domingo, 4 de março de 2018

Plebiscito, referendo e iniciativa popular




RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discutir sobre os mecanismos de exercício direto da soberania popular, expostos no artigo 14 da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988: plebiscito, referendo e iniciativa popular. A discussão é em torno da real eficácia de tais mecanismos, a considerar a realidade social e política brasileiras. E, por fim, dizer se o povo brasileiro é satisfatoriamente representado no âmbito do poder legislativo.

Palavras-chave: plebiscito; referendo; iniciativa popular; representação do povo brasileiro.

Sumário: 1 Introdução; 2 Restrição 1: A burocracia governamental; 3 Restrição 2: “Fatores Sociais”; 4 Conclusão; 5 Referências.
1 INTRODUÇÃO

A República Federativa do Brasil, como um Estado Democrático de Direito, tem seu governo baseado na vontade do povo brasileiro. Reza o art. , parágrafo único, da Constituição da

República Federativa do Brasil, de 1988 (CRFB/1988): “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”. Já o art. 14 deste diploma legal estabelece as formas que o povo exerce esse poder, bem como, indiretamente, mostra o tipo de democracia adotada pelo Estado brasileiro - democracia indireta. O sufrágio universal e o voto direto e secreto são o exercício indireto; o plebiscito, referendo e a iniciativa popular constituem as modalidades de exercício direto da soberania popular. A Lei Complementar Nº 9709/1998 regulamenta o exercício da soberania popular. Deve-se ressaltar que o referendo e o plebiscito não compõem processos legislativos autônomos, mas são instrumentos de consulta utilizados privativamente pelo Congresso Nacional, como preleciona o art. 49, XV da CRFB/1988. A LC 9709/1998, art. 10, reza sobre o plebiscito e o referendo: “O plebiscito ou referendo, convocado nos termos da presente Lei, será considerado aprovado ou rejeitado por maioria simples, de acordo com o resultado homologado pelo Tribunal Superior Eleitoral.”. É importante salientar que, para o plebiscito, a Lei nº 9.709/98 determina que aquele será convocado mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso. (FERNANDES, 2011, p. 529). O art. 2º, §§ 2º e 3º da LC 9709/1998, descreve as funções do plebiscito e do referendo, respectivamente.


§ 1º O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido. § 2º O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.

Já a iniciativa popular é uma modalidade um pouco mais ampla de exercício da soberania que as duas anteriores, no sentido de que uma parcela mínima de 1% do eleitorado brasileiro (distribuído em pelo menos 5 estados, com não menos de 0,3% em cada um deles) pode elaborar um projeto de lei. Só que também não é um processo legislativo independente, já que a deliberação, votação, aprovação/rejeição e envio para sanção/veto presidencial, do projeto de lei, ocorre inteiramente dentro do Congresso Nacional, não havendo nenhuma participação do povo externo. Nota-se também que, para exercer o soberano poder que emana do povo, esse deve possuir, pelo menos, capacidade eleitoral ativa. Logo não é qualquer indivíduo que pode interferir no governo da Nação - apesar de emanar do povo brasileiro, só uma parcela legitimada pode o exercer. Além da limitação legal, há outras que restringem o exercício da parcela legitimada - dentre elas a própria burocracia governamental, e o que alguns sociólogos chamam de ‘fatores sociais’ - elementos que compõem a realidade do indivíduo, influenciando, de maneira geral, seu modo de ser, ver o mundo e de viver a própria vida. Este artigo focará, basicamente, nestas duas vertentes de restrição do exercício da soberania popular.
2 RESTRIÇÃO 1: A BUROCRACIA GOVENAMENTAL

A Lei 9709/1998, em seu art. , diz:


“Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3º do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.”. O art. 12 da referida Lei não estabelece procedimento legislativo especial para a apreciação de projetos de plebiscito e referendo: “A tramitação dos projetos de plebiscito e referendo obedecerá às normas do Regimento Comum do Congresso Nacional”. O Regimento, em seu art. 1º, XII, estabelece que as duas Casas do Congresso Nacional reunir-se-ão em sessão conjunta, sob a presidência do Senado, para discutir matéria que compete a ambas, assim definida pela Constituição. O art. 36 do Regimento Comum do Congresso assim descreve o processo discursivo dos projetos de referendo e plebiscito: “A apreciação das matérias será feita em um só turno de discussão e votação [salvo quando se tratar de proposta de emenda à Constituição].”.

