A língua também é um fator de segmentação social e segregação?
Para nossa reflexão segue o texto de ULISSES VAZ DE OLIVEIRA.
Qual seja a escolha lexical, norma padrão (termo atual) ou norma culta (termo anteriormente difundido), o fato é que o debate público acerca da extensão de seu uso na escola vem gradativamente dividindo especialistas em educação, gestores e diferentes segmentos da sociedade.
Por ser linguísta, sou absolutamente contra o preconceito linguístico e considero que as variantes dialetais - determinadas prioritariamente por fatores geográficos, históricos e sociais - não devem ser consideradas "erros", mas sim o que são: variações da nossa língua, formas diferentes de expressão.
ENTRETANTO, gosto de usar com os meus alunos uma analogia com roupas. A língua seria como a roupa. Ao estudar e adquirir mais vocabulário e entendimento das regras, seria como você aumentar seu guarda-roupa, comprar calças, sapatos, vestidos, camisas, etc. Cada roupa é específica para uma situação social, assim como cada linguagem também é. Você não vai a um casamento de sunga, ou vai à praia de terno. Você não vai ao médico e fala "porra mano, to cas costa duenu" e também não vai ao show dos Racionais (que eu adoro a propósito) e diz "por gentileza, poderia tocar Negro Drama". Você pode até fazer isso, mas não se sentirá acolhido.
O fato é que o abismo social, a má gestão e a consequente educação deficitária faz com que grande parte dos alunos não tenha "roupa", ou seja, que eles não sejam capazes de se inserir em determinadas dimensões sociais.
Todos migram da norma popular para a norma culta em termos de conhecimento linguístico. Grande parte das pessoas que podem ir a uma vernissage, restaurantes chiques, festas de famosos e outros eventos de elite, também podem se vestir da "roupa" adequada e frequentar um pagode na periferia, falando uma ou outra gíria, comendo um ou dois plurais. Já vi acontecer muito. Porém, o inverso não é verdadeiro, pois mesmo que esteja com a roupa certa, aquele cidadão que não teve educação adequada tem dificuldade de utilizar um simulacro de norma culta, pois a linguagem adequada para esses ambientes é mais difícil e lhe foi privada durante sua vida.
O papel da escola é fomentar os direitos igualitários, democráticos e de livre expressão. Sendo assim, é absolutamente primordial que a norma culta seja valorizada e ensinada na escola, quiçá até de forma rigorosa, pois essa é a "roupa" que falta à grande maioria dos nossos alunos. As gírias e os dialetos comuns nas periferias e dimensões sociais similares, são aprendidas no dia a dia e a escola não tem a função de ensiná-los. Veja bem, não é que a escola deva repudiar e desvalorizar tais dialetos, muito pelo contrário, eles fazem parte da nossa identidade societária, porém a função da escola, principalmente no que concerne à educação pública, é ensinar a norma culta para que TODOS possam ter livre trânsito nas mesmas dimensões sociais.
A intencionalidade ou não do governo é discutível, porém isso não o exime da mais absoluta responsabilidade da perpetuação da estratificação social. A Educação, da forma como está, só faz aumentar a distância entre ricos e pobres e afasta a grande maioria da população das bibliotecas, academias, universidades, enfim, do CONHECIMENTO - pois ele está registrado em norma culta em sua maioria.
Quando eu me deparo com uma pessoa que não sabe "falar direito" (i.e. de forma popular, aquela pessoa que não domina a norma culta), a imagem que me vem à cabeça é uma pessoa de shorts e chinelos nas grades de um portão olhando um luxuoso e farto casamento do lado de dentro.
E se vestíssemos essa pessoa de terno e gravata? E se a grade desaparecesse? E se as fronteiras sociais entre as pessoas fossem abolidas?
Será que é o interesse de quem está na festa? Será que eles têm medo de que os novos convidados possam estragar a festa deles? Ou ainda será que o prazer da exclusividade faz com que tenham ternos extras escondidos em casa, mas jamais queiram doá-los?
Eu vim da periferia. Ainda me lembro de quando ganhei meu primeiro "terno" e muitas portas se abriram para mim. Eu sabia falar e me portar, e num piscar de olhos eu estava rindo do lado de dentro da festa. Olhei para a grade e vi muitos dos meus amigos lá. A grande verdade é que ainda me sinto muito mais confortável de shorts e chinelos, usando a língua que eu gosto de usar. Aliás, odeio ternos. Contudo, gosto de saber de que eles estão ali passadinhos no meu guarda-roupa e de que não haverá grade para mim. O que me entristece é ainda ir para a festa sozinho, sem trazer todos comigo.
A língua também é poder.
Você arranca pela força o dinheiro de alguém, a beleza de alguém, a dignidade, a família, o amor, até a vida de alguém. Mas o conhecimento é intocável. O conhecimento é a maior riqueza que se tem, pois ninguém tira isso de você! É o maior medo de todo governo autoritário, pois se todos sabem a mesma coisa, ninguém é melhor que ninguém.
Chega de hipocrisia e que se devolva à escola o seu papel fundamental!
"Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo" (Paulo Freire)
© obvious: http://obviousmag.org/u_think/2015/a-lingua-e-a-roupa.html#ixzz3giLTG7fr
Qual seja a escolha lexical, norma padrão (termo atual) ou norma culta (termo anteriormente difundido), o fato é que o debate público acerca da extensão de seu uso na escola vem gradativamente dividindo especialistas em educação, gestores e diferentes segmentos da sociedade.
Por ser linguísta, sou absolutamente contra o preconceito linguístico e considero que as variantes dialetais - determinadas prioritariamente por fatores geográficos, históricos e sociais - não devem ser consideradas "erros", mas sim o que são: variações da nossa língua, formas diferentes de expressão.
ENTRETANTO, gosto de usar com os meus alunos uma analogia com roupas. A língua seria como a roupa. Ao estudar e adquirir mais vocabulário e entendimento das regras, seria como você aumentar seu guarda-roupa, comprar calças, sapatos, vestidos, camisas, etc. Cada roupa é específica para uma situação social, assim como cada linguagem também é. Você não vai a um casamento de sunga, ou vai à praia de terno. Você não vai ao médico e fala "porra mano, to cas costa duenu" e também não vai ao show dos Racionais (que eu adoro a propósito) e diz "por gentileza, poderia tocar Negro Drama". Você pode até fazer isso, mas não se sentirá acolhido.
O fato é que o abismo social, a má gestão e a consequente educação deficitária faz com que grande parte dos alunos não tenha "roupa", ou seja, que eles não sejam capazes de se inserir em determinadas dimensões sociais.
Todos migram da norma popular para a norma culta em termos de conhecimento linguístico. Grande parte das pessoas que podem ir a uma vernissage, restaurantes chiques, festas de famosos e outros eventos de elite, também podem se vestir da "roupa" adequada e frequentar um pagode na periferia, falando uma ou outra gíria, comendo um ou dois plurais. Já vi acontecer muito. Porém, o inverso não é verdadeiro, pois mesmo que esteja com a roupa certa, aquele cidadão que não teve educação adequada tem dificuldade de utilizar um simulacro de norma culta, pois a linguagem adequada para esses ambientes é mais difícil e lhe foi privada durante sua vida.
O papel da escola é fomentar os direitos igualitários, democráticos e de livre expressão. Sendo assim, é absolutamente primordial que a norma culta seja valorizada e ensinada na escola, quiçá até de forma rigorosa, pois essa é a "roupa" que falta à grande maioria dos nossos alunos. As gírias e os dialetos comuns nas periferias e dimensões sociais similares, são aprendidas no dia a dia e a escola não tem a função de ensiná-los. Veja bem, não é que a escola deva repudiar e desvalorizar tais dialetos, muito pelo contrário, eles fazem parte da nossa identidade societária, porém a função da escola, principalmente no que concerne à educação pública, é ensinar a norma culta para que TODOS possam ter livre trânsito nas mesmas dimensões sociais.
A intencionalidade ou não do governo é discutível, porém isso não o exime da mais absoluta responsabilidade da perpetuação da estratificação social. A Educação, da forma como está, só faz aumentar a distância entre ricos e pobres e afasta a grande maioria da população das bibliotecas, academias, universidades, enfim, do CONHECIMENTO - pois ele está registrado em norma culta em sua maioria.
Quando eu me deparo com uma pessoa que não sabe "falar direito" (i.e. de forma popular, aquela pessoa que não domina a norma culta), a imagem que me vem à cabeça é uma pessoa de shorts e chinelos nas grades de um portão olhando um luxuoso e farto casamento do lado de dentro.
E se vestíssemos essa pessoa de terno e gravata? E se a grade desaparecesse? E se as fronteiras sociais entre as pessoas fossem abolidas?
Será que é o interesse de quem está na festa? Será que eles têm medo de que os novos convidados possam estragar a festa deles? Ou ainda será que o prazer da exclusividade faz com que tenham ternos extras escondidos em casa, mas jamais queiram doá-los?
Eu vim da periferia. Ainda me lembro de quando ganhei meu primeiro "terno" e muitas portas se abriram para mim. Eu sabia falar e me portar, e num piscar de olhos eu estava rindo do lado de dentro da festa. Olhei para a grade e vi muitos dos meus amigos lá. A grande verdade é que ainda me sinto muito mais confortável de shorts e chinelos, usando a língua que eu gosto de usar. Aliás, odeio ternos. Contudo, gosto de saber de que eles estão ali passadinhos no meu guarda-roupa e de que não haverá grade para mim. O que me entristece é ainda ir para a festa sozinho, sem trazer todos comigo.
A língua também é poder.
Você arranca pela força o dinheiro de alguém, a beleza de alguém, a dignidade, a família, o amor, até a vida de alguém. Mas o conhecimento é intocável. O conhecimento é a maior riqueza que se tem, pois ninguém tira isso de você! É o maior medo de todo governo autoritário, pois se todos sabem a mesma coisa, ninguém é melhor que ninguém.
Chega de hipocrisia e que se devolva à escola o seu papel fundamental!
"Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo" (Paulo Freire)
© obvious: http://obviousmag.org/u_think/2015/a-lingua-e-a-roupa.html#ixzz3giLTG7fr
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