terça-feira, 24 de abril de 2018

Poesia na Bíblia por Frei Betto


O Livro Sagrado é a manifestação de Deus e, por isso, uma proposta de amor

A poesia é a linguagem dos anjos, dos amantes e das crianças. Transcende a razão e supera normas gramaticais. Fala mais à emoção que à razão, mais à alma que à cabeça. É a linguagem de Deus.

Em toda a Bíblia não há uma única aula de teologia, nem um só capítulo que se pareça a um manual de catequese. O primeiro capítulo do Gênesis, em seus primeiros versículos, é um poema sobre a Criação. Há uma cadência – o primeiro dia, o segundo dia etc. O poema vai do Caos ao Cosmos. O Caos são as trevas, o vazio, o abismo. Sequencialmente, o poder divino imprime luz onde havia trevas e, aos poucos, a Criação adquire harmonia, beleza - daí o termo grego Cosmos, da mesma raiz etimológica de cosmético, aquilo que imprime beleza.

Entre os seus múltiplos gêneros literários, a Bíblia adota também a poesia. Seus mais belos textos são em poesia lírica, como o Cântico de Moisés (Êxodo 15), o Cântico do poço (Números 21, 17-18), o Cântico de Débora (Juízes 5, 1-31), a elegia de Davi sobre Saul e Jônatas (2 Samuel 1, 19-27) e o elogio de Judas a Simão Macabeu (1 Macabeus 3, 3-9 e 14, 4-15).

A Bíblia é Palavra de Deus e, como tal, proposta de amor. A ponto de o profeta Jeremias exclamar:

Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir (20, 7).

Entre os inúmeros textos poéticos da Bíblia merece destaque o Cântico dos cânticos, coletânea de poemas que celebram o amor entre a Amada e o Amado, com expressivas aliterações, como o primeiro verso:

Beija-me com beijos de tua boca!

Há outro livro, todo ele em poemas, hinos e cânticos – os Salmos, que tanto Maria quanto Jesus traziam na memória. Um dos mais expressivos é o de número 136, de ação de graças, que repete após cada um de seus 26 versos:

Porque o seu amor é para sempre!

Em cada livro do Antigo Testamento encontramos textos poéticos, mesmo no livro aparentemente niilista de Coélet, conhecido como Eclesiastes:

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade

(...)

O que foi, será,

o que se fez, se tornará a fazer:

nada há de novo debaixo do sol!

Destaca-se o poema do Tempo:

Tempo de nascer

E tempo de morrer;

Tempo de plantar

E tempo de colher;

Tempo de matar

E tempo de curar;

Tempo de destruir

E tempo de construir;

Tempo de chorar

E tempo de rir;

Tempo de gemer

E tempo de bailar...

No Evangelho de Lucas vale ressaltar os tons poéticos do Magnificat, o cântico libertário de Maria (1, 46-55); o Benedictus, cântico profético de Zacarias (1, 68-79); e o Nunc dimittis, o louvor de Simeão ao tomar o menino Jesus nos braços (2, 29-32).

Nas palavras de Jesus, especialmente nas parábolas que narrava ao povo, são muitas as expressões poéticas, como “olhai os lírios do campo, que não trabalham nem fiam e, no entanto, nem Salomão, com toda a sua glória, se vestiu como um deles” (Lucas 12, 20-32 e Mateus 6, 24-33).

Com certeza, a oração ensinada por Jesus, o Pai-Nosso, merece ser incluída no elenco de poemas evangélicos. Não vou reproduzi-la, porque é bem conhecida. Porém, destaco alguns versos:

Pai nosso que estais nos céus

(...)

Venha a nós o vosso reino

(...)

O pão nosso de cada dia nos dai hoje

O refrão Pai Nosso e Pão Nosso nos indica que só temos o direito de chamar Deus de “Pai nosso” se também o pão, os bens essenciais à vida, forem nossos, e não apenas de alguns poucos em detrimento da maioria da população, privada de acesso aos bens necessários à vida digna e feliz.

Outro texto evangélico muito poético é o que serve de prólogo ao Evangelho de João (1, 1-18):

No princípio era o Verbo

E o Verbo estava em Deus

E o Verbo era Deus.

(...)

E o Verbo se fez carne

E habitou entre nós.

É à poesia que o apóstolo Paulo recorre quando, no discurso no Areópago (Atos dos Apóstolos 17, 28), expressa a nossa ontológica e visceral união com Deus: “Nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: ´Porque somos também de sua raça´.”

Trata-se de uma citação livre da obra Fenômenos, de Arato, poeta que viveu na Cilícia no século III antes de nossa era. O texto originário é:

Comecemos com Zeus,

de que nós, mortais, nunca deixamos de lembrar.

Porque toda rua, todo mercado está cheio de Zeus.

Mesmo o mar e o porto estão cheios da divindade.

Em todo lugar todo mundo é devedor a Zeus. Porque somos, na verdade, seus filhos...(Phaenomena 1-5).

A poesia está presente em toda a tradição mística, como expressão da união com Deus, e recorre à linguagem amorosa para tentar dizer o indizível. Francisco de Assis, jovem trovador convertido à evangélica opção pelos pobres, entoou o Cântico das criaturas:

Louvado seja, meu Senhor,

Por nossa irmã, a mãe Terra

Que nos sustenta e governa,

E produz frutos diversos

E coloridas flores e ervas.

(...)

Teresa de Ávila cantou este verso aparentemente paradoxal:

Morro porque não morro.

João da Cruz, discípulo dileto de Teresa, lapidou, no poema que serve de prólogo e roteiro a seu livro Noite escura, a estrofe que considero a mais bela da poesia amorosa ou mística, pois todo apaixonado é um místico, assim como todo místico é um apaixonado:

Ó noite que juntaste

Amado com amada,

Amada já no Amado transformada.

A poesia mística é feita de gemidos, entrelinhas, hipotaxes e metáforas. Mais próximos ao nosso tempo, e até contemporâneos a nós, temos muitos outros poetas que associaram a sua literatura à espiritualidade e tentaram, em seus versos, expressar o êxtase místico. Cito apenas alguns, como a mexicana Soror Inés Juana de la Cruz, a primeira poeta da literatura latino-americana; o inglês T.S. Eliot, que no poema Ash-Wednesday (Quarta-feira de Cinzas), escrito em 1930, três anos após a sua conversão ao cristianismo, canta que “a palavra perdida se perdeu”, “a usada se gastou”, mas perdura no “Verbo sem palavra, o Verbo. Nas entranhas do mundo”.

Recordo também o estadunidense Thomas Merton e seu discípulo nicaraguense, Ernesto Cardenal. Do Brasil, destaco como poetas místicos Jorge de Lima e Adélia Prado, que proclama:

Quem entender a linguagem entende Deus

cujo Filho é Verbo.

Morre quem entender.

Ela assegura que, no céu, os militantes / os padecentes / os triunfantes / seremos só amantes.

O Papa Francisco, em sua encíclica socioambiental, Laudato Si (Louvado seja – o cuidado da casa comum), revela sua profunda espiritualidade associada à criatividade poética:

Todo o Universo material é uma linguagem de amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é caricia de Deus (84).

Porém, Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil, resume tudo aquilo que, a nós cristãos, quiseram ensinar os místicos.

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