O processo parlamentar, por si só, é muito moroso e detalhado, tendo que obedecer aos critérios minuciosos que os diversos diplomas legais estabelecem. A julgar também pela quantidade de feriados nacionais e do próprio DF, além dos períodos longos de recesso parlamentar, vê-se que a apreciação de referendo e plebiscito é muito limitada e concorre com inúmeras outras matérias congressistas (do Congresso conjuntamente e de cada uma das Casas), embora a apreciação seja feita em sessão simples - garantindo um pouco mais de celeridade ao processo legislativo.

As duas modalidades de participação direta dos demais cidadãos brasileiros são mínimas, sendo que o destaque do processo legislativo brasileiro é a atuação indireta do povo (por meio dos parlamentares). A política brasileira basicamente fora definida nos tempos coloniais, sendo que as famílias mais poderosas e influentes na antiga colônia brasileira são as que, por meio de seus descendentes, firmam seu poderio na política atual. O ‘coronelismo’ da dita República Velha, que vigorou desde a proclamação da República em 15/11/1889 até a Revolução de 1930 (quando Getúlio Vargas tomou o poder presidencial e estabeleceu outra ordem de governo), foi um dos principais símbolos da manipulação política da população.

Depois de pouco mais de 40 anos do ‘voto de cabresto’, Getúlio Vargas toma o poder e, até o fim de seu governo em 1945, intercala-o com momentos de democracia e de ditadura. Em 1964, quando houve o Golpe Militar, até 1985, a população brasileira se viu debaixo de uma ditadura cruel, com abertura política mínima. O brasileiro foi votar diretamente para Presidente da República apenas em 1989, 1 ano após a promulgação da CRFB/1988. Pode-se dizer que o brasileiro (depois do Golpe de 1964) foi exercer realmente a cidadania ativa apenas depois do advento da atual Constituição.

A exposição dos fatos citados no parágrafo anterior serve como amostra para aferir a inexperiência do brasileiro com o exercício da política, tanto o exercício indireto quanto o direto. Passaram-se apenas 26 anos da primeira eleição presidencial sob a vigência da CRFB/1988, que é considerada a ‘Constituição cidadã’, a primeira a dar uma abertura tão grande ao exercício da democracia - considerada por muitos doutrinadores de Direito Constitucional como uma resposta ao regime ditatorial anterior. A inexperiência com a cidadania por parte do brasileiro faz com que as escolhas sejam mal refletidas, ou mesmo sequer se tem noção do que significa ser cidadão, bem como a responsabilidade colocada nas mãos do povo pela Constituição. Um povo com tamanho poder, mas despreparado/inexperiente para bem exercê-lo provoca estragos tão grandes na política que se colhe as consequências por muitos anos. É quase como, em uma monarquia absolutista, ter um rei/imperador exercendo seu governo ainda criança, sem o auxílio de nenhum tutor.

Nota-se que a inexperiência política não é apenas de que elege (cidadania ativa), mas também de quem é eleito. O parlamentar, por exemplo, muitas vezes não sabe exatamente qual é a sua função, muito menos sua relevância. O deputado eleito pelo estado de São Paulo, o “Tiririca”, já foi entrevistado inúmeras vezes e em todas as entrevistas deixa claro que ele não tem noção exata de sua função como deputado. Até já foi feito um teste para apurar seu suposto analfabetismo, que de acordo com que aplicou o teste, foi desmentido por simplesmente saber assinar seu nome.

Além disso, há também aqueles (oriundos de famílias tradicionais na política brasileira) que suas verdadeiras motivações são de cunho pessoal - isto é, usam de uma função pública, que se destina a satisfazer os interesses do povo brasileiro, para única e simplesmente favorecerem a si próprios e àqueles que querem favorecer. É uma herança do governo patrimonialista, em que o Estado é propriedade de quem governa, e por isso tem como finalidade satisfazer os interesses dos governantes (ou de quem, direta ou indiretamente, detêm o poder).

