sexta-feira, 9 de março de 2018

De surpresa em surpresa



Ana Maria Machado


O mais surpreendente é constatar a surpresa geral. Ver tanta gente se surpreendendo com a insegurança pública, como se ela não viesse sendo construída devagar e sempre, com tanta eficiência, há tanto tempo. Como se tivesse surgido do nada, de repente, a despertar a indagação: como foi possível chegar a esse ponto?

Não que faltem desculpas históricas, a garantir obviedades a esta altura imutáveis, porque congeladas no passado. É só elencar a descrição de fatos reais de outrora com olhares de hoje, capazes de botar o dedo na ferida da construção da desigualdade. A colonização com capitanias hereditárias, distribuindo terra aos amigos do rei e passando de pai para filho. O genocídio a esmagar povos autóctones livres. A escravidão transportando povos inteiros da África, com violência, privando-os de liberdade e dignidade, para convertê-los em mão de obra barata a serviço de privilégios para poucos. A Abolição tardia, incapaz de indenizar os ex-cativos e começar a minorar as consequências da barbaridade secular. A volta dos soldados que lutaram na Guerra do Paraguai e não tiveram apoio para se estabelecer na cidade com moradias dignas. Os imigrantes ludibriados com promessas mirabolantes e largados ao deus-dará. A exploração mantida por todas as formas de neocolonialismo, imperialismo, capitalismo selvagem. A seca e o êxodo rural. Equívocos gerados por falsas e precárias proteções, corporativas e moldadas no fascismo, a descambar para um populismo enganador muito eficiente em manter a docilidade das massas ao lhes conceder um mínimo em troca da devoção cega e fervorosa, incapaz de questionar e distinguir cala a boca de direito. A casa-grande e a senzala, enfim, sempre a perpetuar a iniquidade.

Tudo isso é conhecido e sabido. Não vale a pena repetir, ainda que em hipótese alguma possa ser esquecido. As surpresas que chamam a atenção, no entanto, são manifestações bem mais recentes. Como se ninguém as pudesse sequer imaginar.

É espantoso, mas as autoridades de repente se dão conta, da noite para o dia, de que pode chover torrencialmente num país tropical. Assim, diante de algo que lhes parece inusitado, dão justificativas bisonhas. Observam que as redes urbanas de águas pluviais não estavam dimensionadas para arcar com as necessidades decorrentes das chuvas. Ou que a erosão que fez desabar mais um trecho da ciclovia se explica por uma mistura da ação de São Pedro com a culpa alheia, sabe-se lá de quem.

Já a insegurança pública, durante o carnaval ou fora dele, também gerou surpresas incríveis nos que deveriam ser responsáveis por cuidar do assunto. O governador Pezão, constatando o que todos os que estavam na cidade estavam carecas de saber, ficou abismado com os índices de violência. Chocado, se confessou surpreendido pelo aumento da população nos bairros da Zona Sul, por haver gente acampada nas areias de Ipanema e Leblon — coisa que qualquer transeunte pela orla vem observando há meses, e que a imprensa noticia desde o ano passado, com fotos e tudo. Para não falar da proliferação de ambulantes e camelôs, maciçamente abastecidos por produtos oriundos de roubos de carga — como também se noticia fartamente. De onde vem a surpresa com essa súbita descoberta? Tendas, Kombis estacionadas e depósitos enterrados na areia são esconderijos, camuflagem, escudos, há muito tempo. Desempenham papel importante na desordem urbana. E não apenas durante a passagem de bloquinhos ou megablocos. Sugere-se uma caminhada pela Avenida Copacabana ou pelo calçadão da orla, para perceber o corredor estreito a que são confinados os pedestres, sujeitos a ataques.

Está tudo ligado. Primeiro, se decide fechar os olhos e não ver as invasões, na areia ou em terra. Opta-se por ignorar a ocupação que desrespeita a lei, ocupa propriedade alheia ou espaço público, agride o meio ambiente pelo desmatamento, poluição das águas, destruição de mananciais, desobediência às posturas de construção e uso do solo. Em seguida, outras infrações ficam invisíveis: o gato na rede elétrica e o gatonet, a captação irregular de água, o abandono que condena os moradores à doença e à sujeira, sem saneamento. Em vez de se enfrentar para valer o problema da habitação popular, busca-se algum especialista bonzinho que justifique o erro, passando a mão na cabeça de quem mora precariamente e garantindo que “isso não é problema, é solução.”

E quando há mais gente do que cabe, apinhada no mesmo metro quadrado, disputando os mesmos parcos recursos em falta, vem o espanto: não se estava preparado para esse superdimensionamento... É lei da Física, sobre a impenetrabilidade da matéria: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço. Ações têm consequências, omissões têm efeitos. De onde vem a surpresa?

Mas confesso: há, sim, uma surpresa para quem achava que nada mais pode surpreender. Os juízes ameaçam fazer greve. Para garantir seu auxílio-moradia. Era só o que faltava para a lei sumir de vez. Coisa de estarrecer, ai de nós.
O Globo, 03/03/2018

4 comentários:

  1. Parece o fim do poço. Dá medo pensar que ainda se pode descer mais.

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  2. Sinto o mesmo sentimento, caro mestre Zeluiz.

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  3. A coisa toda é muito simples: éramos lesados, mas tolerava-se porque um quinhão para o povão era garantido. Sempre nos contentamos com o pouco que nos cabia. Agora até mesmo esse pouco, que é o mínimo, nos falta.

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