domingo, 19 de agosto de 2012

ARTE EM COMBUSTÃO VIA VARAL DE IDEIAS


O dúplex do marchand Jean Boghici Cobertura em Copacabana reunia o melhor da arte

Fonte: revista Casa Vogue, 14/8/2012, por CYNTHIA GARCIA; FOTOS FILIPPO BAMBERGHI

  * A reportagem a seguir foi publicada originalmente na edição de dezembro de 2011 da revista Casa Vogue. Por ocasião do incêndio que destruiu boa parte da cobertura de Jean Boghici na noite de segunda-feira (1/8/2012), recuperamos a matéria de nosso arquivo, com o intuito de mostrar como era o imóvel – e a coleção de arte de valor incalculável – que as chamas consumiram. Casa Vogue se solidariza com o marchand e sua esposa e saúda-os por nada de pior ter acontecido ao casal.
 A cobertura dúplex do marchand Jean Boghici e de sua mulher Geneviève, em Copacabana, abriga um acervo admirável de grandes nomes da produção artística do século 20. Outra característica do apartamento desse casal, que adotou o Rio (ela é francesa, ele, romeno), é o mobiliário. Exceto por um banco e uma poltrona de Sergio Rodrigues e uma mesa de apoio de Alvar Aalto, todos os móveis levam o selo da manufatura de Joaquim Tenreiro (1906-1992), um português que, assim como os donos da casa, escolheu o Brasil para morar e, a partir de meados dos anos 1930, durante quase cinco décadas, criou o conceito do móvel brasileiro.
 A área social do andar principal é dividida em duas salas. Na primeira, está o óleoSamba, 1925, de Di Cavalcanti. Ali também ficam uma tela de 1950 do pai da arte povera, o italiano Alberto Burri, e outra do pai da op art, Victor Vasarely, além de um Lucio Fontana amarelo, ambas dos anos 1960. Mas não só isso. Nesta ala do museu particular dos Boghici, encontram-se três telas dos anos 1920 de Vicente do Rêgo Monteiro: Retrato de Joaquim MonteiroCabeça de Mulher e O Carroceiro. Há também um Milton Dacosta, dos anos 1940, a escultura de mármore Tocadora de Banjo, 1925, de Victor Brecheret, e um ícone de Tenreiro: a cadeira Três Pernas, de 1947, um sanduíche de imbuia, roxinho, jacarandá, pau-marfim e cabreúva, exemplo da excelência e modernidade desse artista da madeira. Na segunda sala, mais Tenreiro. Sobre o piso de parquet em espinha-de-peixe, está um sofá de jacarandá de quatro lugares – apenas dois exemplares foram produzidos pelo designer.
 Há também dois pares de poltronas, um composto pelo modelo Curva, de 1960, e o outro pela Leve, de 1950. Os dois troncos maciços que formam a mesa de centro, também de Tenreiro, servem de base para dois magníficos bronzes: O Casal, 1940, de Maria Martins; e O Beijo, 1900, de Auguste Rodin. A expressividade das paredes fica por conta de três telas de Antonio Dias, dos anos 1960, duas telas de Wesley Duke Lee,O Prêmio e O Rapto da Europa, ambas da década de 1960, e um tríptico do artista do Grupo Cobra, Corneille, No jardim das antenas atentas, 1966. Mas há ainda um “guindaste” do carioca Roberto Magalhães, dos anos 1960, e, coroando o espaço, no teto, um móbile de Alexander Calder, de 1948.
 Forrada com boiserie, a sala de jantar traz mais Tenreiro com a mesa de jantar com tampo de vidro pintado de verde, as cadeiras Estrutural, o bufê e o magnífico lustre de cristal. Nas paredes, Cidade Azul, de Antonio Bandeira, um nanquim do japonês Saïto e telas de Antonio Dias. A pintura russa dos anos 1960 se faz presente com obras de Sitnikov, Ilya Glazunov e Oscar Rabin e do maior pintor russo que adotou nosso país, Lasar Segall, representado pelo óleo O Leitor, de 1914. O epicentro do jardim de inverno é o conjunto formado pela mesa Oval (1960), com tampo de mármore e suas seis cadeiras de jacarandá e palhinha-da-índia. "Era da casa do Tenreiro, ele almoçou nela durante anos", revela Geneviève. Na parede, uma tela da Nova Figuração francesa de Bernard Rancillac, Dîner des Collectionneurs de Têtes, 1966, traz vibração ao ambiente.
 Em direção à ala íntima, surgem um Trepante e um Bicho de Lygia Clark. No quarto do casal, sobre a cama de jacarandá, preciosidades em pequeno formato: Namorados, 1948, de Milton Dacosta; o tríptico Natividade, 1949, de Antonio Bandeira; de Cícero Dias, Pim Pam Pum, 1928, e Condenação de Usineiros, 1930; e Gato no Rochedo, 1938, de Xu Beihong. Na parede ao lado, um Torres García, de 1931, Carteira de Identidade, 1967, de Gerchman; e O Sono, 1928, de Tarsila do Amaral. Mas é o retrato Menino, 1940, de Alberto Guignard, que mais emociona a ex-bailarina de balé moderno. “Tudo nele é bonito”, diz a anfitriã sobre essa obra do primeiro artista que seu companheiro, verdadeira lenda viva da arte brasileira, conheceu ao desembarcar no Rio, em 1949. “Jean é vanguardista”, diz ela sobre o marido, um dos criadores do mercado de arte no Brasil.
  
