O desmoronamento que matou mais de mil pessoas em Bangladesh suscitou o debate sobre a exploração no mundo da moda. Será que a barganha por estilo compensa?
Bangladesh, 24 de abril. Um prédio onde funcionavam várias confecções desaba próximo da capital Daca. Com o passar dos dias, o número de vítimas só crescia: o saldo total foi de 1.127 pessoas mortas. As cenas de horror no local mostravam corpos misturados com roupas e etiquetas de grandes redes mundiais de vestuário, como a sueca H&M, a espanhola Inditex (conglomerado de cinco marcas que inclui a Zara), além da holandesa C&A. Essas magazines, espalhadas por vários cantos do globo, fazem a alegria de “fashionistas” ao vender os últimos gritos da moda a preços acessíveis.
Todas essas redes têm parte de sua mão de obra situada no país asiático, onde, não é de hoje, sabe-se das péssimas condições de trabalho, com denúncias recorrentes feitas por ONGs. Antes da tragédia, considerada um dos piores acidentes da indústria têxtil da história, vários elementos já anunciavam que um drama maior no país era questão de tempo: em 2012, 111 pessoas morreram em um incêndio em uma confecção. O fogo costuma ser frequente nas 5,4 mil fábricas têxteis espalhadas pelo país, setor fundamental para a economia por lá (onde gera US$ 29 bilhões por ano). China, Índia, Vietnã e Camboja são outros países focados na produção têxtil, e que fornecem força de trabalho por pouco dinheiro.
Jum Nakao, designer e direção de criação
Entrevista
“Vivemos um momento em que se consome sem cultura ou consciência”
Em 2004, durante seu último desfile na São Paulo Fashion Week, Jum Nakao surpreendeu o público quando as modelos, ao fim da apresentação, rasgaram as belas roupas feitas de papel vegetal após 700 horas de trabalho. O projeto A Costura do Invisível, que virou livro e DVD, captou as diferentes reações sobre a ação e discutiu, segundo Nakao, o que está por trás do que “realmente importa”. Dedicado atualmente a projetos de moda, mas que integram linguagens com arte e design, ele conversou por e-mail com a Gazeta do Povo sobre as consequências geradas pelo fast fashion. Leia os principais trechos da entrevista:
O trágico desabamento do prédio com confecções em Bangladesh retomou o debate sobre a exploração existente no mundo da moda. Qual a sua análise sobre esse modo de produção?
Nesta batalha midiática, que explora o velho enredo, o forte que oprime o fraco, se cria uma cortina de fumaça sobre o real problema. O cerne é a política local omissa em oferecer sistema educacional eficiente na formação de uma sociedade com bons princípios morais, éticos e, consequentemente, atuante. Assim, se obtém todo o sistema ideal para proliferação de corrupção, ineficiência dos poderes e sustentação da baderna, que tão bem conhecemos.
Essas situações parecem não abalar os faturamentos dessas grandes marcas...
As “grandes marcas”, como qualquer empresa, simplesmente respondem às demandas de seu público, quer seja em preço, qualidade e responsabilidade ética. Quem manda é o mercado. Se o consumidor prestigiar, elas continuarão a corresponder, e somente existem porque uma “grande massa” é sua comparsa. O sistema é de trocas, todos obtêm seu quinhão.
Em alguma medida, as marcas correm riscos com o uso dessa mão de obra, isso mancha suas imagens?
O risco que correm é com relação à correspondência entre o que é comprado e o que é recebido, visto que a qualidade é diretamente resultado da qualificação da mão de obra local. Considerando que lugares assim não investem na formação de seu povo, é de se esperar reflexos na qualidade do produto. Mas, as “grandes marcas” não correm risco, pois a alienação é global e generalizada. Vivemos um momento de grande banalização de valores. Se consome sem cultura ou consciência.
Estamos na era do fast fashion, com consumidores que buscam novidades rapidamente. O que esse comportamento pode gerar?
