MDB, mas pequenos grupos de esquerda já começavam a se reunir com certa liberdade. O movimento estudantil universitário era atuante e o movimento estudantil secundarista, do qual participava, começava também a se reorganizar. Nossos pontos de encontro eram as residências de estudantes das cidades do interior. Eram dezenas de residências de estudantes espalhadas pelos bairros do Tororó, Nazaré e Largo 2 de Julho.
Começamos a mobilização desde cedo da tarde e quando começou a escurecer saímos em passeata para o Campo Grande. Palavras de ordem, sempre o punho direito vibrando no ar e quase ninguém sabia cantar “caminhando e cantando” até o final.
A polícia militar já nos esperava no Campo Grande. Fomos cercados e colocados sentados no meio da praça. Cães nos vigiavam. Nossa posição era um pouco à esquerda da sede do MDB, mas tínhamos boa visão do que se passava. Evidente que não tínhamos consciência da importância daquele momento e nem poderíamos imaginar que estávamos testemunhando um dos acontecimentos mais marcantes do processo de redemocratização do país.
Um dia ainda vou parar prá pensar se o mundo está diferente ou se naquela época éramos mais politizados e conscientes. Lembro que vivíamos participando de atos políticos, assistíamos filmes de arte na biblioteca central dos Barris, discutíamos teatro nas escadarias do Teatro Castro Alves e líamos jornais alternativos: “Movimento”, “Em tempo” e de vez em quando, por curiosidade, o anarquista “O inimigo do Rei” e o “Pasquim”. Claro que “a verdade” estava apenas no jornal que era editado por nosso grupo político. Os demais estavam equivocados. Meu predileto era o “Em Tempo.”
Não fui delegado, mas estava no congresso que reconstruiu a UNE, em Salvador, no estacionamento do Centro de Convenções, em maio de 1979; participávamos de panfletagens, atos e passeatas pela anistia; acompanhávamos com espanto as greves dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e vibramos com as imagens do retorno ao Brasil de Brizola, Arraes, Prestes, Márcio Moreira Alves, Gregório Bezerra e tantos outros. Rimos muito, naquele início de 1979, com as fotos do Estádio do Morumbi, em São Paulo, no jogo entre Santos e Corinthians, com uma faixa pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita,” no meio da “gaviões da fiel”, obra de Antônio Carlos Fon e Chico Malfitani. Também em 1979, Theodomiro fugiu da prisão, em Salvador, mas este não era assunto para meninos do movimento estudantil secundarista...
Voltando ao Campo Grande, lá por volta das 7 ou 8 horas da noite, continuávamos cercados pelos cães da polícia militar quando percebemos a movimentação da polícia em frente a sede do MDB e alguém gritou: Ulysses está chegando! Ficamos de pé, mas os cães não permitiram nosso avanço. Não foi possível ver a cena de perto e ouvir o diálogo que se passou, mas conta a história que Ulysses e sua comitiva enfrentaram os militares e seus cães com bravura e determinação. Dizem que Ulysses teria agido com autoridade e exigindo respeito ao líder da oposição, rompendo a barreira de policiais militares. Minutos mais tarde, Ulysses apareceu na janela da antiga sede do MDB e proferiu um discurso histórico. O serviço de som era péssimo, mas deu prá ouvir alguns trechos do discurso.
Hoje, quando me lembro de tudo isso, fico com a impressão que a Política morreu.
Tenho muito orgulho de ter participado daquele momento. Nesse dia, com certeza, muitos jovens estavam em casa assistindo TV, outros tinham medo da repressão e outros, completamente alienados, nem sabiam o que se passava no país.
Alienação e medo, no entanto, são palavras que não fazem parte do dicionário de quem luta por um mundo melhor, de quem “pertence” a um local, uma cidade, um país, uma pátria.
Conceição do Coité, 29 de novembro de 2008
* Juiz de Direito (Ba).
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