Considerada um dos 12 tesouros de Espanha, a Catedral de Santiago de Compostela é o centro religioso espanhol e um dos focos históricos do cristianismo, na Península Ibérica. O seu simbolismo é facilmente reconhecido - mas a que custo? Quais as bases desse simbolismo? Que mitos “cristalizaram” Santiago de Compostela?
Acima de tudo, falamos de vasos que comunicam.
© Catedral de Santiago de Compostela, Fachada do Obradoiro, (Wikicommons, Juan Mejuto).
“O mito é o nada que é tudo”
Assim o disse Fernando Pessoa. O conhecimento que construímos e que temos acerca das coisas, se mantém e se solidifica muito à custa de imagens e ideias que apreendemos sobre algum dado e que, por sua vez, nos permitem recordar outras tantas informações relacionadas. Essas imagens e ideias - representações - são construídas sobre a realidade e compostas pela força que baseia o mito. Os mitos, assim como as representações, são tentativas de mais facilmente justificar a vida que nos rodeia, sem que haja contraprova, e a sua longevidade (do mito) se deve à crença que se tem nele.
Para além do aspecto material, edificado e histórico, a Catedral também se fixou no imaginário da população pelas diferentes “auras” que foram sendo criadas e que o tempo da história eternizou. Como em relação à morte e enterro do apóstolo Tiago, que terá sido aprisionado e decapitado, em Jerusalém, pelo rei Herodes, o mesmo que mandou aprisionar e matar Jesus. As pregações daquele que alguns consideravam o Messias, acompanhadas dos seus apóstolos, ameaçaram a ordem social e religiosa estabelecida na Palestina devido à receptividade da população. Após a morte de Tiago, discípulos dele terão transportado o seu corpo até aos “confins da terra” (“finis terrae” ou, hoje, região de Finisterra, na Galiza), de barco, para descobrir um lugar apropriado para o sepultar. Tal embarcação não teria forma de se guiar, acabando por percorrer todo o Mediterrâneo e seguido a norte, até ao porto de Íria Flávia, noroeste de Espanha, sem que os passageiros soubessem por onde seguiam.
© Castelo de San Xurxo - O Pindo, Galiza, (Wikicommons, Noel Feans).
Após o desembarque, terão solicitado à rainha pagã do local, Lupa, um espaço digno para enterrar Tiago. Ela tê-los-á dirigido para um terreno repleto de touros bravos que, previsivelmente, iam ameaçar-lhes as vidas. No entanto, em vez do ataque, os touros se terão aproximado, dóceis, e te-los-ão conduzido, por iniciativa dos próprios, a um dado terreno, para se realizar o enterro. A rainha terá ficado impressionada e, por isso, se terá convertido ao cristianismo. Mais tarde, no século IX, alguém terá descoberto a localização dos restos mortais do apóstolo, as “relíquias”, e contado ao bispo local. A informação chegou ao rei Afonso II, que logo terá mandado construir uma capela junto ao sepulcro e, assim, dado início, nesse espaço, ao que viria a ser a Catedral de Santiago de Compostela.
Este encadeamento de episódios lendários, subjectivos, foi a semente que deu origem à construção compostelana. Mesmo que houvesse forma, hoje, de certificar ou até rever a objectividade do mito de Santiago, será que a maioria dos fiéis ou da população interessada pelo que a catedral significa aceitaria o que daí viesse? Certo é que este olhar assente no mito também constrói a história.
© "Historja", (Wikicommons, Proch).
O custo da história
Um dos principais períodos da história da Catedral foi o arcebispado de D. Diego Gelmírez (1101-1136). Neste período, concluiu a construção da Catedral iniciada pelo seu antecessor, reformou a circunscrição da qual foi arcebispo, tornou a sua diocese mais rica em bens materiais, privilégios e dinheiro e ainda conseguiu que o Papa Calisto II aceitasse a autonomia de Santiago de Compostela face à gestão administrativa estabelecida em Braga, elevando Santiago a metrópole.
Gelmírez conseguiu tudo isto, no século XII. Ainda assim, a que preço? No período medieval, a mentalidade social das elites não permitiria que esta questão se colocasse com facilidade, mas muita da ascensão de Santiago de Compostela se fez à custa da rivalidade com a diocese de Braga pela supremacia do espaço eclesiástico desta. De tal modo que Diego Gelmírez conseguiu cometer o roubo das relíquias de santos venerados em Braga, na própria sede metropolitana, com o intuito de tornar Santiago centro de peregrinação. Esta prova material fundamentava todo um simbolismo que, por sua vez, dava conteúdo ao poder religioso e, sem ela, Braga não poderia manter o poder que detinha até então. À custa de um simples roubo, um simples gesto terá alterado o rumo dos acontecimentos para sempre. Sem esse roubo, quem sabe da possível existência, hoje, dos “Caminhos de Braga”, a peregrinação a Braga, a rota turística religiosa.
© "Luz e Som" na praça do Obradoiro, (Wikicommons, Tapetum).
A supremacia foi o preço que a História consagrou - justo para uns, injusto para outros. Mas se ainda se mantém “Santiago”, tal se deve a um esforço delicado, típico de um ourives, de engrandecimento e valorização das suas hostes históricas. Ou não estivesse virada a fachada principal da Catedral para a “Praça de Obradoiro”.
© Catedral de Santiago de Compostela, (Wikicommons, G. Villar).
Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2012/08/catedral_de_santiago_o_trabalho_de_ourives.html#ixzz241nXBmBR
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