Antigamente conhecemos o fenômeno zapping, onde em função do controle remoto, as pessoas permaneciam pouco tempo nos canais de televisão. Atualmente podemos citar o Twitter, mensagens rápidas em poucas linhas. A velocidade se tornou a referência de contemporaneidade, assim como o espaço privado se tornou permeável. A moda atual, fast fashion, reflete uma sociedade num momento em que o tempo se fragmenta. Para que a sociedade e a moda não se estilhassem nesta fragmentação do tempo é fundamental a capacidade de discernimento, que se obtém paradoxalmente através da pausa. Pausa para educação, reflexão, autoconhecimento.
As condições de trabalho em confecções espalhadas pelo mundo, sobretudo em países asiáticos, são degradantes. Por outro lado, muitas vezes, é a única opção de trabalho para essas pessoas. Como analisa essa ambiguidade?
Não existe ambiguidade entre ser explorado e exploradores. Há conivência entre as partes. O poder está nas mãos da sociedade. Se a sociedade se cala e aceita, precisamos respeitar e lamentar seu silêncio, sua omissão e renúncia por uma vida melhor.
É possível reverter essa situação, quais ações considera eficientes?
Somente pela educação e transformação nos tornamos independentes e capazes de mudar. Não podemos delegar a governos ou ONGs. Quem faz um país é seu povo. O consumidor precisa, acima de tudo, se considerar merecedor de algo melhor, digno de bons serviços, bons produtos, de semear através da sua compra um mundo melhor.
Jum Nakao, designer e direção de criação
A dificuldade de “fugir” da China
Formada em design gráfico pela UFPR, Suiane Oliveira Cardoso deixou a vida estressante das agências de publicidade para se dedicar à moda. Foi fazer cursos na área no Senac, passou meses fora do país e resolveu abrir um ateliê na rua São Francisco – que já tem três anos. A produção pequena, parte terceirizada para uma costureira também local, leva na etiqueta um orgulhoso “feito em Curitiba.” Mesmo assim, Suiane não consegue escapar do tecido vindo da China: a fábrica brasileira que era sua fornecedora faliu há mais de um ano.
Em suas pesquisas, não encontrou outra saída por dois complicadores: além de o tecido nacional ser mais caro, como ela necessita de pouca quantidade o preço costuma triplicar, algo que encareceria demais o preço final da roupa, o que não é a intenção da designer. “Consigo garantir que a minha produção é aqui, e que eu pago o preço justo para a minha terceirizada. Só quem tem capital alto consegue trabalhar com tecidos nacionais de alta qualidade.”
Porém, Suiane sabe da fama do produto “importado.” Quando busca zíperes nos armarinhos do centro, a pergunta logo é: “quer o nacional ou o ruim?” Um custa R$ 3, o outro, cerca de R$ 0,80. “Já usei o mais barato, mas não compensa. O zíper logo emperra e o cliente volta na loja. Aí o conserto fica mais caro”, conta.
O designer e criador da marca Arad, Roberto Arad, que também realiza o trabalho localmente, coloca uma cota mínima para usar tecidos chineses, mas diz que encontra material asiático de qualidade com os seus importadores. “Eles têm produtos bacanas, que meu cliente vai querer.” Arad enfatiza, no entanto, que o produto nacional dá mais segurança. “A empresa brasileira avisa se o tecido vai encolher, mesmo que seja 2%. Nessa temporada, comprei um produto importado que reduziu 8%, e ninguém me avisou, o que gera um problema.”
Tanto Arad como Suiane adotaram algumas medidas para minimizar o impacto ambiental da confecção: com os retalhos dos tecidos, Suiane produz almofadas e bolsas – os mais miúdos são doados para o Provopar (usados em trabalhos de artesanato). Arad instituiu o re-label para estender o ciclo de vida da roupa: clientes da marca trocam peças que não usam mais por um bônus de 20% na compra de uma nova. Parte delas é doada. Outras, recebem reparos para reuso e são colocadas à venda novamente por 30% mais barato.
A exploração no mundo da moda não está restrita a países pobres e asiáticos. No Brasil, a Zara se envolveu em um escândalo no ano passado, quando ações do Ministério Público do Trabalho (MPT) mostraram bolivianos trabalhando em confecções clandestinas – o que foi veiculado no programa A Liga, da Band.