Tal realidade é totalmente contraditória ao regime democrático defendido pela CRFB/1988. A situação política do Brasil pode ser assim resumida: um povo inexperiente (e, por isso, facilmente manipulável pelos candidatos aos cargos políticos) elege políticos também inexperientes e que, muita das vezes não tem a devida consciência política a um representante de um Estado Democrático de Direito. E o resultado: os interesses do povo (da maioria que está fora do exercício direto do poder) não são devidamente satisfeitos.

Como bem salientou Freire (2002, p.59), a técnica legislativa pressupõe conhecimento das normas que regem o processo de formulação das normas jurídicas. Parlamentares, apesar da assistência técnica e jurídica que possuem para formular projetos de lei, elaboram projetos de lei que se tornam em normas ineficazes, ou que não bem cumprem sua finalidade. Muita das vezes estão mais ocupados em barganhas, na defesa de seus próprios interesses. Parece até que leis que se destinam a regular exercício de direitos por parte do povo brasileiro - como a LC 9709/1998 que regula os mecanismos de exercício direto da soberania popular - são elaboradas com tantos procedimentos, tantas normas/requisitos a cumprir (burocracia no sentido pejorativo), que possuem o intuito de dificultar o exercício de tais direitos. Se tal intuito é verdadeiro, o a ‘burocracia’ é devida à falta de técnica legal, ou até mesmo a conjugação dos dois fatores, o fato é que a real participação política dos demais brasileiros (que estão fora do poder direto) está longe de ser aquela idealizada pela Carta Magna do Brasil.

Segundo Gonçalves Fernandes (2011, p. 528), os direitos políticos instrumentalizam a condição da cidadania ativa enquanto meio de participação nos processos de formação do poder no Estado e na sociedade, viabilizando o que podemos chamar de exercício da democracia participativa em um Estado Democrático de Direito. Um exemplo a ser dado é o requisito para a iniciativa popular de projeto de lei: 1% do eleitorado nacional, distribuídos em pelo menos 5 estados com pelo menos 0,3% do eleitorado de cada um deles. Ora, estados da Região Norte, com índices populacionais pequenos (os menores do país), precisam arrecadar assinaturas na maioria de seus estados (ou até mesmo em todos) para atingir o mínimo de 1% do eleitorado nacional. Regiões mais populosas e com maior acesso à informação (o que facilita a propagação de uma iniciativa popular de lei, bem como a coleta de assinaturas) conseguem mais facilmente atingir o mínimo estabelecido pela lei, se comparado com a Região Norte (menos populosa e com condições mais precárias de infraestrutura de transmissão de dados, de circulação de pessoas e mercadorias, etc.). Isso resulta na quase impossibilidade de estados da Região Norte proporem um projeto de lei pelo mecanismo da iniciativa popular.

Ainda assim, atingir o mínimo de 1% não fácil, mesmo para as regiões mais populosas (como a Sudeste e a Sul). Isso é lamentável em todos os sentidos: a quase impossibilidade de estados menos populosos elaborarem um projeto de lei e a dificuldade de estados de qualquer região atingirem o mínimo legal. Se um dos ‘pilares’ da Constituição vigente é a igualdade entre todos os brasileiros, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput), não faz sentido regiões menos populosas terem mais dificuldade de exercer a prerrogativa da iniciativa popular que regiões mais populosas. Isso prejudica a representação/defesa dos interesses, já que tem que levar em consideração as diferentes realidades presentes dentro do território brasileiro - é como se existissem vários ‘Brasis’ dentro de um Brasil maior. Cada região tem suas particularidades, necessidades e interesses, que merecem de ser igualmente respeitadas, valoradas e atendidas.

A democracia precisa se desvencilhar da ideia da ‘ditadura da maioria’. Governo do povo não é a mesma coisa que governo da maioria - e isso é mais evidente em um país com uma pluralidade social tão grande, como é o caso do Brasil. Também não se trata de supervalorizar as minorias em detrimento dos demais. Conceder tratamento igual para todos não é ter políticas públicas iguais em todas as regiões do país; é sim conceder as mesmas oportunidades de expressar seus interesses, seus direitos. Isso não é tarefa fácil, mas também não é impossível. É um desafio que todos os brasileiros, tanto os que exercem o poder direta quanto indiretamente, têm que considerar e enfrentar, utilizando de todos os mecanismos concedidos pela Constituição.

