A Nova Califórnia é um conto do conhecido escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Concluída em 10 de novembro de 1910, a narrativa é ambientada na fictícia cidade interiorana de Tubiacanga. Este pequeno município com apenas três ou quatro mil habitantes tem sua rotina abalada pela chegada do personagem Raimundo Flamel.
Logo de início, o pedreiro Fabrício estranha a obra que ele lhe pedira: um forno na sala de jantar. O carreiro Chico da Tirana, quando passava em frente à casa do forasteiro, chegava a rezar o Credo em voz baixa, vendo a fumaça misteriosa saída da chaminé do Dr. Flamel. Não era pra menos, pois Fabrício relatara que, lá naquela estranha casa, havia facas sem corte, balões de vidro, tubos de ensaio e outros utensílios insólitos.
Foi somente por interferência do boticário Bastos que o subdelegado desistira de interrogar aquele indivíduo recluso que tanto incitava a curiosidade do povo. Bastos acabara por convencer seus concidadãos de que aquele elemento nada tinha de pernicioso à rotina da cidade, sendo apenas um químico recolhido no pacato município para melhor levar a cabo suas pesquisas.
Com o passar do tempo, todos vieram a tê-lo em alta conta, apesar de Flamel não ser lá muito sociável. O único que não o considerava bem era Capitão Pelino. Este, na verdade, nada tinha de “capitão”. Lima Barreto dotara-o deste título irônico para ridicularizar a empáfia de seu personagem, um mestre-escola cheio de gramatiquices que vivia a apontar supostos erros de Português de seus interlocutores.
O personagem parece ser uma referência a Pelino Guedes (1858-1919), talvez o autor mais lido e estudado nas escolas secundárias brasileiras por volta de 1910. Barreto o considerava representante duma linguagem vazia, pedante, nada comunicativa e muito afeita a arcaísmos e rebuscamentos fúteis. Estendia ainda tal juízo a personalidades como: Coelho Neto (1864-1934), Rui Barbosa (1849-1923), Barão do Rio Branco (1845-1912) e outros figurões da época. Pelino Guedes (alvo frequente dos textos limianos) recebia alfinetadas em artigos, crônicas e contos, sendo até referido no romance Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, obra que satiriza as biografias feitas por ele. Estas teriam sido escritas aos montes para agradar a poderosos (ironicamente, o narrador declara que seguiria o exemplo de P. Guedes e, depois da biografia de Gonzaga de Sá, iria fazer mais “duas dúzias”).
Em A Nova Califórnia, as críticas atingem os pedantes da gramática, mas não se restringem a eles: avançam por toda uma gama de tipos e práticas sociais. Logo ao início da terceira parte da narrativa, por exemplo, Tubiacanga é descrita como “muito pacífica”, sendo que em seu pobre cadastro de delitos só se via um homicídio. Porém tal crime em nada alterara os hábitos da cidade, pois “o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição”. Vê-se que a paz tubiacanguense é hipócrita e engloba o assassinato como coisa normal quando decorre do poder instituído. Da mesma forma, veremos descalabros se justificarem pelas exigências do dinheiro.
A corrida para A Nova Califórnia
O título A Nova Califórnia ironiza os antigos relatos sobre a Corrida do Ouro nos Estados Unidos do final do século 19. Já cria também expectativa no leitor sobre a descoberta de ouro na pequena Tubiacanga. Essa expectativa é reforçada também pelo nome dado ao personagem químico: Raimundo Flamel, o qual parece provir da combinação dos nomes dos alquimistas Raimundo Lúlio (1232-1315) e Nicolau Flamel (1330-1418).
O catalão Raimundo Lúllio nasceu em Palma de Maiorca numa família rica. Diz-se que viajou muito, empreendeu estudos alquímicos, passando por Roma, Paris, Nápoles, Chipre, Síria e Armênia, morrendo em Túnis (norte da Tunísia) onde teria sido apedrejado após pregações em praça pública. Já o francês Nicolau Flamel era de família pobre, mas conseguiu se estabelecer como escrivão público. Escreveu várias obras sobre Alquimia. Logo que morreu, sua casa foi saqueada por pessoas ávidas por encontrar a pedra filosofal ou receitas para criar ouro.
