Artigo elaborado por MARINA COSTA QUARESMA
RESUMO
O presente artigo busca mostrar como o indivíduo se forma por essa filosofia da periferia. Foi dividido o artigo em seis tópicos. O primeiro aborda um rápido contexto histórico sobre o movimento hip hop, que teve a origem do rap. Logo depois é esclarecido etimologicamente e, principalmente, ontologicamente o que seria o rap. Nesse caminho, foi engajado a relação da pobreza com o rap. No segundo tópico foi mostrado como o rap pode salvar vidas, exibindo letras de rap do grupo 509-E, dos rappers Sabotage, Mano Brown, Marcelo D2 e Criolo. Iniciando a exibição da entrevista com o rapper Pelé do Manifesto. No terceiro tópico foi valorizado a humildade como virtude essencial, abordando o que são virtudes e porque essa é a mais importante no campo do hip hop. Nesse mesmo tópico é escrito falas da entrevista feita para a realização deste artigo. No último tópico, é mostrado porque o rap é filosofia e porque é a filosofia da periferia, explicando trechos de música do Gabriel, O Pensador e do Criolo.
INTRODUÇÃO
O movimento hip hop sempre foi muito importante principalmente nas comunidades marginalizadas para tentar transformar o espaço cercado pela violência, em arte, cultura, música, dança e outros instrumentos para um caminho, na mente do indivíduo, longe da realidade sofrida.
Este artigo se inicia com um pequeno contexto histórico desse movimento que é uma das principais bases de estudo da pesquisa presente, que logo depois discute qual a função do rap nesse movimento e a relação do mesmo nas periferias, desenvolvendo um breve tópico dessa grande relação da pobreza com o rap.
Depois, é visto a grande importância da mensagem consciente que é levada, por meio do rap, para a juventude com precária educação formal, e também o rap como uma reabilitação dentro dos presídios. Provando isso, é inserido neste artigo, o exemplo do grupo 509-E que surgiu dentro de penitenciarias do Brasil.
A grande finalidade de transmitir mais conhecimento e desconstruir a imagem do rap no Brasil, é abordada por todo o artigo. Mostrar e provar que o rap é filosofia e, com isso, sendo educação, que pode ser um instrumento pedagógico em comunidades carentes. Outro assunto que teve desenvolvimento em tópico único, é a valorização da virtude da humildade, presente nas favelas e periferias do Brasil, mesmo não sendo sinônimo de pobreza e sim de vivencias com outras virtudes como a solidariedade, a coragem e outros valores presentes, mesmo em meio a tanta criminalidade.
Há também uma entrevista com um rapper paraense que possui as características ideais dos indivíduos estudados neste artigo. São valorizadas as críticas da realidade feitas nas letras de rap que se identifica com a filosofia, por fugir do senso comum e ir em busca da sabedoria. É apresentado também várias explicações e trechos de rap, identificando o tema proposto dos tópicos.
Logo, para a melhora na educação de valores e a busca por uma vida melhor, sem apresentar o caminho da criminalidade como o único meio de saída da pobreza, é necessário a valorização dessa forma de educação que é bastante eficaz por utilizar a mesma linguagem, e o conhecimento desse movimento inteligente que vem proporcionando educação de qualidade para quem mais precisa.
A ORIGEM DO RAP
O Rap é um dos pilares do Movimento Hip Hop que se originou nos guetos de Nova Iorque por comunidades pobres jamaicanas, latinas e afro-americanas. O objetivo desse movimento era, e ainda é, o de combater a pobreza, a violência, o racismo, o tráfico de drogas, a falta de saneamento e de educação.
“Este movimento juvenil possibilitou uma crítica social a respeito das questões vivenciadas no cotidiano das periferias, como a desigualdade socioeconômica, a discriminação racial e a violência, tomando a arte como instrumento de engajamento político capaz de reelaborar o cotidiano e permitir a reconstrução da identidade negra. “ (J. C. G. SILVA, 1999)
Esses bairros, onde os imigrantes moravam, eram excluídos, por isso se encontravam com inúmeros problemas. E o rap, o break e o grafite como os instrumentos do movimento dessa classe, foram a outra oportunidade do jovem pobre sair do mundo do crime.
