Escrever à Margem da História (*)
Milton Hatoum
Para um escritor que mora longe dos centros irradiadores de cultura, mas perto de uma das regiões mais exóticas do mundo, cabe-lhe responder a uma pergunta: como povoar de signos este espaço branco (a folha de papel), tendo como referência simbólica um outro espaço em branco, konradiano, lugar longínquo, território perdido "num recanto da floresta e num desvão obscurecido da história"?(1).
Ao invés de discorrer sobre esse dilema, prefiro fazer um breve comentário sobre uma experiência pessoal; ou seja, falar de uma dupla viagem. A primeira, imaginária. O viajante imóvel que durante a sua infância em Manaus, imagina mundos distantes. A segunda, uma viagem real rumo ao sul do Brasil e ao outro hemisfério: deslocamento da periferia para vários centros (o centro é sempre plural), desejo de deixar a margem e navegar no rio de uma outra cultura ou sociedade.
Na minha infância, a convivência com o Outro exterior aconteceu na própria casa paterna. Filho de um imigrante oriental com uma brasileira de origem também oriental, eu pude descobrir, quando criança, os outros em mim mesmo. Ou, como afirma Todorov: "Uma pessoa pode dar-se conta de que não é uma substância homogênea e radicalmente estrangeira a tudo que não é ela própria".(2)
A presença e a passagem de estrangeiros na casa da infância contribuiram para ampliar um horizonte multicultural. Minha língua materna é o português, mas o convívio com árabes do Oriente Médio e judeus do norte da África me permitiu assimilar um pouco de sua cultura e religião. De forma semelhante, a cultura indígena se impunha com a presença de nativos que moravam na minha casa e frequentavam o bairro de imigrantes orientais da capital do Amazonas. Esse aprendizado foi lento, como sempre acontece quando assimilamos uma outra cultura. Nos primeiros anos da minha infância, eu escutava os mais velhos conversarem em árabe, a ponto de pensar que esta língua era falada pelos adultos e o português pelas crianças. Aos poucos, a língua árabe, a história, as paisagens e os costumes de um país longínquo tornaram-se familiares para mim. Os laços sanguíneos contribuíram para isso, mas o pequeno Oriente que me cercava (e do qual emanavam vários códigos visíveis e invisíveis) foi decisivo. Perscrutar um homem ajoelhado no seu quarto, a rezar com o corpo voltado para Meca, era violar um momento de sua intimidade, mas também descobrir o fervor religioso do meu pai. Outros parentes próximos eram católicos ou cristãos maronitas, mas nenhuma religião me foi imposta: era mais importante tomar conhecimento do texto bíblico ou corânico do que optar por uma religião. Afinal, diziam os mais velhos, somos todos descendentes de Abraão.
Além da religião, da língua e dos costumes, a cultura do Outro estava delineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o da narração oral. Essa forma de discurso era usada por exímios contadores de histórias que frequentavam a Pensão Fenícia, lugar da minha infância. Hoje, passados trinta anos, a imagem que faço desses narradores tem alguma semelhança com "o observador errante que percorre a bacia amazônica" e o "homem sedentário", postado na margem do rio, citados por Euclides da Cunha(3).. Imagem ainda mais próxima da figura do narrador evocada por Walter Benjamin. O filósofo alemão, nas observações preambulares de um belo estudo sobre a obra de Nikolai Leskov, ressalta "entre os inúmeros narradores anônimos, dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras": o do viajante ou marinheiro comerciante, ou seja, alguém "que vem de longe" e, por isso, tem muito que contar. Ao outro grupo, pertence o camponês sedentário, o homem fixado à terra, que passou a vida sem sair do país e que "conhece suas histórias e tradições" (4).. Ainda segundo Benjamin, esses dois grupos, através de seus representantes arcaicos, configuram "dois estilos de vida que produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores".
Um resquício desses estilos de vida, aludido por Benjamin existia no espaço que frequentei quando criança. Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa família de comerciantes-viajantes eram, na verdade, narradores em trânsito. Contavam histórias que diziam respeito à experiência recente de suas viagens aos povoados mais longínquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial. Nas pausas do comércio ambulante, exercitavam a arte narrativa(5).. Esses orientais, rudes ou letrados, narravam também episódios do passado, ocorridos em diversos lugares do Oriente Médio, antes da longa travessia para o hemisfério sul. Por outro lado, os amazonenses que haviam migrado para a capital, traziam no imaginário as lendas e os mitos indígenas. Na Pensão Fenícia, as vozes desses nativos faziam contraponto às dos imigrantes orientais: vozes dissonantes, que narravam histórias muito diferentes, mas que pareciam homenagear um tipo de saber citado por Benjamin: "o saber que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição" (6).
Ouvir essas histórias, ver os narradores com seus gestos e expressões foi uma das experiências mais fecundas da minha infância e adolescência. De certa forma, também eu viajei aos lugares mais recônditos do Amazonas e ao longínquo Oriente. Para o ouvinte, aquelas histórias narradas assumiam um caráter ao mesmo tempo familiar e estranho. Aqueles mundos, reais ou fictícios, passaram a fazer parte da minha vida. O viajante imóvel experimenta, assim, a percepção do Outro através do convívio e da palavra oral.
