"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio"
Machado de Assis
Na festa, Isabel foi exaltada pelo povo. Mas a abolição não foi uma ação benevolente da princesa e do Senado. Tampouco derivava apenas da exaustão do modelo econômico baseado no trabalho escravo, que precisava ser substituído pelo trabalho livre.
O fim da escravidão no Brasil foi impulsionado por diversos fatores, entre eles, uma importante participação popular. Cada vez mais escravos, negros livres e brancos se juntaram aos ideais abolicionistas. Sobretudo, na década de 1880.
As principais táticas eram a reunião em diferentes associações abolicionistas, a realização de eventos artísticos para angariar apoio, o ingresso de processos na Justiça e até o apoio a revoltas e fugas de escravos.
Lei n°3.353, a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888
Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil
"Tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!"
Lima Barreto
O movimento abolicionista
André Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco (se estiver vendo esta página no celular, gire a tela para ver todos) / Museu Afro Brasil e Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil
Em 1886, a célebre cantora lírica russa Nadina Bulicioff veio ao Brasil para fazer uma série de espetáculos, a convite do imperador Pedro II. Estava em cartaz com a peça Aida - nome da personagem principal, filha do rei da Etiópia, escravizada no Egito.
A temporada teve grande sucesso. Especialmente, a última apresentação. Em certa altura da história, Aida foge do cativeiro, ainda com algemas. Nesse momento, o abolicionista José do Patrocínio interrompeu a cena e subiu ao palco com seis mulheres escravizadas.
Anúncio de uma matinê abolicionista no jornal Gazeta da Tarde, em 1883 Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil / Publicado no livro "Flores, votos e balas"
Então, a russa rompeu as algemas do figurino e, por um momento, trocou a ficção pela realidade: entregou cartas de liberdade verdadeiras para as seis escravas, que se tornaram livres naquele momento, como Aida. “Sete Aidas. Choraram elas e o público, em delírio. Houve palmas e vivas, lançaram-se flores, soltaram-se pombos”, relata Angela Alonso no livro “Flores, Votos e Balas”.
Patrocínio e Nadina entregam alforrias para escravas durante concerto
Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil
Era um evento abolicionista, já pré-combinado. Na passagem pelo Brasil, Nadina ficou horrorizada com a escravidão. Recebeu uma joia de presente de admiradores e resolveu doá-la para comprar cartas de liberdade. O jornalista e escritor José do Patrocínio, negro e livre, ajudou a colocar a ideia em prática.
Patrocínio já estava acostumado a organizar eventos artísticos em prol da libertação dos escravos. Essa era uma das principais táticas do movimento abolicionista, do qual o jornalista fazia parte. As apresentações de música e teatro angariavam recursos para comprar cartas de liberdade, estimulavam as pessoas a libertarem seus próprios escravos e, principalmente, ajudavam a persuadir a opinião pública.
Foram realizados mais de 800 eventos artísticos abolicionistas, segundo catalogação de Angela Alonso. “A arte era uma das formas mais viáveis de política abolicionista. Nesses eventos há um apelo à humanidade e à compaixão”, diz.
Desde o final da década de 1860, o movimento abolicionista estava nas ruas. Nos anos 1880, atingiu seu auge. A base da sua organização eram as associações abolicionistas, que se multiplicavam pelo país - Alonso registrou 296, em todos os Estados. Entre elas, havia sociedades formadas apenas por mulheres. Para a socióloga, o abolicionismo foi o primeiro movimento social brasileiro.
Além das artes, outra tática usada pelos abolicionistas foi a judicial. Luís Gama, um ex-escravo que se tornou advogado dos escravos, ajudou a libertar cerca de 500 pessoas graças a processos nos tribunais, e fez seguidores.
Gama nasceu livre na Bahia. Mas, ainda criança, acabou vendido como escravo e foi levado para São Paulo. Aos 17 anos, aprendeu a ler e escrever. Em seguida, reivindicou sua liberdade ao seu proprietário - e conseguiu. Afinal, nascera livre, e livre era.
Pilha de ações de escravos no Tribunal de Justiça de São Paulo
BBC Brasil
Escravos em terreiro de uma fazenda de café. Vale do Paraíba, c. 1882 | Marc Ferrez / Coleção Gilberto Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles
Alguns anos depois, Gama se tornou rábula (advogado auto-didata, sem diploma) e fez da profissão uma forma de luta contra a escravidão. Um dos seus argumentos mais vitoriosos para obter a libertação era provar que os africanos haviam sido trazidos para o Brasil quando o tráfico negreiro já era ilegal.
A primeira proibição do tráfico data de 1831, originada de uma queda-de-braço do Brasil com a Inglaterra, que tentava forçar o fim do comércio de escravos. Mas a lei foi pouco efetiva. Nos dois primeiros anos, o comércio de africanos caiu. Depois, voltou a subir e continuou como se nada tivesse acontecido. Foi somente em 1850 que veio a proibição definitiva do tráfico.
