"Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo - mas obedecia sem dizer palavra [...]."
Machado de Assis, Capítulo XI em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
Era o ano de 1839. Nascia o pequeno Joaquim Maria, mais tarde o grande Machado de Assis. Tornou-se, com os anos, reconhecido como um dos escritores mais críticos e irônicos de seu tempo. Seu tom, ou estilo de escrita, possui características que, assimilando-se um pouco às do Romantismo e do Realismo que ecoaram em sua época, são simplesmente singulares. Machado é um escritor único e - por que não? - universal.
Mas o que teria a ver a literatura de Machado de Assis, que pode nos dar tanto prazer durante horas, com os livros e textos debatidos durante o curso "Estudos Alternativos em História e Cultura"?* Se pararmos para pensar, muitas coisas. A epígrafe que abre este pequeno ensaio foi escolhida de caso pensado. Uma hipótese: a trajetória literária de Machado pode ilustrar algo dos debates sobre escravidão e teorias raciais.
Machado de Assis foi uma criança pobre. Mulato, neto de escravos alforriados, nascido no morro, num Rio de Janeiro - da época do Império - diferente do Rio de hoje. ("Cidade Maravilhosa". Quando?) Machado nasceu, casou, amou, escreveu muito e morreu - a 29 de setembro de 1908, aos 69 anos - numa cidade já inexistente cujo retrato pode ser recomposto, em fragmentos, pela leitura de suas crônicas, contos e romances. Quero trabalhar aqui a partir de algumas leituras de disciplina, com Machado de Assis [1].
Imaginemos, então, o que era aquele Rio de Janeiro, em que vivia o pequeno Joaquim Maria. Havia luz na cidade? Havia: à gás, e apenas no centro. Como outras novas metrópoles do mundo, a cidade do Rio de Janeiro à época contava com águas paradas e malcheirosas por toda parte. Oposto disso era a moderna imagem de uma burguesia dedicada ao comércio que surgia nesse cenário importando tudo quanto podia.
Em meados do século XIX, Machado era só um menino. Eram mais profundas as divisões sociais. Senhores de engenhos e "barões" do café comandavam todo o país. Tempo em que o tráfico de escravos negros estrangeiros já não existia, desde 1850. Porém era prática cotidiana a compra e venda de escravo pelo Brasil afora. Em 1880 o Brasil era o único país ocidental que ainda admitia o trabalho sob regime de escravidão.
A trajetória de Machado de Assis foi, desde sua adolescência, no anonimato do morro, marcada pelo aparente esforço a integrar-se à vida intelectual da cidade. Mas não a uma qualquer. Numa sociedade sob forte divisão social, um indivíduo como ele, de origem muito humilde, teria já seu destino traçado desde o nascimento. O letramento, quando possibilitado, era, entre outros, um elemento definidor de funções. Contatos com pessoas no poder, ontem como hoje, diferenciavam as circunstâncias. Machado frequentou escolas regularmente? O que sabemos, pelos estudiosos, é que, ainda muito novo, ele já sabia escrever. A vida intelectual do subúrbio carioca da época era muito diferente da vida intelectual da Corte. Era esta que atraía a atenção do jovem Machado.
Os cafés da Rua do Ouvidor eram lugares de sociabilidades e de exibições públicas de roupas importadas da Europa. O pequeno Joaquim Maria, muito antes da personagem Machado de Assis, frequentava esses lugares a trabalho. Foi tipógrafo, revisor, livreiro, antes de tornar-se cronista. Não terá sido fácil ter sua presença admitida na ambiência intelectual da Corte. Teorias racistas sopradas aos ventos pelo século XIX sustentavam a superioridade de brancos sobre negros. O percurso foi longo...
A ascensão intelectual de Machado de Assis, como escritor nos meios literários da Corte, ocorreria apenas em torno de 1880. Mas até aí, muito fora feito: contatos com pessoas importantes desse meio, por exemplo, com Manuel Antônio de Almeida - já conhecido romancista -, foram essenciais. Sem tais círculos de sociabilidade ligados a cargos e funções de poder (donos de jornais e revistas), a vida de um escritor como Machado, naquela época, talvez não existisse por falta de condições de possibilidade.
O Machado de Assis cronista surgia então nas páginas de jornais cariocas. Seu primeiro texto foi publicado em janeiro de 1955, pelo jornal Marmota Fluminense. A personagem Machado começava a entrar em conflito interno com a imagem do menino pobre Joaquim Maria. Embora escrevesse para diversas publicações, não era possível viver como escritor. Machado aceitou empregos públicos. Carreira burocrática e literatura eram paralelas. Bem cedo percebeu: somente com certa estabilidade econômica teria tempo para dedicar-se à escrita. Suas crônicas puderam ser lidas durante os 40 anos seguintes. Já reconhecido escritor, em 1889, foi diretor de um órgão público: a Diretoria do Comércio. Em 1896, fundou a Academia Brasileira de Letras.
Sem sombra de dúvidas, Machado era e é lido e admirado por muitas pessoas. Suas crônicas - e depois seus contos e livros - carregam um estilo de escrita muito particular dotado de uma sutil ironia no tratamento de temas cotidianos, banais até. Esse tom machadiano tornou-se, com o tempo, a marca registrada de sua literatura. Seus escritos carregam atualidade, suas crônicas, podemos dizer, são certamente intemporais.