“Ruas sujas e abandonadas, poucos espaços para o lazer. Alguns, revoltados ou acovardados, partem para a violência, o crime, o álcool, as drogas; muitos buscam na religião a esperança para suportar o dia-a-dia; outros ouvem música, dançam, desenham nas paredes… ” (PIMENTEL, 2004, p. 1)
Afrika Bambaataa é reconhecido como um dos pioneiros desse movimento por fundar, em 12 de novembro de 1973, a primeira organização voltada para os interesses do hip hop, organizando “batalhas” de rap com o intuito artístico. Logo depois, essa data foi considerada o Dia Mundial Do Hip Hop. Mas voltemos a falar do rap.
2.1 O QUE É O RAP?
Rap significa rhythm and poetry em inglês, que em português se traduz para Ritmo e Poesia. Esse pilar do movimento é o da musicalidade, ondes os pretos, pobres e revoltados com a sociedade se expressam rimando ao som da base do DJ (outro personagem dessa revolução cultural). As letras possuem o conteúdo de indignação com a realidade vivida pelos autores, fazendo críticas ao sistema como expressa o rapper norte americano Eminem em sua música “Campaign Speech”:
“[…]Mas você deveria ter medo desse maldito candidato você diz que Trump não puxa saco como uma marionete pois ele promove a campanha com seu próprio dinheiro e era isso o que você queria uma barata tonta que é honesta com o poder nas mãos e que não responde à ninguém, ótima ideia! […]” (CAMPAIGN SPEECH, 2016)
“Como qualquer forma de arte, a música precisa ser compreendida como uma atividade humana inserida num determinado contexto social, histórico e político. A partir desta postura é possível considerar a especificidade da música como um processo, uma forma de sentir e pensar, capaz de criar emoções e inventar linguagens” (MAHEIRIE, 2001). O filósofo estadunidense Richard Shusterman descreve o rap como:
“[…]O rap é um dos gêneros de música popular que mais se desenvolve atualmente, mas também um dos mais perseguidos e condenados. Sua pretensão ao status artístico submerge numa inundação de críticas abusivas, atos de censura e recuperações comerciais. Isto não é de surpreender. Pois as raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo complacente da sociedade. Dado esse incentivo político, é fácil encontrar as razões estéticas para desacreditar o rap enquanto forma legitima de arte. Suas canções não são mesmo nem cantadas, mas faladas ou recitadas. Elas não empregam músicos nem música original; a trilha sonora é, em vez disso, composta de vários cortes, ou samples, de discos geralmente conhecidos. […]” (SHUSTERMAN, 1998, p. 143)
Logo pode-se dizer que rap é rima, ritmo, poesia, revolta, reabilitação, cultura, arte, música, pois é a expressão de um povo que sobrevive dia após dia a repressão do Estado com as suas características na sociedade. Então, o professor e rapper do grupo Inquérito, conceitua o rap e vai além do seu significado etimológico:
“O rap é quando a comunidade se junta pra encher a laje, é ir no cinema assistir um filme e ta lá o Sabotage. Rap é quando um moleque da FEBEM que mal escrevia ganha um concurso de poesia. Rap é Halls preto, não é bala de Tutti-frutti. É um carrinho de dog que hoje é food truck. É a caneta do Gog, a agulha do Kl Jay, os pés no Nelsão, a mão de Os Gêmeos shhhhh no spray. Hey, quer saber o que é rap puro? A escola ocupada pelos alunos. Marighella, Mandela, Guevara, Dandara, Zumbi foram rap antes mesmo do rap existir. Um texto do Ferréz, um samba do Adoniran são rap tanto quanto um som do Wu Tang Clan. Sarau do Cooperifa no meio da zona sul resgatando mais gente do que o SAMU. E as tia que leva sopão pros mendigo é rap até umas hora mais que os MC umbigo. E quando uma palavra salva um moleque, uns chamam de conselho, eu chamo de rap. ” (INQUÉRITO, 11/NOV/2016)
2.2 A RELAÇÃO POBREZA E RAP
Como já mostrado a origem dessa poesia com ritmo, rap e pobreza andam paralelamente, pois o que seria do rap sem a pobreza? O que seria do rap sem a revolta? Hoje pode-se encontrar letras de rap ostentando dinheiro, carros e mulheres, porém, por mais que possa apresentar uma contradição com os raps de origem, existe uma mensagem por trás do rap ostentação, que no final deste tópico será explicado.