Lima Barreto cita o alquimista Nicolau no conto “A Biblioteca”, (presente no livro Histórias e Sonhos, de 1920). Tal fato demonstra que o francês – muito provavelmente – servira de fato como inspiração para a criação do personagem Raimundo Flamel: químico eminente que possuiria uma fórmula para transformar ossos humanos em ouro. Vê-se que, ao fim da narrativa, a população tubiacanguense também vem a matar uma pessoa (a exemplo da história de Raimundo Lúlio no século 13) e a cometer saques (tal como feito na residência de Nicolau Flamel após sua morte no século 14).
Nota-se, na Tubiacanga de Lima, que todos se horrorizaram ao saber dos contínuos saques às sepulturas do cemitério local. O mais indignado era Pelino, que chegara a escrever artigos nos quais o crime era descrito como mais ignóbil que homicídios especialmente cruéis. A reprovação às violações dos túmulos foi geral: partiu de religiosos, ateus, cientistas, céticos, maçons e positivistas.
Numa noite em vigília no cemitério, uma multidão indignada acabou atacando dois saqueadores flagrados na penumbra, surrando um deles até a morte. Depois, na claridade, descobriu-se que este era o coletor Carvalhaes. Então o sobrevivente capturado, Coronel Bentes, afirmou que os ossos roubados das tumbas serviriam para fabricar ouro, segredo também conhecido pelo terceiro saqueador: boticário Bastos. Surge então no texto a mais forte crítica social da narrativa, quando os antes “indignados protetores de sepulturas” começam a pensar que talvez não fizesse mal profanar o cemitério se isso lhes pudesse gerar riquezas materiais.
A descrição dos habitantes que saíram à noite escondidos de seus amigos e familiares, para roubar despojos fúnebres, é bastante poderosa. Cada um foi se esgueirando ao cemitério, julgando enganar os demais. Não faltou ninguém. A donzela Cora, tão cheia de melindres, não teve nojo de arrancar ossos ainda presos às carnes podres de cadáveres, não sentiu o odor fétido em suas delicadas narinas enquanto se abraçava àquela matéria pútrida que poderia torná-la rica. De maneira semelhante agiram o turco Miguel, o médico Jerônimo, o Major Camanho e demais moradores da cidade.
Diferenças entre versões de A Nova Califórnia
Lamentavelmente, os cinco parágrafos mais fortes da narrativa não aparecem no livro Contos Completos de Lima Barreto, com organização e excelente introdução feita por Lilia Moritz Schwarcz, publicado pela Companhia das Letras. Pelo menos o trecho não se encontra na minha edição, que data de 2010, e nem na que saiu em 2016, conforme pude verificar folheando um volume numa livraria do Rio de Janeiro.
Nessa reunião de contos publicada pela Companhia das Letras, é narrado – antecedendo o antepenúltimo parágrafo – que os habitantes “como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico” (página 70). Depois disso, sumiram do texto os referidos cinco parágrafos, e passou a ser contada a “desinteligência que não tardou a surgir” entre os moradores de Tubiacanga, já no cemitério, onde começaram a brigar entre si e até matarem uns aos outros. Por algum equívoco, foi suprimida a narração da ida dos habitantes até a casa do farmacêutico para pressioná-lo a fornecer a receita alquímica recebida do forasteiro Raimundo Flamel. Não se mostra o boticário Bastos prometendo entregar a fórmula ao amanhecer. Do mesmo modo, foram omitidos os pensamentos dos hipócritas tubiacanguenses, que logo mudaram de opinião sobre o saque às sepulturas. Não aparece a falsidade deles ao saírem escondidos de casa para se entregarem à rapinagem desenfreada no cemitério.
Felizmente o conto aparece na íntegra em todas as demais coletâneas a que tive acesso. Além disso, certamente a Companhia das Letras corrigirá a omissão em edições futuras, já que tem feito um excelente trabalho de valorização da literatura de Lima Barreto, sobretudo publicando estudos da pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz. Esta, aliás, autora do melhor trabalho que já li sobre a vida do escritor (Lima Barreto: Triste Visionário), somente comparável ao A Vida de Lima Barreto de Francisco de Assis Barbosa. Sigamos, aliás, o exemplo deste grande biógrafo, revisitando sempre a produção do nosso escritor anarquista do subúrbio de Todos os Santos, produção esta em que A Nova Califórnia ocupa lugar especialmente importante."