Luís Gama - e outros advogados abolicionistas - argumentava que os 739 mil africanos que entraram no Brasil depois de 1831 tinham sido sequestrados, já que o tráfico estava proibido. Por isso, deveriam ser libertados imediatamente.
Outra forma frequente de disputa judicial eram as “ações de liberdade”, pelas quais o escravo solicitava a compra de sua própria alforria. Esse tipo de processo foi um fruto inesperado da lei do Ventre Livre, de 1871.
"As vozes dos abolicionistas têm posto em relevo um fato altamente criminoso e assaz defendido pelas nossas indignas autoridades. A maior parte dos escravos africanos (...) foram importados depois da lei proibitiva do tráfico promulgada em 1831"
Luís Gama
Além de prever a libertação dos filhos de mães escravas nascidos a partir de então, a lei do Ventre Livre permitiu que escravos juntassem dinheiro e comprassem a alforria.
Já a libertação das crianças enfrentou mais problemas. Há relatos de que registros de nascimento foram adulterados para simular que as crianças tinham nascido antes da lei e, portanto, seriam escravas. Em outros casos, os proprietários das mães continuavam explorando o trabalho infantil.
Além dos palcos e tribunais, os abolicionistas travaram um duro embate com os escravistas no Senado. No jogo de forças do Império, a visão que prevalecia era de uma abolição gradual para evitar o colapso da economia, muito dependente do trabalho escravo.
Foi assim que foi aprovado, primeiro, o fim do tráfico; 19 anos depois, o fim definitivo do tráfico; após mais 21 anos, a liberdade das crianças; passados outros 14 anos, a dos idosos, protelando o fim definitivo da escravidão.
A demora parlamentar foi tanta que estimulou o florescimento da desobediência civil.
Negra com seu filho, c.1884 - Salvador, Bahia
Marc Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles
O aumento das revoltas
Fazenda de Quititi, circa 1865, Jacarepaguá, Rio de Janeiro | Georges Leuzinger / Acervo Instituto Moreira Salles
No dia 5 de outubro de 1887, seis escravos decidiram tomar as rédeas de seu destino. Armaram-se com espingardas e facas e, juntos, fugiram da fazenda de seu senhor, no sertão da província da Bahia. O objetivo de Agostinho, Cornélio, José, Teófilo, José Arruda e Libório era ir para uma cidade distante e se passar por não-escravos - na época, o número de negros e pardos livres já era maior que o de escravos.
Nos anos que antecederam a abolição, fugas, revoltas e quilombos fervilhavam no Brasil. Em alguns casos, eram incentivados por militantes – muitos deles, ex-escravos –, que iam para fazendas conscientizar escravos e estimular fugas.
Um deles foi Pio, ex-escravo que tinha se tornado estivador em Santos. Nas vésperas da abolição, Pio organizou uma fuga em massa na região de Itu, interior de São Paulo, rumo a um quilombo no litoral. O grupo, porém, foi massacrado por forças policiais na Serra do Mar.
“Os próprios escravos contribuíram de forma decisiva para acelerar o processo do fim da escravidão”, diz o historiador Ricardo Tadeu Caires Silva, professor da Universidade Estadual do Paraná, que encontrou o caso dos seis escravos na seção judiciária do Arquivo Público do Estado da Bahia. “A abolição foi feita muito mais por uma pressão das ruas, das senzalas, do que por uma decisão política com base na bondade.”
Negros que vão levar açoite, data entre 1832-36
Frederico Guilherme Briggs / Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil
Algumas vezes as fugas tinham como destino Ceará e Amazonas. Em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, ambos Estados já tinham abolido a escravidão, graças à pressão dos abolicionistas para criar territórios livres pelo país. O objetivo era justamente ter áreas de refúgio para escravos fugitivos, além de pressionar a monarquia.
O projeto de criar territórios livres começou no Ceará, que tinha um governo favorável à abolição. Para colocar o plano em prática, José do Patrocínio viajou até o Estado, reunindo em torno de si uma caravana abolicionista, conta Angela Alonso. O grupo bateu de porta em porta para tentar convencer os donos de escravos a libertá-los.
Houve até fugas internacionais, em regiões do Brasil próximas à fronteira de países que já estavam livres da escravidão, observa o historiador José Maia Bezerra Neto, da Universidade Federal do Pará. “Existem estudos que apontam fugas de escravos para a Bolívia, Guiana Francesa, Uruguai. Em minhas pesquisas, encontrei até senhor suspeitando de um escravo que tencionava fugir para a Espanha!”.
Presidente da província do Ceará declara abolição da escravidão no Estado, em 1884
Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil / Publicado no livro "Flores, Votos e Balas"
“Os escravos começam a organizar muitas revoltas e tomaram a dianteira de sair das fazendas, colocando em xeque a segurança pública. Eram influenciados pela efervescência do discurso abolicionista. Na sociedade, também havia um clima de não tolerar mais castigos físicos”, afirma a historiadora Maria Helena Machado, da Universidade de São Paulo, especialista em abolição.