Retomando o fato de que a maioria dos que representam o povo brasileiro (que foram eleitos) pertencem a uma realidade bem diferente da maioria que os elegeu, levanta-se outro aspecto do processo parlamentar: quem elabora as leis (os projetos de lei), se estes projetos se transformarem em leis, as elaboram para o povo que, em sua maioria, vivem em uma realidade bem diferente dos seus elaboradores. Essa diferença entre os ‘remetentes’ e os ‘destinatários’ das normas legais causa um descompasso no próprio texto legal. Ferreira de Lima (2015), em seu artigo publicado na revista jurídica online Jus Navigandi, disse:

A eleição de representantes do povo por critérios democráticos pode não ser suficiente para que a sociedade, efetivamente, se sinta representada. Basta verificar-se a composição das casas legislativas, nas diferentes esferas de poder, para se constatar que os segmentos da sociedade não se encontram representados de forma equilibrada.

O Direito deve acompanhar a realidade da sociedade que o legitima. Afinal, de acordo com o já citado art. da CRFB/1988, o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, e todo poder emana do povo. A questão é: como os legisladores, que em sua maioria enxergam o mundo com um horizonte histórico de sentido bem diferente da maioria do povo, podem elaborar normas que condizem com a realidade da maioria dos brasileiros? Por mais que esses legisladores se esforcem para atender aos anseios daqueles que eles representam, eles quase nunca conseguirão executar tal proeza. Daí a importância de se disseminar, facilitando o acesso, os mecanismos de exercício direto da soberania popular. O ilustre professor Afonso da Silva (2005, p. 136) faz a seguinte consideração:

A democracia não teme, antes requer a participação ampla do povo e de suas organizações de base no processo político e na ação governamental. Nela, as restrições a essa participação hão de limitar-se tão-só às situações de possível influência antidemocrática, como as irreelegibilidades e inelegibilidades por exercício de funções, empregos ou cargos, ou de atividades econômicas, que possam impedir a liberdade do voto, a normalidade e a legitimidade das eleições (art. 14, §§ 5º a - CR/1988).

Acerca do Processo Legislativo, indiretamente o foco deste artigo, é importante salientar sua importância no funcionamento do Estado Democrático de Direito. Todo Estado que baseia seu governo em normas jurídicas, por óbvio, as tem em posição de prestígio, sendo que o Poder que as elabora, função típica atribuída ao Poder Legislativo, tem suma e decisiva importância neste tipo de Estado. Esse poder que elabora quase todas as normas que compõem a base jurídica do Estado - basicamente estipula o que se tem nesse Estado, como funcionam e qual a finalidade de cada uma dessas ‘coisas estatais’.

Além disso, atribui direitos e deveres a todo povo. Diz o que pode, o que é proibido, o que deve ser feito, etc. Mendes, citado por Freire (2002, p.2), elenca as funções mais importantes do Poder Legislativo: integração - une os mais variados pontos de vista jurídico-políticos, na proposta de representação da sociedade tão diversificada; planificação - esse poder tem as funções de organizar, distribuir e definir competências (para todos os Poderes e setores políticos); proteção - formulando leis, protegem a sociedade do arbítrio de quem a governa; regulação - dá as diretrizes-base de toda a sociedade; e inovação - as normas jurídicas têm o potencial de se adaptarem à sociedade que constantemente está em transformação. É o povo que elege seus representantes, e parte desses eleitos o foram para exclusivamente exercerem tais funções, recebem o nome de congressistas, parlamentares - deputados ou senadores, a depender da função para o qual foram eleitos. Alguns doutrinadores dizem que o Poder Legislativo é o poder central em um Estado Democrático de Direito, apesar de ser outro que possui a função típica de gestão da pátria: o Poder Executivo.

