A montagem é baseada em poema de João Cabral de Melo Neto. Em entrevista, Deborah Colker comenta sobre o espetáculo ao Correio Braziliense.
João Cabral de Melo Neto publicou Cão sem plumas em 1950. Pelos versos que acompanham o curso do rio Capibaribe desfila o “ventre triste de um cão”. É um rio que, “como um cão sem plumas”, “nada sabia da chuva azul”. O rio que atravessa a cidade como espada sabia muito da lama, do lodo, dos caranguejos. A imagem de descaso e miséria que assustou João Cabral e o levou ao poema naqueles anos 1950 causou igual impacto na coreógrafa Deborah Colker, que transformou os versos do pernambucano no espetáculo Cão sem plumas.
“João Cabral escreve esse poema em Barcelona. Ele lê uma estatística de expectativa de vida na Índia, que em 1950 era de 29 anos. E em Pernambuco, de 28 anos”, conta Deborah. “Ele leva um susto e escreve o poema. Era degradante, totalmente miserável. E é uma situação que continua a mesma ou pior, porque algo que não se resolve e acontece desde 1950, só piora, todo mundo sabe disso.”
Cão sem plumas, o espetáculo, começou a ser gestado em 2014, logo depois de Deborah estrear Belle, com coreografia inspirada no romance Belle de jour, de Joseph Kessel. O universo literário não era estranho à coreógrafa, que já trabalhou com textos em Cruel e Tayana, mas a poesia é uma novidade. “A poesia é irmã da dança”, avisa. “E, no caso de João Cabral, é árida, crua, contundente, brutal, em cada palavra você vê aquela lama, aquela pedra, aquela terra, aquele homem, aquele caranguejo”.
Deborah já tinha uma parte do roteiro do espetáculo quando viajou com a companhia para a nascente do Capibaribe, no ano passado. A intenção era acompanhar o curso do rio e filmar os bailarinos enquanto interagiam com as paisagens e os habitantes. Acompanhada do diretor Claudio Assis e dos músicos Lirinha e Jorge du Peixe, um dos fundadores do movimento Mangue Beat, a coreógrafa captou as cenas que pontuam todo o espetáculo. Foram 23 dias de filmagens e experiências que envolveram oficinas e saraus com artistas locais em busca de referências musicais e corporais para criar a coreografia.
“A gente apresentava o resultado das oficinas e convivia com essas pessoas, então a gente foi para ensinar, mas aprendeu muito mais que qualquer coisa. A gente já não sabia mais quem era aluno e quem era professor ali”, conta Deborah.
No palco, a lama, os movimentos dos caranguejos e uma mistura que tem coco, maracatu e outros ritmos do agreste pernambucano dão o tom da coreografia. São cenas que Deborah extraiu do poema e, com certa coragem, transformou em metáforas, apesar de ouvir frequentemente declarações sobre a rejeição do poeta quanto à figura de linguagem. Aulas com o acadêmico Antônio Carlos Secchin ajudaram a entrar no universo erudito dos que estudam João Cabral, o que foi importante para compreender alguns aspectos da obra. “Todo mundo diz que a poética de João Cabral é muito crua, que ele odiava metáfora. Eu acho isso muito estranho para um poema que se chama Cão sem plumas. Cão não tem pluma, isso é uma metáfora, é o cão sem brilho, abandonado, solitário, mendigo”, analisa.
Cão sem plumas é um espetáculo sobre o que Deborah Colker aponta como inconcebível e inadmissível. As imagens do filme incluem os bailarinos dançando no mangue, em meio aos caranguejos, à beira do rio, em regiões de seca, com o chão craquelado de uma terra que não via água há meses, mas também em favelas e lixões do Recife. A estética da lama é a estética da pele, algo que, desde o início, esteve presente na maneira como a coreógrafa enxerga tanto o poema quanto a coreografia.
Há oito anos, o nascimento do neto Theo, que sofre de uma doença genética de pele, fez Deborah encarar a vida de maneira diferente. A personalidade proativa e acostumada a encontrar soluções para colocar em prática ideias muitas vezes complicadas esbarrou no insolúvel de uma doença incurável. “Quando reli Cão sem plumas foi arrebatador. Veio como uma flecha. E num momento em que eu tava com certas percepções da vida. Pensei que era incrível porque era um poema sobre o rio Capibaribe, mas sobre todos os rios do mundo, sobre os ribeirinhos, mas sobre todos os ribeirinhos do mundo, sobre o descaso”, diz.
Enquanto João Cabral fala de um homem saqueado, mastigado, podado, ele fala também do descaso. “Um descaso do homem em relação ao próprio homem, em relação à natureza, às crianças, à vida. E tem essa história objetiva, ligada ao nascimento do meu neto, que me colocou no colo algo que não teria solução, não teria cura, algo que é como se fosse o impossível”, revela a coreógrafa. O Brasil de Cão sem plumas não é incurável e Deborah Colker acredita que é possível encontrar um remédio, desde que a resignação não se instale na mentalidade dos brasileiros.
Ponto a Ponto / Deborah Colker
Força
Sou assim: quando quero algo, tenho minha força de vontade, vou lá e aconteço. E aí tive que lidar com isso de uma maneira diferente, com a busca, com a provocação, com a vida de uma maneira diferente. Cão sem plumas fala de cada passo que eu vinha dando. É um poema geográfico e, além de ser universal, ele vai descrevendo aquele lugar e você percebe que aquele é o seu lugar. Aqueles homens caranguejos, saqueados, mastigados, roubados são, ao mesmo tempo, resistentes, teimosos, guerreiros. Aquela terra afirma a pele dele, aquela terra é quem ele é, é a existência dele. Então tem uma força. É a tragédia e a riqueza convivendo junto. Ele é muito geográfico, mas é muito humano, fala muito da existência.
Metáfora
A metáfora não foi o instrumento. O instrumento de trabalho para a coreografia foi o poema. João Cabral foi meu timoneiro. Todo o espetáculo é uma viagem proposta pelo poema, como esse rio começa pequenino, como ele se expõe, como ele seca, como ele vai crescendo, como vai ficando denso, como se encontra com o mar e forma os mangues, como fica maior ainda e chega na cidade grande, constrói as cidades e as favelas e abastece aquela cidade, aquelas vidas.
A coreografia
Esse espetáculo é sobre o inconcebível, o inadmissível. Isso não deveria existir, não deveria ser permitido, não deveria existir uma seca com uma situação que as pessoas vivam em uma condição tão cruel com alguém que diz que é impossível de resolver. Sei o que é isso por causa de uma coisa pessoal, entrei em contato com um mundo relacionado a isso, e quando você ouve dizer que “é assim e assim será”. Não pode, temos que lutar, a gente tem que provocar, buscar. O ser humano tem a obrigação, a missão de não permitir a existência disso. Tem que ser inadmissível, inconcebível e pronto. Ninguém tem que olhar e se acostumar e dizer “é isso”.
Denúncia
O poema denuncia isso, mas de maneira alguma é panfletário. Nem meu espetáculo é. É muito maior do que isso. É político, sim, como nossa conversa é política. Mas daí a se tornar uma coisa panfletária, não. A gente está falando de humanidade, de filosofia, de busca, de provocação, de arte.
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