sexta-feira, 12 de maio de 2017

Crítico literário, pensador social e militante político, Antonio Candido revolucionou a maneira de ver a cultura nacional e de interpretar o Brasil


“A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas.” Quem lê a frase pode acreditar que não passa do disparate de um crítico rancoroso. Parece confirmar aquela ideia de que a crítica em geral – seja nas resenhas de livros, nos comentários de filmes e até mesmo nas mesas-redondas de futebol – é praticada por sujeitos amargos, secos, estéreis. Uma gentinha murcha e sem viço que não conseguiu escrever uma obra-prima, dirigir um bom filme ou bater um pênalti decisivo.

E, no entanto, nada mais distante da realidade. Foi precisamente com essa frase – um dos trechos mais citados do livro Formação da Literatura Brasileira, escrito em 1959 – que Antonio Candido deu o pontapé inicial em uma verdadeira revolução na maneira de analisar a literatura nacional. E mais: com seus escritos, o crítico brasileiro mudou a interpretação da sociedade brasileira, ajudou a renovar a militância política de um país mais acostumado à ação subterrânea de partidos que à ação popular e contribuiu para moldar a mente de milhares de seguidores. Até alguns dos nossos principais políticos passaram pela sua escola: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi seu aluno na Universidade de São Paulo e, junto com o presidente Luís Inácio Lula da Silva, Antonio Candido ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores em 1980.

Mas como é que um crítico de livros conseguiu fazer tanta coisa? É que, para Antonio Candido, a crítica não se limita à análise dos nossos livros. Seu grande esforço foi fazer diálogos – entre a literatura brasileira e a universal, entre a produção cultural e a realidade de um país marcado pela desigualdade, entre teoria e militância. Além disso, é um crítico que pode se orgulhar de escrever bem (veja trecho na próxima página). Dono de uma prosa que desce macia e mais parece conversa de amigo, Candido perpetrou alguns dos melhores ensaios da língua portuguesa, repletos de sacadas inauditas e interpretações que, com o tempo, foram se tornando quase definitivas.

E teve uma ideia que ninguém havia tido: nossa literatura, por mais capenga que possa parecer a olhos desavisados, é a única capaz de nos exprimir. Não somos pentacampeões das letras como a França, a Inglaterra ou a Rússia, que podem estufar o peito e declamar os nomes de dezenas de grandes autores lidos por todo o mundo em praticamente todas as línguas. Porém, as obras produzidas em português brasileiro, e que retratam um certo jeito nacional de levar a vida e observar o mundo, são importantes, ao menos para nós. Isso não significa que qualquer porcaria encadernada que tenha sido escrita entre o Oiapoque e o Chuí tenha mais importância que clássicos como William Shakespeare ou Honoré de Balzac. Significa que um dia desenvolvemos (nas palavras do crítico) “o desejo de ter uma literatura”, e que isso já é o bastante para um estudioso se debruçar sobre os livros escritos por aqui. O impacto de uma idéia dessas foi monumental mas, para captar seu poder de fogo, é preciso antes saber como ele chegou lá.

CLIMA INTELECTUAL

Manja aquele papo de “testemunha ocular da história”? Antonio Candido de Mello e Souza é um desses. Nascido em 1918 no Rio de Janeiro, ele teve seu período principal de formação no entre-guerras, cresceu nos tempos sufocantes do Estado Novo de Getúlio Vargas e amadureceu no contato com escritores modernistas como Mário de Andrade e na amizade com meio mundo intelectual brasileiro.

A crítica literária nessa época era um gênero meio bizarro. Os bambambãs, figuras como Silvio Romero e José Veríssimo, aclamados como sábios incontestáveis, trocavam bordoadas verbais para ver quem era o melhor palpiteiro das nossas letras. Era um tempo em que a análise de livros ainda obedecia a poucos critérios, mais valendo a impressão pessoal do crítico que pressupostos teóricos objetivos – crítica impressionista é o nome para esse tipo de comentário. Os textos tinham vocabulário técnico e eram cheios de teorias de diversas áreas do conhecimento – um verniz de ciência para justificar a opinião pessoal do crítico. Eles eram, em sua maioria, formados em direito mas batalhavam pelo leitinho das crianças trabalhando no jornalismo diário.