Até mesmo esse ‘poder-gestor’, que coloca em prática as decisões de governo, que faz (quase) tudo acontecer, só pode exercer as funções que o Poder Legislativo (no caso a Assembleia Nacional Constituinte) estipulou para ele. O Poder Judiciário, por sua vez possui a função típica de ‘dizer o direito’- função jurisdicional, dirimindo conflitos que a vivência em sociedade provoca. Porém as normas jurídicas que baseiam suas decisões são em quase sua totalidade elaboradas pelo Poder Legislativo. Quem tem o poder de fazer as leis não apenas tem uma função, mas ‘dita as regras do jogo’.

Não foi o Legislativo que criou o Estado - fora o povo; mas sem esse Poder o Estado (brasileiro) não poderia funcionar. Seria uma estrutura ‘morta’, ‘parada’. O Poder Legislativo é quase que o ‘motor’ do Estado Democrático de Direito. Ele é quase o ‘motor’, porque o motor verdadeiro é o povo que o legitima, o constitui e (uma parcela) o compõe. Mendes, citado por Freire (2002), faz a seguinte consideração sobre a atividade legislativa:

Embora a competência para editar normas, no tocante à matéria, quase não conheça limites (universalidade da atividade legislativa), a atividade legislativa é, e deve continuar sendo, uma atividade subsidiária. Significa dizer que o exercício da atividade legislativa está submetido ao princípio da necessidade, isto é, que a promulgação de leis supérfluas ou iterativas configura abuso de poder de legislar. É que a presunção de liberdade, que lastreia o Estado de Direito democrático, pressupõe um regime legal mínimo, que não reduza ou restrinja, imotivada ou desnecessariamente, a liberdade de ação no âmbito social. As leis hão de ter, pois, um fundamento objetivo, devendo mesmo ser reconhecida a inconstitucionalidade das normas que estabelecem restrições dispensáveis.
3 RESTRIÇÃO 2: ‘FATORES SOCIAIS’

No princípio da civilização humana, os indivíduos viviam quase isolados, com contato com os outros limitado a disputa por alimento, território ou reprodução À medida que o tempo foi passando, o ser humano foi percebendo que se agrupar a outros de sua espécie aumentava a resistência aos inimigos comuns: predadores, a fome, neve, seca, etc. O instinto reprodutivo levou os indivíduos a se juntarem principalmente aos seus parceiros sexuais, e também a zelar pela sobrevivência dos seus descendentes - garantindo a continuação da espécie humana. Basicamente, fora assim que surgiram as famílias: os primeiros grupos humanos ‘organizados’.

As famílias precisavam estabelecer objetivos comuns, pois não poderiam permanecer unidos como grupo se cada um trabalhasse isoladamente por seus interesses. Tinham que estabelecer metas, finalidades comuns, para que melhor pudesses defender suas necessidades. Assim nasce um governo - que nada mais é que uma autoridade sobre os outros indivíduos. Com o decorrer do tempo, as famílias foram aumentando em número (de famílias existentes, de quantidade de indivíduos que as compunham, algumas famílias se uniram, etc.).

Mais necessidades de mais e mais pessoas tinham que ser consideradas ao estabelecer os objetivos dos indivíduos daqueles grupos. À medida que o número de indivíduos aumentava, mais difícil era a coesão de um grupo. Esses indivíduos precisavam discutir, deliberar uns com os outros, formular novos modos de viver e deixar os que não mais condiziam com as necessidades daquele grupo. Esse ato do grupo deliberar entre si e estabelecer seus objetivos é o molde da democracia direta. Explicitando a ‘antiguidade’ da democracia direta - já que o estabelecimento de um governo centralizado é um fenômeno posterior, produto da evolução e organização das pessoas em sociedades - Soares (2004, p.166) faz a seguinte colocação: “Antes de o estado transformar-se na estrutura hierarquizada e complexa cabia ao povo, sem intermediários, participar da construção das normas, da aplicação do direito e exigir a prestação de contas do exercício da administração pública.”.