Machado estudou os registros criminais de duas regiões paulistas, de 1830 até a abolição, e percebeu um aumento da violência contra senhores e feitores a partir de 1870. "Eram crimes planejados, insurreições. Muitas vezes, em reação à violência física contra os escravos.” Se por um lado a escravidão havia se mantido pela violência, por outro, alguns escravos passaram a combatê-la também com violência.
Há até casos de escravos que mataram seu senhor. Um deles aconteceu em uma colônia de imigrantes europeus no Espírito Santo. Ali, na década de 1880, um grupo de escravos descobriu que seu proprietário havia morrido e outro indivíduo comprara a fazenda. Eles então armaram tocaia e mataram o novo senhor com golpes de cacetes na cabeça. Justificaram o crime dizendo que temiam maus tratos.
Por outro lado, segundo Machado, os fazendeiros também se organizaram para ameaçar abolicionistas. O caso mais notável ocorreu três meses antes da Lei Áurea: o linchamento do delegado abolicionista Joaquim Firmino Cunho, de Penha do Rio do Peixe, interior de São Paulo. Durante à noite, uma turba de escravistas entrou em sua casa e o espancou até a morte. Participaram do crime dois ex-confederados dos Estados Unidos (os escravistas do Sul que lutaram contra o Norte na guerra civil americana).
Tronco de ferro
Biblioteca Nacional
E depois da abolição?
Senhora na liteira com dois escravos | Bahia, c.1860 | Acervo Instituto Moreira Salles
"A alma nacional mostrou-se preparada em todas as camadas sociais para praticar e receber a liberdade. Em nenhuma outra história do mundo se encontram páginas como as que se têm escrito ultimamente em nossa terra"
José do Patrocínio
A abolição não ocorreu como parte dos abolicionistas queria. O engenheiro negro André Rebouças, que fazia a ponte entre o abolicionismo das ruas e o dos gabinetes políticos e é considerado um dos principais articuladores do fim da escravidão, pregava que a abolição fosse acompanhada de uma reforma agrária, que destinasse terras para os ex-escravos.
Outro grande político abolicionista, Joaquim Nabuco, que nasceu em uma família escravocrata, aderiu às ideias de Rebouças. Ambos temiam que surgisse no Brasil uma nova forma de injustiça social após a abolição.
A forma que a abolição ocorreu, sem apoio para os ex-escravos começarem uma vida nova, tem consequências negativas até hoje, segundo o presidente da Fundação Palmares, Erivaldo Oliveira. Para ele, é uma das causas da profunda desigualdade racial brasileira.
É por isso que o movimento negro não comemora a data , mas sim o 20 de novembro, que marca a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, representando a resistência negra.
Mulher no mercado, 1880-1890
New York Public Library
“É preciso dar terra ao negro.
A Escravidão é um crime.
O Latifúndio é uma atrocidade (...)
Não há comunismo na minha nacionalização do solo.
É pura e simplesmente democracia rural”
André Rebouças
Isso não significa, no entanto, que o 13 de maio não deva ser lembrado, diz Oliveira: “A abolição foi fruto de uma pressão social. A gente precisa recontar essa história, dos heróis e heroínas que lutaram pelo fim da escravidão”. Sem esquecer que, 130 anos depois da abolição, a desigualdade persiste.
“Durante esses 130 anos somos maioria no país - 54% da população é afro-brasileira. Mas não somos 54% no Congresso Nacional, nos ministérios, nos tribunais, nas universidades, nas grandes empresas privadas. Isso precisa mudar”, completa Oliveira.
E se os abolicionistas vissem o Brasil hoje, 130 anos depois? “Acho que eles entrariam em campanha, fariam um movimento de novo. Inclusive com as mesmas bandeiras que eles tinham (de promoção de oportunidades para os negros), que não foram implementadas”, opina Alonso.
Mulher no mercado, 1880 - 1890
The New York Public Library
"O nosso caráter, temperamento, a nossa moral acham-se terrivelmente afetados pelas influências com que a escravidão passou 300 anos a permear a sociedade brasileira (...) enquanto essa obra não estiver concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser"
Joaquim Nabuco
Créditos
- Reportagem
- Amanda Rossi
- Juliana Gragnani
- Gráficos
- Cecilia Tombesi
- Fotografia
- A foto de abertura desta página é de Marc Ferrez. “Escravos na colheita do café, Rio de Janeiro, RJ, c. 1882”, do Acervo do Instituto Moreira Salles. A instituição, que cedeu imagens para esta página, possui importantes fotografias do século 19 no Brasil. Seu acervo está reunido na Reserva Técnica Fotográfica do IMS.
- Imagem de fundo
- Getty Images
- Data de publicação
- 11/05/2018
Feito com Shorthand
Todas as imagens sujeitas a direitos autorais
http://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-sh/lutapelaabolicao
Nenhum comentário:
Postar um comentário