Candido seguiu um caminho parecido no início da vida. Cursou direito (mas abandonou para se formar em sociologia) e escrevia críticas literárias para jornais. Uma vez formado, começou a se dedicar a pesquisas nas áreas de literatura e sociologia – uma mistura de assuntos que influenciou toda a sua obra. Já nesses primeiros anos, conseguiu mostrar que era craque: percebeu o valor de escritores como João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector quando estes ainda eram desconhecidos e não tinham uma vírgula do sucesso que têm hoje .

Na década de 40, Antonio Candido era um crítico em busca de “causas”, de “condicionamentos”, entre a história e as obras literárias. Eram idéias muito em voga na época, vindas principalmente do escritor russo Nikolai Bukharin, que, influenciado pelo positivismo e pelo marxismo, simplesmente relacionava cada obra a um período histórico ou uma situação real. É como se as obras de Machado de Assis apenas descrevessem a burguesia carioca, ou como se Vidas Secas, de Graciliano Ramos, fosse só um relato sobre a vida nos sertões. Cada livro era analisado como o retrato de um momento – sem levar em conta as influências artísticas ou a história do autor.

Mais tarde, a antropologia social inglesa e as idéias do new criticism (“nova crítica”) americano (um tipo de crítica que pregava a leitura de cada detalhe – estilo, linguagem, personagens, sintaxe, influências – de um determinado texto) falaram mais alto na carreira de Antonio Candido. Tais influências ajudaram o crítico a perceber que, ao longo da história, as obras literárias estabelecem um diálogo com o tempo em que foram escritas e com outras obras. Melhor dizendo: é como se cada livro escrito estivesse “conversando” com seus contemporâneos e com as obras do passado literário.

Essas diversas influências de Antonio Candido começam a virar uma teoria mais ou menos definida na tese Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero, escrita em 1945, uma análise dos trabalhos do principal nome da geração anterior. Está ali o papel que as considerações “fora do livro” – como análises sociológicas e psicológicas – devem ocupar na leitura de textos literários. E, principalmente, o trabalho traz um novo tipo de leitura do nosso passado cultural. Apesar de reconhecer o muito de ridículo na obsessão cientificista de Silvio Romero, Candido mostra que mesmo esses defeitos podem servir para orientar a trajetória dos novos críticos. Para o bem e para o mal, Silvio contribuiu para o estabelecimento de uma tradição brasileira de crítica literária. Estava aberto o caminho para uma nova visão da literatura brasileira.

UMA IDEIA DE BRASIL

Antonio Candido só iria realmente pôr à prova seu método crítico uma década mais tarde, com a publicação de Formação da Literatura Brasileira. Assim como as obras de Gilberto Freyre (personagem da série “Grandes Mentes” na edição de outubro de 2003), de Sérgio Buarque de Holanda (autor de Raízes do Brasil) e de Caio Prado Júnior (que escreveu Formação do Brasil Contemporâneo), o livro de Antonio Candido fornece algumas chaves para a explicação do nosso país. Ao utilizar as lentes da literatura, o crítico apresenta os vários momentos em que, nos primeiros séculos depois da descoberta do Brasil, os brasileiros tentaram se desvencilhar da herança portuguesa, buscando a auto-afirmação e uma identidade nacional singular. O meio privilegiado para esse tipo de estudo é o campo cultural, em que os traços mais importantes e as características mais decisivas da “brasilidade” aparecem sem interferências políticas ou econômicas.

A contribuição teórica de Formação da Literatura Brasileira – e o que assegura ainda hoje a originalidade da obra – é o olhar histórico postado sobre os acontecimentos literários. Não fez como a crítica do passado, que analisava a literatura produzida no Brasil sem estabelecer nenhuma comparação com as obras do resto do mundo. Antonio Candido percebe que, nos momentos iniciais, as letras verde-amarelas não eram apenas uma adaptação das últimas modas da cultura européia. Havia ali uma busca de um traço exclusivamente “nosso” e, ao mesmo tempo, que não se afastasse do que estava sendo feito no resto do mundo ocidental. Em alguns momentos, Candido percebe que a singularidade da literatura brasileira – influenciada pelas nossas condições sociais e culturais – permitiu até que ela superasse algumas obras da literatura européia, como era o caso de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e O Cortiço, de Aluízio Azevedo (veja ao lado).

CRÍTICA POLÍTICA

Para Antonio Candido não basta denunciar os problemas do país. Se quando fala de livros também arranja uma maneira de explicar o Brasil, ele nunca iria deixar de acompanhar de perto (e às vezes até protagonizando) a vida política do país. Inimigo do fascismo, ainda em 1945 ajudou a fundar a União Democrática Socialista, que mais tarde iria se transformar no Partido Socialista Brasileiro. Também foi diretor de redação da Folha Socialista, jornal cuja intenção era anunciar a aurora de um mundo igualitário.