Portanto, vê-se que eram as próprias pessoas que decidiam diretamente sobre o que queriam, o que iriam fazer, e assim, sem intermediários, definiam o curso de suas vidas. Ora, se os seres humanos assim viveram durante tanto tempo, até o advento dos Estados (poder centralizado), ou mesmo nas democracias da Grécia e Roma antigas, infere-se que as pessoas podem decidir sobre suas vidas, juntamente com as outras - é possível a democracia direta (ao menos em tese).

As necessidades que os humanos antigos tiveram, bem como as circunstâncias em que viviam - as dificuldades que enfrentavam para sobreviver, condições climáticas, até mesmo o comportamento dos demais membros de seu grupo - é que definiram seu modo de decidir sobre suas próprias existências. Ou seja, a democracia direta foi fruto da cultura humana.

É claro e evidente que muitas coisas aconteceram no mundo (civilização humana, condições climáticas, vegetação, etc.) desde os tempos pré-estatais. A realidade dos seres humanos do século XXI é extremamente diferente, muito mais complexa que a realidade dos indivíduos daqueles tempos. Mas uma coisa não mudou: o ser humano continua a ser fruto do meio em que vive, independente de onde e quando seja.

Assim como as circunstâncias do mundo pré-civilizatório dispuseram os indivíduos a desenvolverem a democracia direta, o presente século predispõe os humanos a optarem pela democracia indireta - com o mínimo de participação possível, o suficiente para garantir o regime democrático e sem que atrapalhe o curso de suas vidas individuais. E um detalhe tem que ser lembrado: quanto mais heterogêneo e maior for determinado grupo de pessoas, mais numerosas e variadas serão suas necessidades.

É uma consequência natural da vida. Por isso, a democracia no Brasil é tão desafiadora, tão complexa. É impossível falar do povo brasileiro sem considerar suas múltiplas identidades, histórias, origens, etc. “A participação popular na formação da lei é um fenômeno complexo, que não se origina nem se exaure na esfera jurídica, mas que nesta pode encontrar o seu mais fértil terreno.”. (SOARES, 2004, p. 25).

O Brasil, desde o início da efetiva colonização portuguesa no século XVI, teve uma população marcada pela desigualdade entre seus membros. A maioria do povo brasileiro, composta à época por escravos africanos e mestiços, era alheia ao poder político. Ao chegarem à colônia, muitos não sabiam falar português. A cultura, religião, tipo físico - os escravos africanos eram muito diferentes de seus dominadores portugueses.

A própria condição desumana e degradante na qual eram submetidos os tornavam marginalizados socialmente. Mesmo depois do início da imigração de outros países europeus (especialmente depois da independência do Brasil), bem como depois da abolição da escravatura em 1888, a situação dos descendentes de escravos não diferia muito da de seus antecessores. A marginalização continuou. A maior parte da população era excluída do processo político. As contenções feitas aos movimentos emancipatórios, desde os tempos da colônia, até mesmo durante a República (a Revolta de Canudos é um ótimo exemplo de levante popular, bem organizado e sucedido enquanto durou), teve como uma de suas consequências a tendência ao afastamento da maioria do processo político.

Quase todos os governos que o Brasil já presenciou investiram, nem que seja indiretamente, no ‘analfabetismo político’ da população brasileira. Além da política, a maioria da população brasileira sofre com um precário sistema de saúde, uma educação de má qualidade, especialmente a rede pública de ensino, tendência ao arrocho salarial - alta carga tributária, alto custo de vida e salários baixos, que não são suficientes para conceder uma existência digna e que garanta o mínimo previsto na Constituição, em seu art. 6º.

Embora que, nos últimos 12 anos, o Brasil tem vivenciado um investimento em políticas públicas destinadas ao melhoramento das condições de vida das pessoas de baixa renda, a marginalização social e política de grande parcela da população ainda faz parte da realidade do Brasil. Ainda mais em tempos de crise financeira como foi em 2008 e o é neste ano de 2015, as condições de vida das pessoas está tendendo a cair cada vez mais. Taxas altas de desemprego, de mortalidade infantil, hipossuficiência financeira, fome, violência, etc. São problemas cada vez mais comuns à realidade brasileira, mas que afetam mais aos mais frágeis (social-financeiramente).