Entre os abusos, os costureiros precisavam pagar as roupas que produziam caso as estragassem. E o valor não eram os centavos ou poucos reais com que elas são produzidas, mas o preço cheio, vendido na loja. Outra ação do MPT neste ano autuou o Grupo Gep, detentor de marcas como Emme, Cori e Luigi Bertolli – uma das prestadoras de serviço foi denunciada pelas condições de trabalho. Como revelado pelo jornal Folha de S.Paulo, as costureiras recebiam R$ 350 mensais, pouco mais da metade do salário mínimo nacional (R$ 678).
Encanto x abuso
A cadeia exploratória de um lado e o mundo de glamour e beleza do outro. A pergunta que o G Ideias fez a especialistas da área é: há possibilidade de produzir moda com ética, respeitando as condições trabalhistas e oferecendo o mínimo ao trabalhador? No modelo adotado hoje, em que as chamadas fast fashion dominam (cadeias de lojas que trazem novidades, geralmente copiadas de estilistas renomados a preços convidativos) e o modo de produção precisa ser extremamente rápido, é complicado. Principalmente porque uma nova dinâmica reduziria os ganhos das empresas (o Inditex anunciou nesta semana alta de 1,38% em seu lucro no trimestre). “Para que essas roupas, que vêm de tão longe, cheguem baratas, alguém tem de ter algum prejuízo. A situação social fica relegada a segundo plano”, acredita o designer, especialista em moda e criador da marca Arad, Roberto Arad. Entusiasta de um movimento denominado slow fashion, que vai contra esse modo de operação veloz, Arad prioriza cortes clássicos e se preocupa com a procedência da sua matéria-prima, quase exclusivamente nacional.
História
O sociólogo e diretor do Observatório de Sinais Dario Caldas, que estuda tendências sociocomportamentais e de consumo no Brasil desde 2002, explica que o modelo fast surgiu no fim da década de 1970, e ganhou força na seguinte. “É um modo de produção fortemente influenciado pelo just in time (pilar do sistema Toyota ), unindo a ponta do varejo e o desejo do consumidor. Além disso, ocorre a deslocalização da indústria para diminuir custos.” Essa escala, diz Caldas, é absolutamente do nosso tempo, onde há excessos e superpopulação (somos 7 bilhões no mundo).
A estilista, figurinista e instrutora dos cursos de Moda do Senac Fabianna Pescara também concorda que a moda e o vestuário refletem a era em que vivemos. “Não temos paciência para esperar nada, toda essa euforia da sociedade é retratada no vestuário. As pessoas querem novidade o tempo todo.”
A condição pobre, a dependência do setor têxtil, as altas taxas de desemprego e leis trabalhistas muito permeáveis permitem e permitirão a exploração, crê a coordenadora do curso de Moda da Faculdade Santa Marcelina (São Paulo), Raquel Valente Fulchiron. “É um histórico de abusos. A questão é de governo, de fiscalizar e impor leis. Aqui no Brasil, temos leis trabalhistas bastante sofisticadas.”
Porém, ela lembra que o país não está imune. “No Bom Retiro [região de produção, compra e venda popular de roupas em São Paulo], imigrantes que antes eram explorados agora exploram os outros. Isso que é terrível.” A jornalista e diretora da Berlin, consultoria de inovação, pesquisa de mercado e tendências, Andrea Greca, recorda que esse submundo da moda lembra os primeiros registros sobre sweatshops. O termo, segundo ela pejorativo, vem da Inglaterra pós-revolução industrial e se refere a lugares úmidos e escuros onde homens e mulheres costuravam em regime quase escravo. “Com a criação dos sindicatos, a coisa se modificou. Mas essa ordem do capitalismo infelizmente persiste, e migrou para países pobres.”
