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segunda-feira, 2 de março de 2015

Quer metamorfose? Leia!



A metamorfose é a mais célebre novela de Franz Kafka e uma das mais importantes de toda a história da literatura. Sem a menor cerimônia, o texto coloca o leitor diante de um caixeiro-viajante - o famoso Gregor Samsa - transformado em inseto monstruoso. A partir daí, a história é narrada com um realismo inesperado que associa o inverossímil e o senso de humor ao que é trágico, grotesco e cruel na condição humana - tudo no estilo transparente e perfeito desse mestre inconfundível da ficção universal.


ANÁLISE DO LIVRO "A METAMORFOSE", DE KAFKA POR LUCAS MACHADO MARACCI


A Metamorfose é uma novela escrita por Franz Kafka em 1912, mas somente impressa em 1915, em uma revista alemã chamada Die Weissen Blätter – em português As Folhas Brancas –, no contexto da Belle Époque –período marcado por transformações culturais que influenciaram o modo como as pessoas viviam e pensavam –, antecedendo em dois anos a Primeira Guerra Mundial. No Brasil, foi primeiramente publicado em 1956, pela Editora Civilização Brasileira.


A obra é dividida em três partes. Na primeira parte, acompanhamos um Gregor (o protagonista da história) recém metamorfoseado, e observamos a maneira como é recebido por sua família em sua nova forma. Na segunda parte, assistimos ao cotidiano de um Gregor isolado e rejeitado. Já na terceira e última parte, observamos o fim de um Gregor fraco e abalado psicologicamente.



A Metamorfose é narrada por um narrador onisciente (heterodiegético), a partir da perspectiva do personagem principal. Essa ligação do narrador ao protagonista perdura até o momento da morte deste, quando o narrador se desprende de Gregor e passa a enfocar sua família.


Quanto aos personagens, Gregor Samsa é um personagem redondo (modelado) pois é bem acabado e caracterizado. Já os personagens secundários podem ser considerados planos (desenhados), inclusive a irmã de Gregor, Grete, que no final da novela assume uma postura dura e insensível em relação ao monstruoso inseto que está no lugar de seu irmão.


O tempo da narrativa é cronológico, ou seja, os fatos estão dispostos em ordem de acontecimento. Grande parte da história se passa no quarto de Gregor, afinal, é lá que ele passa a maior parte de seu tempo depois de transformado. Todavia, não é esclarecido em que época a história se passa, pois datas nunca são especificadas no decorrer da obra. A transição do tempo é exposta ao leitor através de horas e dias.


Contrariando as regras ditadas por Aristóteles em sua obra Poética(teoria do início, meio e fim, onde no início aconteceria a introdução da história e dos personagens), A Metamorfose já começa pelo clímax, conforme pode ser conferido logo na primeira oração do livro:


“Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformado num inseto monstruoso” (KAFKA, 2001, p. 11).



Fotografia de Christophe Huet

Como podemos notar através da leitura do trecho inicial do livro, Gregor já começa a história transformado em inseto. O narrador e o próprio Gregor tomam a metamorfose como algo quase insignificante. O primeiro apenas constata a transformação e limita-se a descrever o novo corpo de Gregor, e, quando acaba de fazê-lo, começa a descrever seu quarto; já o segundo primeiramente estranha sua monstruosa nova forma, mas logo deseja retomar normalmente sua vida de caixeiro-viajante como se apenas tivesse contraído uma gripe. Aliás, ambos narrador e protagonista não sabem as causas da transformação e nem mesmo parecem se interessar pelo assunto. Assim, o leitor acaba não tendo acesso, de forma explícita, ao que levou Gregor a sofrer a metamorfose. Aliás, também não é especificado em que Gregor se transforma: o narrador apenas fala em inseto monstruoso.


Se fizermos uma análise mais profunda da história, poderemos ver que a metamorfose representa uma metáfora da sociedade da época e/ou do estado psicológico de Gregor. Ele agarrou para si a missão de manter sua família financeiramente, exercendo a profissão de caixeiro-viajante, que era fatigante ao extremo e não fornecia realização profissional ou pessoal, como podemos conferir no trecho abaixo:


“Que dura profissão fui escolher! Viajando todo santo dia. É muito pior do que quando se está no escritório, pois, quando viajo, não posso descuidar dos horários dos trens, as refeições são ruins, feitas fora de hora; os relacionamentos mudam sempre, nunca são os mesmos, nunca possibilitam uma autêntica amizade” (KAFKA, 2001, p. 12).


Quando Gregor assumiu as despesas da casa, sua família o tratava de modo afetivo. Todavia, com o passar do tempo, seus pais passaram a acreditar que era obrigação de Gregor sustentá-los. É por meio da metamorfose que Gregor se liberta de seu fardo: seu trabalho e a dependência de sua família.


“(...) sua eficiente atuação profissional lhe proporcionava significativas comissões em dinheiro, que colocava sobre a mesa da sala, sob o olhar admirado e jubiloso da família. (…) À medida que tudo isso foi se tornando costumeiro, a surpresa e a alegria inicial arrefeceram e, assim, Gregor entregava o dinheiro com prazer espontâneo e a família, de bom grado, recebia” (KAFKA, 2001, p. 39).