Exposição no MAR com obras do acervo de Jean Boghici está garantida 
Trabalhos de Kandinsky, Modigliani, Tarsila e Morandi estarão na mostra que abre o museu. Só 10% das obras previstas foram destruídas
Fonte: O GLOBO, 16/8/2012, Audrey Furlaneto
O colecionador Jean Boghici passou a manhã de ontem acompanhando a seguradora em visita ao apartamento da Rua Barata Ribeiro, onde havia obras de arte do chão ao teto. O estrago foi menor do que se pensava, segundo Leonel Kaz, curador da exposição “O colecionador: Arte Brasileira e Internacional na Coleção Boghici”, que levará ao MAR, na abertura do museu, prevista para setembro, obras do acervo do romeno radicano no Brasil desde os anos 1950.
— Só 10% das obras (que estariam na exposição) foram destruídas e terão de ser substituídas — diz Kaz.
Foram reveladas, porém, outras perdas importantes, embora menores que a de “Samba”, a tela de Di Cavalcanti cujo valor estimado é de R$ 50 milhões, ou ainda “Floresta tropical” (1938), de Guignard: “Leitura” (1914), de Lasar Segall, “A Mulher e o Galgo” (1925), de Vicente do Rego Monteiro, e uma tela sem título, de 1931, de Joaquín Torres García. Boghici chegou a ter oito obras do artista uruguaio — seis delas se perderam no incêndio do MAM, nos anos 1970. Foi com o dinheiro do seguro dessas obras que Boghici adquiriu outros dois Torres García, dos quais um foi destruído na segunda-feira.
A lista de obras que se salvaram, por outro lado, é extensa. Entre elas, um Kandinsky, um Modigliani e um De Chirico, além de “Sono”, “Sol poente” e “Pont neuf”, de Tarsila do Amaral. Uma tela de Giorgio Morandi, que se supunha perdida, também foi salva. Não sofreram danos obras de Maria Martins, Lygia Clark, Victor Brecheret, Franz Weissmann, Amílcar de Castro, Waltercio Caldas, Jean Arp e Max Bill, assim como o mobiliário do apartamento, assinado por Joaquim Tenreiro.
“Samba” será homenageada na mostra do MAR com trabalho de Vik Muniz, que registrou em foto o verso da tela de Di Cavalcanti.
Presidente do Ibram, José Nascimento Júnior diz que fez contato com Boghici para oferecer ajuda após o incêndio, mas que a família disse não ser necessário.
— Temos uma equipe de restauradores, um conjunto de profissionais que podem avaliar os danos, inventariar, ver de que forma atuar para buscar o melhor caminho de recuperar, salvar o que é possível. Fazemos a parte de orientação e de primeiros socorros — explica Nascimento.
Em 2009, o Ibram atuou na operação de rescaldo após o incêndio na casa da família de Hélio Oiticica. Inicialmente acreditou-se que 80% do acervo fora destruído, mas o percentual caiu para 30% após a ação emergencial. Para César Oiticica Filho, sobrinho do artista, boa parte do que foi recuperado partiu desse primeiro socorro. Ele espera que o trabalho de restauração deja encerrado até o final do ano. Parte das obras restauradas de Oiticica será exibidas a partir de 21 de setembro no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, marcando a abertura do ano do Brasil em Portugal.
— É muito cruel responsabilizar colecionadores particulares por incêndios como estes. Acidentes acontecem em todos os lugares. É importante que os órgãos tenham uma ligação mais direta com os acervos privados. E isso tem que acontecer de maneira mais rápida e desburocratizada. É um caminho árduo e longo para resolver esse problema — afirma César. — Essa é a hora de começar a se preocupar com as origens culturais e artísticas do país. Não adianta o acervo estar bem guardado e ninguém ver. Continuamos fazendo museus para guardar nada. São caixas vazias.

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