Ora, um trabalhador que passa horas no trânsito e no trabalho, ou mesmo um desempregado que não sabe como pagará suas contas ou comprará o alimento básico para si e sua família, definitivamente não terá ânimo, tempo nem interesse para se inteirar da realidade política de seu país, quanto mais participar dela diretamente (o voto obrigatório a cada 2 anos já é para muitos um sacrifício, e muitos, se pudessem, se escusariam desse exercício da cidadania).

O mundo político, para muitos brasileiros, é um mundo paralelo, intocável e incompreensível. Não é incomum ouvir pessoas dizerem que não entendem ou que não gostam de política, até mesmo que estão decepcionados com a corrupção, e que o Brasil não tem jeito de melhorar.

As atuais condições sociais e políticas também não cooperam para que as pessoas se inteirem mais sobre a política do país. Segundo Soares (2004, p.42) os mecanismos de exercício da soberania popular: o sufrágio universal e periódico, plebiscito, referendo, iniciativa popular de lei, não são suficientes para garantir a efetiva participação da população no poder político. Além disso, os próprios governantes não se interessam ou fazem algo de eficiente para que os brasileiros participem mais das decisões.

Para muitos políticos, é ótimo que a maioria permaneça alienada, porque assim eles continuam a defender seus próprios interesses sem enfrentar resistência por parte dos demais. O ideal é que todos os brasileiros se interessassem e fizessem algo pelo Brasil, participando da política mais diretamente, e mesmo exercendo com mais responsabilidade e consciência sua cidadania indiretamente. Só que esse ideal está longe de se tornar realidade.

Um reflexo do descaso que os políticos têm para com a integração dos demais brasileiros com a política é a publicização das leis. O procedimento padrão de divulgação das normas jurídicas é a divulgação no Diário Oficial. Esse procedimento está longe der ser eficiente no real conhecimento das leis por parte da maioria da população. São poucas as pessoas que consultam a publicação oficial. Muitas pessoas sequer sabem da existência do Diário Oficial. E por que não divulgar as leis por outros meios além do Diário, meios de mais fácil acesso, e que as pessoas de fato consultem. Uma alternativa seria a publicação de leis (ou melhor a notícia da publicação) em jornais ‘populares’, como SUPER Notícia, AQUI, e nas redes sociais (Facebook, Twitter, etc.)

A linguagem poderia ser mais simplificada, dando a notícia do que a lei trouxesse de mais essencial, facilitando seu conhecimento e assimilação por parte da maioria das pessoas. Percebe-se o quanto a política ainda é distante da maioria dos brasileiros, e que os fatores sociais, somados ao desinteresse por parte dos representantes eleitos em fazer com que essas pessoas marginalizadas social e politicamente se integrem à política, contribuem para que o exercício da cidadania (direto e indireto) seja um mero ideal, existente apenas na Constituição.

“A burocracia e o formalismo exacerbados interferem na relação entre Estado e Sociedade porque introduzem signos desconhecidos para uma das partes do discurso, a mesma parte que legitima e valida (através de uma mínima eficácia social normativa) as atuações estatais.” (SOARES, 2004, p. 57).
4 CONCLUSÃO

Segundo Soares (2004, p. 170), “não obstante sua presença simbólica dentro de vários segmentos e matizes políticos e jurídicos, a participação popular na produção legislativa, não alcança no plano fático a sua dimensão conceitual e radicalmente democrática.”.

Ainda há muitos problemas no exercício da cidadania, muitos fatores que dificultam seu exercício consciente por parte da maioria dos brasileiros. Um desses fatores é de ordem burocrática-legislativa: A LC 9709/1998 estabelece requisitos muito difíceis de se conseguir, ou são muito morosos e assim a participação do povo demora a ser realidade, ou até mesmo nem chegam a ser. O processo legislativo ordinário (aquele padrão para projetos de lei que são criados e aprovados no âmbito parlamentar, sem participação direta dos demais brasileiros)é tão moroso que muitas matérias são acumuladas com outras, vindo muitas delas a serem ignoradas ou esquecidas.