Antes de a metamorfose acontecer, a família parasitava Gregor; pós-metamorfose, a família é parasitada, uma vez que Gregor, em seu atual estado, apenas consome e nada fornece. A partir do momento que todos os membros da família arranjam emprego e a questão financeira já está sanada, o pai chega a querer se livrar do filho/inseto, o que provoca em Gregor uma dor não apenas física, mas também psicológica: a dor da rejeição.


“(...) algo passou raspando sua cabeça e rolou até um pouco mais à frente: era uma maçã, logo seguida de outra. Temeroso, Gregor deteve-se, considerando inútil continuar correndo, pois o pai havia decidido bombardeá-lo (...)” (KAFKA, 2001, p. 52).



Com a leitura do trecho acima podemos inferir, também, que tal excerto transmite ao leitor a conturbada relação de Kafka com seu pai, pessoa com quem nunca tivera uma boa relação, pois este sempre desmerecia as conquistas do filho e nunca o apoiava, assumindo muitas vezes uma postura tirânica. Kafka, em sua condição de inseto, vê-se inferiorizado em relação ao pai, que o ataca. Aqui poderia se aplicar o que diz Modesto Carone no ensaioO parasita da família, “(...) A Metamorfose (…) deve ser lida não como uma simples novela fantástica, mas como uma trágica história de família”.


A partir da metáfora da metamorfose, Kafka faz uma crítica à sociedade, cujos interesses são capitalistas ao extremo, e não emocionais. Quando metamorfoseado em inseto, Gregor representa alguém que sempre se preocupou com os outros mas nunca consigo mesmo, alguém que não mais produz e por isso é rejeitado cruelmente pela família, que, por sua vez, representa a sociedade.


O final da história é atroz: Grete, a irmã que antes da metamorfose sempre o havia tratado de modo afetuoso e que, mesmo depois da transformação, nunca havia realmente lhe dado as costas, expulsa Gregor de suas vidas. Ele, já fraco – o que se dá tanto pela má alimentação quanto pelo abalo psicológico que recebera –, morre em seu quarto durante a noite.


“– Ele tem que ir embora! – gritou a irmã. – É o único jeito, pai. O senhor precisa se desfazer da ideia de que aquilo é Gregor. Acreditar nisso, durante tanto tempo, tem sido a nossa desgraça. Como pode ser Gregor? Se fosse, há muito tempo teria percebido que seres humanos não podem viver com um bicho como aquele. E teria partido por conta própria” (KAFKA, 2001, p. 70-71).


A morte de Gregor é julgada como uma libertação a todos. A família faz algo que há muito tempo não fazia: dá um passeio de bonde pelos arredores da cidade. E nesse passeio, os pais percebem como sua filha havia se convertido numa linda jovem, e que já estava na hora de encontrar um marido para ela. Com esse final, o autor deixa implícita a intenção de os pais se apoiarem financeiramente na filha em um futuro próximo.


Considerado um dos gênios da literatura, Kafka conseguiu fazer deA Metamorfose uma obra cruel e inteligente, cuja leitura permanece atual apesar de o livro ter sido escrito há mais de 100 anos.


***


Franz Kafka


“Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós.”
Franz Kafka


Kafka nasceu no dia 3 de julho de 1883, em Praga, na Boêmia (atualmente corresponde à República Tcheca). Kafka, porém, foi alfabetizado em alemão. Em vida, publicou pouca coisa; dentre esses materiais se encontra A Metamorfose, sua obra mais conhecida.


Sua perturbada relação com seu pai rendeu inspiração para escrever Carta ao pai, publicada apenas postumamente. O texto reflete – às vezes de forma exagerada – a relação entre pai e filho, onde este assume uma posição de fracasso perante aquele.


Kafka escreveu A Metamorfose em 21 dias (entre 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912). Quando apresentou o primeiro capítulo da obra aos seus amigos, sua leitura foi primeiramente recebida com risos. Porém, Max Brod enxergou a qualidade da obra e procurou alguém que pudesse editar a história.
Através de imensa angústia, Kafka queria fazer com que o leitor de suas obras percebesse o que estava se passando no mundo, queria fazê-lo “acordar com uma pancada na cabeça”, como diz em uma carta de 1904.


Como consta na biografia O mundo prodigioso que tenho na cabeça, de autoria de Louis Begley, pouco antes de falecer, Kafka havia deixado uma carta ao seu amigo Max Brod, pedindo que este queimasse todos os seus escritos. Brod não o fez, e por isso temos acesso a várias obras do escritor.


Kafka morreu em 3 de junho de 1924, em Viena, aos 40 anos.


http://queridoslivros.blogspot.com.br/2013/06/analise-do-livro-metamorfose-de-kafka.html

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES, HORÁCIO & LONGINO. A Poética Clássica. São Paulo, Cultrix, 1995.
BEGLEY, Louis. O mundo prodigioso que tenho na cabeça. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo, Nova Alexandria, 2001.

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