Machado de Assis não deixou de retratar, com acuidade crítica, o próprio meio literário ao qual tanto esforço despendeu para fazer parte. Parecia observar atentamente a tudo e a todas as relações de poder cristalizadas, com um meio riso de canto de boca. Mas seu estilo confundia alguns. Foi acusado, muitas vezes, de não ter tratado ou não ter tratado com seriedade aos problemas sociais mais graves de seu tempo, como o da escravidão. Hoje, sabemos que isso não é válido. Machado denunciou a escravidão.
Em 1888, veio a Lei Áurea, que finalmente libertou todos os escravos. A diferença da denúncia de Machado quanto aos problemas trazidos pelo regime de escravidão residia num tom em nada parecido ao que era utilizado nas manifestações abolicionistas. Questão de temperamento e de estilo. Pode-se dizer que a epígrafe deste pequeno ensaio nos dá um belo exemplo do modo como Machado tratava essa questão.
Em suas obras, a vida foi escancarada como um espetáculo de relações, às vezes, pueris. Retratos do palco do mundo. Machado construiu ao longo do tempo um retrato irônico da sociedade fluminense na época do Segundo Reinado. Viu surgir depois a República, no ano de 1889. Em alguns de seus romances, as personagens teriam por principal característica o arrivismo. De modo geral, operou uma sondagem psicológica nas obras, buscando compreender os mecanismos que condicionam as ações humanas. Tais ações seriam determinadas pelo meio social ou seriam apenas escolhas de sujeitos livres? As obras de Machado de Assis, hoje reconhecidas por qualquer pessoa, eram temperadas assim, com profunda reflexão sobre as vivências de suas personagens.
Com certeza, Machado figura como exceção num país racista em muitos séculos e cuja história, narrada sempre do ponto de vista dos vencedores [2], possui o peso da escravidão. Se Joaquim Maria foi uma criança e um adolescente que pôde estudar, ou pelo menos aprendera a escrever desde muito cedo, é porque houve condições para isso em sua vida. Houve proteção quando criança, e apadrinhamentos aos meios literários. Ao pensar essa trajetória é preciso cuidado para não cair em dois buracos totalmente sem fundo. Por um lado, a falácia da meritocracia; por outro, da genialidade do sujeito.
Em um salto no tempo, paramos para pensar: vivemos agora a segunda década do século XXI. No Brasil atual, podemos dizer que há igualdade cívica entre brancos e negros? Racismo é, hoje, crime inafiançável. Como encararmos uma proposta como a do presidente em exercício, Michel Temer, para criação de comissões de verificação sobre a "verdade" da autodeclaração racial para cotas em concursos públicos? [3] É de temer que haja uma comissão estatal para isso. Vivemos em que século? O debate é contínuo: pesquisadores ainda digladiam para determinar se há ou não raças humanas.
Hoje falamos em cotas raciais com certa naturalidade. A autodeclaração, como no caso de cotas em concursos públicos, parece o único caminho sensato. Muitos compreendemos que cotas são necessárias e importantes. Precisam existir. A desigualdade de oportunidades, ou como falávamos de Machado de Assis, de condições de possibilidades de vida é imensa. Salta aos olhos. Mas muitos defendem que isso, sim, seria uma espécie de privilégio. É correto dizer que existem raças humanas? [4]
A noção de raça para alguns autores não diz nada em biologia [5]. Para outros, categorias raciais teriam validade em termos biológicos [6]. Hipótese: se compararmos um europeu, um asiático, um aborígene australiano reconheceríamos diferenças que podem ser consideradas "raciais"? Mas não seria por isso que nossa crença na igualdade dos homens ficaria abalada. "Igualdade quer dizer igualdade cívica. Significa igualdade de oportunidade e perante a lei" [7] Dos bilhões de seres humanos habitantes da Terra, não há nem houve dois humanos com o mesmo genoma. Só houve um Machado de Assis.
Volto à pergunta: no Brasil de hoje há igualdade cívica entre brancos e negros? Nas práticas de relações sociais cotidianas poderíamos dizer que não há mais racismo? Machado de Assis foi uma exceção, num tempo ainda marcado por questões sociais determinantes do futuro de indivíduos. Há outras. Não seriam essas exceções, precisamente, marcos de algo significativo até hoje: que negros, na grande maioria marginalizados socialmente, não contam, de fato, com iguais oportunidades de vida? Do Rio de Janeiro do período do Império até hoje, o que fizemos para mudar essa história?
* Este pequeno texto foi escrito como trabalho final da referida disciplina, pelo Curso de Doutorado em História da Universidade Federal de Uberlândia (PPGHI/UFU).
NOTAS:
[1] Recorri às informações gerais de vida e obra de Machado de Assis contidas no "Pósfácio" escrito por Carlos Faraco, à obra: ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 25º Ed. São Paulo: Editora Ática, 1998.
[2] Ver: MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: SILVA, Marcos A. da. (Org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.
[3] Ver: SCHWARTSMAN, Hélio. Controle racial. Folha de S. Paulo, São Paulo, 5/8/2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/08/1799079-controle-racial.shtml Último acesso: 11/1/2017.
[4] Ver: MAYR, Ernest. O que é evolução. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 301-302.
[5] Ver as obras: GOULD, Stephen J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991; MAYR, Ernest. O que é evolução... Op. Cit.
[6] Ver as obras: DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; ______. A grande história da evolução: na trilha dos nossos ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[7] MAYR, Ernest. O que é evolução... Op. Cit., p. 301.
PUBLICADO EM LITERATURA POR GUILHERME ZUFELATO
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