Nota-se, na Tubiacanga de Lima, que todos se horrorizaram ao saber dos contínuos saques às sepulturas do cemitério local. O mais indignado era Pelino, que chegara a escrever artigos nos quais o crime era descrito como mais ignóbil que homicídios especialmente cruéis. A reprovação às violações dos túmulos foi geral: partiu de religiosos, ateus, cientistas, céticos, maçons e positivistas.
Numa noite em vigília no cemitério, uma multidão indignada acabou atacando dois saqueadores flagrados na penumbra, surrando um deles até a morte. Depois, na claridade, descobriu-se que este era o coletor Carvalhaes. Então o sobrevivente capturado, Coronel Bentes, afirmou que os ossos roubados das tumbas serviriam para fabricar ouro, segredo também conhecido pelo terceiro saqueador: boticário Bastos. Surge então no texto a mais forte crítica social da narrativa, quando os antes “indignados protetores de sepulturas” começam a pensar que talvez não fizesse mal profanar o cemitério se isso lhes pudesse gerar riquezas materiais.
A descrição dos habitantes que saíram à noite escondidos de seus amigos e familiares, para roubar despojos fúnebres, é bastante poderosa. Cada um foi se esgueirando ao cemitério, julgando enganar os demais. Não faltou ninguém. A donzela Cora, tão cheia de melindres, não teve nojo de arrancar ossos ainda presos às carnes podres de cadáveres, não sentiu o odor fétido em suas delicadas narinas enquanto se abraçava àquela matéria pútrida que poderia torná-la rica. De maneira semelhante agiram o turco Miguel, o médico Jerônimo, o Major Camanho e demais moradores da cidade.
Diferenças entre versões de A Nova Califórnia
Lamentavelmente, os cinco parágrafos mais fortes da narrativa não aparecem no livro Contos Completos de Lima Barreto, com organização e excelente introdução feita por Lilia Moritz Schwarcz, publicado pela Companhia das Letras. Pelo menos o trecho não se encontra na minha edição, que data de 2010, e nem na que saiu em 2016, conforme pude verificar folheando um volume numa livraria do Rio de Janeiro.
Nessa reunião de contos publicada pela Companhia das Letras, é narrado – antecedendo o antepenúltimo parágrafo – que os habitantes “como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico” (página 70). Depois disso, sumiram do texto os referidos cinco parágrafos, e passou a ser contada a “desinteligência que não tardou a surgir” entre os moradores de Tubiacanga, já no cemitério, onde começaram a brigar entre si e até matarem uns aos outros. Por algum equívoco, foi suprimida a narração da ida dos habitantes até a casa do farmacêutico para pressioná-lo a fornecer a receita alquímica recebida do forasteiro Raimundo Flamel. Não se mostra o boticário Bastos prometendo entregar a fórmula ao amanhecer. Do mesmo modo, foram omitidos os pensamentos dos hipócritas tubiacanguenses, que logo mudaram de opinião sobre o saque às sepulturas. Não aparece a falsidade deles ao saírem escondidos de casa para se entregarem à rapinagem desenfreada no cemitério.
Felizmente o conto aparece na íntegra em todas as demais coletâneas a que tive acesso. Além disso, certamente a Companhia das Letras corrigirá a omissão em edições futuras, já que tem feito um excelente trabalho de valorização da literatura de Lima Barreto, sobretudo publicando estudos da pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz. Esta, aliás, autora do melhor trabalho que já li sobre a vida do escritor (Lima Barreto: Triste Visionário), somente comparável ao A Vida de Lima Barreto de Francisco de Assis Barbosa. Sigamos, aliás, o exemplo deste grande biógrafo, revisitando sempre a produção do nosso escritor anarquista do subúrbio de Todos os Santos, produção esta em que A Nova Califórnia ocupa lugar especialmente importante."
Fonte:https://homoliteratus.com/a-nova-california/
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