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sexta-feira, 20 de junho de 2014
PARA CAYMMI, AOS 100 ANOS, POR VITOR
Este não é um texto biográfico. E que as outras datas me desculpem, mas estamos no ano de Dorival.
(Queira me perdoar. Não sou músico, não sei muitos acordes, não sei ler partituras. Eu simplesmente nasci na Bahia, mesmo que more longe, bem longe, de lá. Não me pergunte sobre minha autoridade para dizer algo sobre Caymmi: em termos, notas e papeis eu não a tenho, admito. Se digo algo aqui, é porque me legitimo com os ecos que emanam de suas obras, que se dirigem e se definem naqueles que não têm nome em cartório, em carteira ou em diploma. Deu-me o próprio Caymmi uma espécie de permissão; aceito-a e, dissimuladamente, vou.)
O ano de 2014, dentre tantas outras coisas, marca o centenário de seu nascimento, homem Dorival Caymmi; uma data simbólica, é claro, mas inegavelmente significativa para nós, tão imersos no tempo e em seus significados: neste texto, a data liberta-se de sua face de esquecimento e, cínica, mostra-se como via de lembrança crucial. Estas palavras, assim, operam nas lacunas das tantas homenagens que não foram feitas a ti, até mesmo neste ano, mas sem a pretensão de preenchê-las.
Na data de teu aniversário de 100 anos, houve páginas de jornal, houve programas com teus filhos, houve especiais em sites, tudo dedicado a ti, é a bem-verdade; contudo, as grandes homenagens, o tempo já nos ensinou, não legitimam as pequenas e falhas, e isso é certo. Por que tão pouco se falou sobre ti, Caymmi? A resposta é crua e simples: porque poesia nunca, nunca, vendeu jornal.
Em sua longa trajetória palmilhada, você, Dorival Caymmi, nunca fez a notícia, enquanto fato e alarde. Neste ponto, então, é que reside uma das facetas mais relevantes à sua compreensão inextinguível: sempre houve em ti um alheamento tão grande à temporalidade que só poderia significar um entendimento completo do que significa o próprio tempo. É como se, na tua pessoa, calhasse a acontecer uma revelação tão forte que, de um momento em diante, todo gesto seria uma forma de remissão. É como se você entendesse, Deus sabe o porquê, quão belo é o motivo de estarmos aqui e, a partir disso, construísse uma obra para tentar transformar este sentimento em música, arte.
Quadro do também pintor Dorival Caymmi
A tua música, Caymmi, traz em si uma carga de sapiência poucas vezes vista. O xis da questão, contudo, é que essa sabedoria é transmitida a partir de um olhar sobre aquilo que ainda é ingênuo, terno, puro: vida de pesca e de pescador, nas Canções Praieiras ou muito depois delas; algo semelhante ao que fez Guimarães Rosa com o sertanejo. Um olhar que busca no trivial o que é significado já o sabe e o reconhece por si só em todas as suas formas possíveis; o favor que você fez a nós foi mostrar estas possibilidades de significação como se fossem inevitáveis, sendo que não eram: necessitavam de um fenômeno como você para torná-las assimiláveis, ainda que indefiníveis.
Rubem Braga nos transmitiu uma lição que se aplica perfeitamente ao fenômeno que faz com que sua obra não seja tão vista, consumida, dita ou analisada cotidianamente: hoje se vive em um período onde se acredita que águas turvas são sempre as mais profundas. A limpidez de sua obra, Baiano, a torna pouco atrativa para especulações controversas, abstrações absurdas, afrouxamentos de inteligibilidade: nos tornamos estruturas elaboradas com bases abandonadas. Mas o que há nas tuas canções, contudo, é um cerne de humanidade que não pleiteia teorias, mas que simplesmente é. É luminoso e diáfano, mas parece ser ilimitado quando se tenta mensurar o seu alcance, o seu significado. Deixe que se mostre o contraste, pois, Dorival, entre aquilo que é complexidade em si e aquilo que quer ser complexidade no mundo.
E mesmo assim não se nega na tua obra, Homem, aquilo que é comum à arte, ainda que se manifeste de na forma caymmiana inegável. A inventividade estética em ti se usa aliada ao significado: reconhece-se imediatamente seu tocar único ao violão; é ele que potencializa a pureza de teu mar em sinestesia, ritmo, sensação. No documentário Um Certo Dorival Caymmi, em uma passagem impossível de se esquecer, você diz que nunca aprendeu música formalmente para conservar o jeito natural de seu tocar. Isso diz muito, é quase um microcosmo de sua obra: um ritmo natural que se tenta preservar, assim como se eternizou o fazer do pescador em arte.
Outra questão estética tão importante é que este tocar único de violão conflui com uma formação lírica igualmente rara e natural. Sargaço Mar e Coqueiro de Itapoã, por exemplo, apresentam letras cujo grau de precisão no uso das palavras é comparável à poesia concreta de Augusto e Haroldo de Campos. A diferença é que você, Caymmi, buscou esta precisão por um caminho só seu: enquanto os concretos leram Pound, Joyce e Jakobson, você simplesmente entendeu o porquê contido em cada palavra que usou, de algum modo que aqui não se quer em hipótese alguma entender.
E mesmo que o dito aqui seja muito extenso e soe como vã adulação, é bom que se diga: na alma de cada baiano, há mais. Tua obra, Baiano, assim como a de seus “irmãos de esteira”, Carybé e Jorge Amado, tem um teor que é inseparável de cada um que ama aquele imenso-imenso largo de chão; ela se manifesta em presenças e ausências, amalgama memórias e faltas em um sentido único, o qual chamamos de eternidade e de pertencimento. Este sentido, contudo, ainda não tem alfabeto para se expressar.
Aos 100, Dorival Caymmi, tua luz brilha com uma vida que só pode exalar da humanidade. Não de parte dela, mas dela toda. E por isso mesmo é que, aqui, findo: pois só quem pode falar por ti é sua obra, a cada dia mais viva e inacreditavelmente real. Nossa função perante a ti, contudo, será sempre a de evidenciar o que está implícito em cada um de nós, independentemente da vontade de alguns e de alguém; é esta a única forma que temos para agradecer, queira você nos perdoar.
© obvious: http://lounge.obviousmag.org/todos_nos_e_mais_alguem/2014/06/para-caymmi-aos-100-anos.html#ixzz35BZdXvP1
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