Pacto
Os milhares de mortos em Bangladesh geraram protestos e comoção mundial. Poucas semanas após o desmoronamento, a italiana Benetton, a espanhola Mango e a britânica Marks & Spencer assinaram um contrato que exige a realização de inspeções de segurança independentes nas fábricas prestadoras de serviços, e prevê que cubram os custos de reforma e gastos de até US$ 500 mil anuais com as medidas. Além disso, elas devem parar negócios com confecções que se recusem a promover melhorias. H&M, Primark, Tesco, C&A e Inditex também aderiram ao pacto. Antes da tragédia, a PVH, que produz roupas para as marcas Calvin Klein, Tommy Hilfiger e Izod, e a alemã Tchibo já haviam concordado em assinar o ajuste. Porém, o WalMart, segunda maior compradora de roupas em Bangladesh, e a Gap se recusaram. “Essas empresas só pensam o que isso vai impactar em suas planilhas do Excel. Mas essas planilhas têm de incorporar cada vez mais dados sociais, ambientais e éticos”, salienta Dario Caldas. Fabianna Pescara vê o acordo com pessimismo. “As marcas se comprometem pela cobrança da mídia e do governo, o que, depois, vai se afrouxando.”
Entre a culpa e a necessidade
No livro Overdressed (ainda sem tradução no Brasil), a ex-viciada em fast fashion Elizabeth Klein se propõe a descobrir a verdadeira natureza desse rolo compressor da moda barata. Com a crise de 2008, ela perdeu o emprego e percebeu a quantidade exorbitante de roupas no seu armário. Sem nenhum conhecimento de causa, passou a pesquisar o modus operandi das marcas que tanto cultuava. A experiência, disse a autora em entrevista à revista americana Newsweek, reproduzida em seu site (www.overdressedthebook.com) foi “de abrir os olhos, para dizer o mínimo”.
O consumidor, logo, também se vê nesse dilema ético. “Não é gostoso saber que a sua roupa foi feita por mão de obra escrava”, enfatiza a jornalista e diretora da Berlin, consultoria de inovação, pesquisa de mercado e tendências, Andrea Greca. “Na verdade, essa exploração só existe porque nós compramos na Zara e na C&A, que usam esse tipo de processo.” A ordem que se discute hoje, ainda que pontualmente, é comprar menos e melhor, questionando a origem do produto.
Para o sociólogo do Observatório de Sinais Dario Caldas, o principal problema é a ganância do mercado – lógica repensada desde a recessão que atingiu o mundo em 2008. “A economia era entendida como um território autônomo, mas o caminho é fazer a reconciliação com os valores morais.” Caldas acredita, inclusive, que a tendência a longo prazo é que as pessoas passem, sim, a se preocupar mais com a procedência das suas roupas, principalmente levando em conta o abuso e o sofrimento humano. “A via ambiental ainda é um nicho. Pessoas morrendo em seus locais de trabalho geram uma sensibilidade mais forte.”
Demanda
A questão da consciência, entretanto, é ambígua. Se há essa via do repensar, por outro lado, o Brasil tem consumidores que obtiveram ascensão social recentemente, e que só agora têm a condição de adquirir uma roupa. “Como dizer para a pessoa que não consumia que ela não deve comprar? É injusto até”, crê o designer, especialista em moda e criador da marca Arad, Roberto Arad.
A alta da inflação no Brasil somada à carga tributária – segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), roupas, em geral, têm um imposto de 34,67% – também são um impeditivo para que o consumidor faça escolhas melhores e opte pelo produto nacional. “Não há ética que convença o consumidor a pagar um preço que ele não percebe no produto”, frisa o sociólogo.
Segundo Caldas, no vestuário é mais difícil perceber valor agregado. “O produto brasileiro está fora do patamar. A balança tende para o lado da racionalidade. Não é que o consumidor não queira e seja insensível, mas a vida não está fácil para ninguém com a pressão da inflação de volta. Neste momento, ele continuará a priorizar o preço baixo.”
O que fazer?
Saiba quais medidas adotar para saber a procedência da roupa que você está comprando:
Internet
A internet é a melhor saída. Na dúvida, pesquise notícias sobre a marca e veja se há algum histórico de exploração. No Facebook, páginas de organizações governamentais como a Clean Clothes Campaign divulgam constantemente informações de marcas de todo o mundo. Quem usa Twitter e Instagram pode procurar informações com a hashtag #StopDeadlyFashion
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