Conta-se que, quando Tarsila do Amaral pintou o Abaporu, como um presente de aniversário para o marido Oswald de Andrade, o escritor ficou tão impressionado com o quadro que chamou o amigo Raul Bopp para conferi-lo. A tela, batizada com um neologismo que unia os termos do tupi-guarani “aba” (homem) e “poru” (comedor de carne humana), levaria Oswald a escrever o “Manifesto Antropofágico”, um dos documentos mais importantes do movimento modernista nacional. Esta história não está emMovimentos Modernistas no Brasil 1922 – 1928(José Olympio, 182 páginas, 28 reais), livro do gaúcho Raul Bopp que passou quarenta anos fora de catálogo e retorna às livrarias na próxima sexta, 17, por causa dos noventa anos da Semana de 1922. Mas há muitas outras saborosas por lá.
Poeta e editor da Revista de Antropofagia, publicação que propagava os ideais modernistas e antropofágicos nos anos 1920, além de amigo de uma das principais lideranças do movimento, Bopp foi um espectador privilegiado da agitação cultural que marcou São Paulo no início do século XX. E são as cenas que ele presenciou em meio à Pauliceia, assim como o julgamento que fez de fatos e de personagens, que preenchem Movimentos Modernistas no Brasil, livro que reúne notas escritas para duas conferências realizadas no Instituto Brasileiro de Estudos Internacionais, além de respostas a questões feitas por um jornalista e o texto ficcional Ballet da Cobra Norato.
Quanto aos personagens, chama a atenção a maneira como Bopp descreve Oswald – “Às vezes, com lampejos geniais, mas, também, algumas vezes, com destemperos incríveis”. Sempre ativo, o marido de Tarsila teria tido, entre outras, a ideia de criar uma religião que congregasse elementos das três raças brasileiras. O detalhe, além de curioso, é valioso porque faz lembrar que não foi Gilberto Freyre quem inventou a teoria das três raças fundadoras da nação brasileira, em Casa Grande & Senzala (1933). Ela é anterior a Freyre: vem do Brasil recém-emancipado, em que o Instituto Histórico e Geográfico, ancestral do IBGE, lançou o concurso “Como Escrever a História do Brasil”. Sagrou-se ali campeão o naturalista alemão Karl Friedrich Phillipp Von Martius, com a tese de que o Brasil era um grande caldo formado pelo volumoso rio branco (português) e seus dois confluentes, os rios negro e indígena. E os ecos do século XIX ainda se faziam ouvir no XX.
Outros detalhes sobre a cultura brasileira pipocam aqui e ali, mas o foco do livro, como informa o título, é o movimento modernista paulista. E é daí que vêm informações preciosas, como a atribuição a Di Cavalcanti da ideia da Semana de 1922, tese encampada pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves em seu 1922 – A Semana que Não Terminou, que a Companhia das Letras acaba de lançar. Segundo Bopp, o pintor já planejava para aquele período um evento de artes visuais e conferências, que, diante das adesões de outros artistas e do patrocínio da elite paulista, acabou ampliado e transferido para o palco do Municipal.
Sobre a Semana de 1922, que em 13 de fevereiro, completou 90 anos, Bopp é sincero ao mostrar como foi contraditória, mesclando desejos de inovação artística a influências do passado, bem como ímpetos de ruptura com o exterior à importação de tendências vanguardistas. E ao apontar como “seus resultados foram conduzidos de forma incoerente, sem alcançar soluções mais profundas”. Mas ressalta que o evento teve o mérito de dar “maior autonomia aos meios de expressão”, libertar “o idioma de gramaticalismos inúteis” e desamarrar “a poesia em versos livres”.
O poeta também conta como o grupo modernista chegou a preparar um segundo evento, com conteúdo mais coerente que o de 1922. Ele aconteceria em Vitória (ES), provavelmente em 1929, a convite do secretário de educação local. Teses sobre o país e sobre as artes foram boladas e ensaiadas, e até o anúncio de um calendário antropofágico, com início na “data da deglutição do bispo Dom Antônio Sardinha”, foi idealizado. Mas tudo naufragou junto com o casamento de Oswald e Tarsila. Bopp não é claro, mas – uma vez mais – o que se conta é que Oswald traiu Tarsila com Pagu, jovem a quem a pintora tutelava intelectualmente.
Por falar no que se conta, entre as cenas narradas por Raul Bopp vale destacar ao menos uma, muito diferente da que abre o texto, em que ele conta como surgiu o conceito de antropofagia. E que deixa no ar qual das versões é a verdadeira — confusão que, sem dúvida, condiz com o espírito antropofágico.
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“Uma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar o grupo que frequentava o solar a um restaurante situado nas bandas de Santa Ana. Especialidade: rãs. O garçom veio tomar nota dos pedidos. Uns queriam rãs. Outros não queriam. Preferiam escalopini…
Quando, entre aplausos, chegou um vasto prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se e começou a fazer o elogio da rã, explicando, com uma alta percentagem de burla, a teoria da evolução das espécies. Citou autores imaginários, os ovistas holandeses, a teoria dos ‘homúnculos’, os espermatistas etc. para ‘provar’ que a linha da evolução biológica do homem, na sua longa fase pré-antropoide, passava pela rã – essa mesma rã que estávamos saboreando entre goles de Chablis gelado.
Tarsila interveio:
- Em resumo, isso significa que, teoricamente, deglutindo rãs, somos uns… quase antropófagos.
A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lugar a um jogo divertido de ideias. Citou-se logo o velho Hans Staden e outros clássicos da Antropologia:
- Lá vem a nossa comida pulando.
A Antropofagia era diferente dos outros menus. Oswald, no seu malabarismo de ideias e palavras, proclamou:
- Tupy or not tupy, that’s the question.
Alguns dias mais tarde, o mesmo grupo do restaurante das rãs reuniu-se no palacete da alameda Barão de Piracicaba, para o batismo de um quadro de Tarsila: o Antropófago.
Nessa ocasião, depois de passar em revista a parca safra literária posterior à Semana, Oswald propôs desencadear um movimento de reação, genuinamente brasileiro. Redigiu um ‘Manifesto’. O plano de ‘derrubada’ tomou corpo. A flecha antropofágica indicava outra direção. Conduzia a um Brasil mais profundo, de valores indecifrados.”
Maria Carolina Maia
Fonte: Veja
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