No início dos anos 60, Manaus conservava ainda um ar "caipira e cosmopolita" de que fala Euclides da Cunha. O traçado urbano que remontava à "belle époque" cabocla pouco mudara. Na fisionomia urbana, conviviam a arquitetura popular formada de palafitas (casas de madeira sobre pilotis à beira dos igarapés) e os sobrados de estilo neoclássico construídos nos anos mais prósperos da economia da borracha. Algumas dessas casas frequentei, na minha adolescência, como aluno de cursos de línguas estrangeiras. O ambiente austero em que moravam os europeus contrastava com a azáfama da Pensão Fenícia e das outras casas de imigrantes orientais onde eu passava uma parte do dia. Mas foi durante essas aulas, entremeadas de prosa sobre as capitais e a cultura européias, que tomei consciência da necessidade de navegar em outras latitudes. Durante aqueles anos, ouvir dos mais velhos um conto das Mil e uma Noites ou uma passagem da vida do califa Harum ar-Rashid era tão fascinante quanto ouvir de uma professora francesa um poema de Baudelaire ou contemplar, com um desejo exótico, um mapa de Paris. Reproduções de pinturas européias, poemas e histórias de um "oriente-amazônico", tudo isso fazia parte de um pêndulo mágico que aludia a um outro tempo e a um outro espaço. E é desta forma que se configura o desenho de uma prática exótica: o desejo de saber é também desejo de viajar. Ou, como afirma um filósofo da alteridade: "O próprio desejo é viagem, expatriação, saída do meu lugar"(7).."Para conhecermos nossa própria comunidade, devemos primeiro conhecer o mundo inteiro", observa Todorov, num belo ensaio sobre a diversidade humana(8).. Essa viagem real tem sido uma experiência de vida e de leitura: uma peregrinação pelo sul do Brasil e por várias cidades européias que começou há mais de vinte anos. De certa maneira, essa viagem-leitura tem amplificado as vozes e as visões que passaram pela minha infância. É como se o viajante se distanciasse da "margem da História", a fim de assimilar outras culturas, sem no entanto perder a bússola que aponta para o seu Norte. O Norte, depois da errância e do exílio, é menos uma geografia do que um lugar que se busca. Lugar que já não mais existe, ou lugar utópico que só existe na memória. Em outras palavras: essa tentativa de um retorno à terra natal só é possível através da linguagem: "instância poética da recordação que comemora"(9).."A lembrança, afirma o filósofo Benedito Nunes, cria a proximidade com as coisas, chamando-as à presença, desvelando-as na linguagem"(10)..Creio ser esta a viagem mais fecunda: movimento da palavra poética rumo à origem.
Dois Irmãos
Milton Hatoum volta ao romance com um drama familiar em cujo centro estão dois filhos de imigrantes libaneses: os gêmeos Yaqub e Omar.
No início do século xx, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o viúvo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vão gerar três filhos: Rânia, que não vai casar nunca, e os gêmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casarão que habitam é servido por Domingas, a empregada índia, e mais tarde também pelo filho de pai desconhecido que ela terá. Esse menino — o filho da empregada — será o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado.
Dois irmãos é a história de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos Halim se condena à nostalgia dos tempos em que não era pai, em que não precisava disputar o amor de Zana, em que os dois tinham todo o tempo do mundo para deitar na rede do alpendre e se entregar aos prazeres sensuais. Pelo que nos conta o narrador, Halim estará sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicação de Zana a Omar, seu filho preferido; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família supostamente para amenizar os conflitos com Omar; a relação amorosa entre os gêmeos e a irmã, Rânia. De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador nos diz que esta é uma mulher que não fez escolhas. Aparentemente, não escolheu nem mesmo o pai de seu filho.
Milton Hatoum faz os dramas da casa estenderem-se à cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em símbolos das ruínas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitário, revive também os tempos sombrios em que as praças manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsáveis pelo destino trágico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.
Milton Hautom nasceu em Manaus, em 1952. É professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e professor convidado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Relato de um certo Oriente, seu primeiro romance (Prêmio Jabuti 1990), foi publicado nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Alemanha, em Portugal e na Suíça; entre outros países.
* Entrevista concedida a Aida Ramezá Hanania em 5-11-93. Transcrita e editada por ARH.
(*) Texto da participação do autor em 4-11-1993 no seminário de escritores brasileiros e alemães, realizado no Instituto Goethe, São Paulo.
(1) Euclides da Cunha, Obras Completas, Vol.I. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1966, p.245.
(2) Cf. Tzvetan Todorov, La Conquête de l'Amérique, La question de l'Autre, Paris, Seuil, 1982.
(3) Cf. Euclides da Cunha, op. cit., vol.I. p.231.
(4) Cf. Walter Benjamin, "O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e Técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. S.Paulo, Brasiliense, 1985.
(5) Cf. Idem, ibidem, p.214.
(6) op. cit. p.202.
(7) Cf. Francis Affergan, Exotisme et Altérité, Paris, PUF, 1987.
(8) Cf. Tzevetan Todorov, Nous et les Autres. La réflexion française sur la diversité humaine, Paris, Seuil, 1989.
(9) Cf. Benedito Nunes Passagem para o Poético. Filosofia e Poesia em Heidegger. S.Paulo, Ática, 1992, 2a. edição, p.275.
(10) op. cit. p.275.
Nenhum comentário:
Postar um comentário