Por isso Antonio Candido sempre foi muito contundente ao encarar o Brasil e suas desigualdades. Sua crítica sobre o estado de coisas político do país pode soar desalentadora e até cruel – mas quem haveria de discordar de tanta lucidez? Pois em seus livros o crítico mostra que, se por um lado os donos do poder conseguiram chegar a um grau de organização cultural que possibilitou a formação de uma literatura nacional (porque num país de analfabetos a literatura é, afinal de contas, um objeto da elite), por outro não estenderam esses benefícios a campos essenciais como a educação. Isso porque os mesmos autores que começavam a ganhar prestígio e a moldar uma sociedade culturalmente civilizada conviviam (muitos deles em aparente harmonia) com chagas como o analfabetismo, o trabalho escravo e as injustiças sociais. Melhor dizendo: enquanto houver tanta desigualdade, a literatura sempre será um artigo de luxo, uma espécie de bolsa Louis Vuitton feita para o desfrute de uma elite incapaz de democratizar a leitura e a instrução. Esse vício inclui até mesmo aqueles escritores que supostamente denunciam a miséria brasileira porque, afinal de contas, eles não serão lidos por aqueles a quem supostamente tentam dar voz.

Mas Antonio Candido não ficou só no discurso. Durante a ditadura (1964-1985), atuou como defensor de causas humanitárias, denunciando como a repressão policial estava roendo as entranhas do Brasil e desagregando a nossa sociedade. Para ele, as arbitrariedades da perseguição política contaminaram em grande parte a atuação das polícias, que se habituaram à tortura para arrancar confissões até do ladrão de galinha mais pé-de-chinelo. Ficou famoso também seu depoimento em pleno governo de Ernesto Geisel, quando afirmou que era importante discutir o socialismo, palavrinha então desaparecida da arena política e que, nos ouvidos verde-oliva dos donos do pedaço, era coisa pior que xingar a mãe.

Com os ventos da abertura política soprando mais forte, Antonio Candido seria um dos notáveis que ajudariam a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980. Até pouco tempo atrás, costumava participar dos longos debates e mesas-redondas organizados pelo partido. Ainda hoje sua opinião orienta os rumos do PT e, conseqüentemente, está por trás de algumas medidas do atual governo brasileiro. Nada mais justo para o intelectual que a vida inteira ajudou a traduzir o Brasil.

Para saber mais

Obras do autor:

Formação da Literatura Brasileira, Itatiaia, 2000

Os Parceiros do Rio Bonito, Duas Cidades/34, 2002

Textos de Intervenção, Duas Cidades/34, 2002

Vários Escritos, Duas Cidades, 2000

Sobre Antonio Candido:

Antonio Candido: Pensamento e Militância, Flávio Aguiar (org.), Humanitas/Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999

Seqüências Brasileiras, Roberto Schwartz, Companhia das Letras, 1999

Dentro do Texto, Dentro da Vida, Maria Ângela D’Incao e Eloísa Faria Scarabôtolo, Companhia das Letras, 1993



CLássicos de Candido
Livros que, segundo o crítico, ajudam a entender o Brasil

O Cortiço – Aluízio Azevedo

Apresenta a extrema violência das relações sociais no Brasil e ilustra como o convívio com a escravidão levou ao desprezo por quem sua a camisa. Há ali a tendência de atribuir ao trabalhador um grau de animalidade.

Dom Casmurro – Machado de Assis

Fotografou a hipocrisia e a violência dos endinheirados. Durante décadas uma boa parte da crítica acreditou que Machado fosse alienado politicamente. Antonio Candido demonstrou justamente o contrário.

Memórias de um Sargento de Milícias – Manuel Antônio de Almeida

Mostra o quanto podemos ser avacalhados. É como se o Brasil vivesse à margem do capitalismo, daí o “jeitinho” funcionar para obter vantagens numa sociedade em que o esforço vale muito pouco.



Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa

Ilustra a dualidade entre razão e mito no imaginário popular brasileiro. Riobaldo, o jagunço imortal de Guimarães Rosa, encarna a ambigüidade moral e existencial do brasileiro.
A literatura é nossa

“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura européia, procuravam estelizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam – dos quais se formaram os nossos.”

(Trecho de Formação do Pensamento Brasileiro)

Leandro Sarmatz

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