Para se falar na eficácia da representação popular, sendo esta garantida no art. 14 da Carta Magna brasileira, deve-se considerar a lei que regula os mecanismos de participação popular: referendo, plebiscito e iniciativa popular. Para Soares (2004, p. 170), esta (lei), a LC 9709/1998, não regula as nuances essenciais à concretização do exercício direto da soberania, e que a pouco expressiva participação da população no processo legislativo infraconstitucional interfere na sua própria concretização. As leis, portanto, não têm a devida eficácia ou nem sequer cumprem o propósito para o qual foram criadas.

No caso do processo legislativo, a norma que o rege dificulta a formulação de leis em tempo hábil, dificultando a defesa de muitos direitos/garantias. Em contrapartida, leis que têm alcance limitado ou menos importantes para a maioria da população brasileira são muita das vezes aprovados muito mais rapidamente que outros de maior importância, que representam os interesses de muitas pessoas, única e simplesmente porque são de interesse pessoal do parlamentar, porque essa o beneficiará de alguma forma.

Outro fator que dificulta a satisfação dos interesses da maioria dos brasileiros, ou melhor dizendo, que atrapalha a devida representação da maioria do povo brasileiro por parte dos parlamentares é a diferença de realidade entre esses e aqueles. “Todos os participantes da ação comunicativa portam consigo a sua visão de mundo, as suas aspirações, as suas prenoções, e os lugares comuns que interferem no modo e porque agem, no significado e dimensão do seu agir.” (SOARES, 2004, p. 29). Por isso, a grande parcela da população não é devidamente representada, ou sequer seus interesses são levados em conta. Ainda nas palavras de Soares (2004, p. 305):

O discurso da norma possui como destinatário/receptor aqueles que o constroem, bem como aqueles que legitimam a própria ação comunicativa dele decorrente. Como tal, a busca do sentido para as normas, substância da escolha do conteúdo normativo que por sua vez define prioridades, necessita dialogar com todos os envolvidos no processo de decisão atinente à produção do direito.

A marginalização social e política de grande parte da população brasileira tem suas origens na colonização do Brasil. Desde seu início a política pública foi de afastar o máximo possível a ‘massa’ do poder, deixando-o alheio aos avanços políticos, científicos, tecnológicos, etc. Os vários governos brasileiros usaram de políticas públicas de contenção aos levantes sociais. Além desse esforço de afastamento do povo da política, as próprias condições sociais/de vida da maior parte da população brasileira são adversas e não facilitam o exercício da cidadania (ativa, passiva, direta, indireta). A linguagem rebuscada/de difícil interpretação das leis, a publicação apenas no Diário Oficial - fonte desconhecida ou não consultada pela maior parte da população brasileira, dentre outros fatores, contribui para que a população continue à margem da política, desconhecendo as leis que muitas vezes até os prejudicam ou deixam de beneficiá-los como deveria.

Segundo preleciona Soares (2004, p. 307), a simples publicação no Diário Oficial não dá a devida publicidade às normas estatais. É necessário difundir mecanismos de acesso ao processo legislativo, condizentes com os avanços tecnológicos, além de uma linguagem mais simples e próxima do cotidiano da maioria da população brasileira. Soares (2004, p. 307) também apresenta alternativas para melhorar o acesso da população não apenas aos mecanismos de participação popular, mas também ao próprio fazer da política. São eles: eliminação do analfabetismo; disponibilização nas escolas públicas de aparato técnico necessário ao aprendizado para utilização de equipamentos informáticos (uma sugestão da autora deste artigo é a disponibilização de tablets).

Conclui-se que o Brasil necessita muito mais do que uma norma constitucional para garantir a eficaz participação popular na política. Dispor de uma Carta Magna que tanto valoriza o indivíduo e lhe garante direitos e diversas garantias, como é o caso da CRFB/1988, é muito importante, mas não é suficiente ao próprio Estado Democrático de Direito. A democracia requer um povo que se interesse e tenha condições de a exercer, bem como uma cúpula representativa que de fato tenha consciência e a devida responsabilidade para com o exercício de sua função.
5 REFERÊNCIAS

VADE MECUM. 9. Ed. Atual. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. 1846 p.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. Ed.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 1445p.

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Priscila Borges

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