A pobreza é o principal conteúdo nas rimas dos rappers, e com isso, desenvolve-se uma série de questões revoltantes dessa realidade. “A população das grandes cidades se divide entre um “centro” e uma “periferia”. O termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento médico), situação, aliás, encontrada no “centro”, isto é, nos bolsões de pobreza, as favelas” (CHAUÍ, 2000, p. 58). Nesse trecho de um rap do grupo Racionais Mc´s, a questão abordada é ser preto e pobre na periferia brasileira:
“[…] passageiro do Brasil, São Paulo, agonia, que sobrevivem em meio ás honras e covardias, periferias, vielas e cortiços… me ver pobre, preso ou morto já é cultural… pra quem vive na guerra a paz nuca existiu… uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço […]” (NEGRO DRAMA, 2001)
Percebe-se, pela letra, o conhecimento do meio em que se encontra e em que vive, o autor retrata onde mora e o que vê no local. Visualiza que as outras pessoas que estão em seu meio, passam pelo mesmo preconceito e racismo derivados da pobreza. Em outro trecho dessa mesma música do grupo Racionais Mc’s, a falta de infraestrutura é questionada:
“[…] ei bacana quem te fez tão bom assim? O que cê deu? O que cê faz? O que cê fez por mim? Eu recebi seu tic, quer dizer kit de esgoto a céu aberto e parede madeirit […]”
(NEGRO DRAMA,2001)
Na falta de infraestrutura, o escritor pergunta ao político ou ao burguês o que fizeram para a melhora de vida em seu lugar, e canta revoltado que não receberam nada além de falta de saneamento. “A vida na periferia impõe uma existência marcada pela rotina, com graves limitações às atividades de lazer, seja pelas precárias condições de infraestrutura das cidades, seja em virtude da falta de dinheiro. “ (ABRAMOVAY,2002, p.49). Em outra música nomeada “Muita Treta” do grupo Apocalipse 16, a violência que o periférico sofre é o principal tema:
“[…] é muita treta viver num lugar onde ninguém te respeita, onde a polícia rola e deita em cima dos humildes, ela espanca uma pá de cidadãos do bem, ela pega o menor e joga ele na Febem… é muita treta ver a paz cada vez mais distantes, ouvir tiros e saber que são meus manos se afogando no próprio sangue […]”
(MUITA TRETA, 2000)
Esse rap retrata a violência viva nas comunidades pobres do Brasil, expressando de maneira poética, atitudes do Estado, no caso a polícia, maltratando o pobre pela sua cor, classe social e por pertencer a uma favela para caracteriza-lo como ladrão. “No Brasil, essa desigualdade social se dá não apenas pela péssima distribuição de renda do país, mas também pela distribuição desigual de conhecimentos sobre os direitos do cidadão e de acesso à justiça. Essa afirmação que só aumenta os preconceitos contra os pobres, e passa a ser a razão para a colocação, com sucesso, do rótulo de criminoso no bandido pobre. ” (ZALUAR,1996, p. 50).
É retratado também os próprios moradores dessa favela, nessa situação, os traficantes, “se afogando no próprio sangue”, ou seja, se matando pelo tráfico de drogas presente na região. A falta de educação formal também é cantada nos versos do hip hop:
“[…] vi um pretinho, seu caderno era um fuzil, um fuzil […]”
(NEGRO DRAMA, 2001) “[…]é muita treta ver a educação restrita, os mano morrendo na fita […]” (MUITA TRETA, 2000)
O rapper Mano Brown, em Negro Drama, expõe a criminalidade no lugar da educação das crianças marginalizadas. No outro rap, o autor diz da dificuldade da falta desse mesmo fator. E por último, o fator da criminalidade, expresso nessa letra do rapper Mano Portão, o caminho por onde o marginalizado, sem cultura e educação, anda:
“[…] quem sabe futuramente um jogador profissional, ou completar seus 18 com a cara no jornal, na página policial, mais um marginal daqueles bem mal que no farol te trata, com a arma te ameaça […]” (É PRECISO TER FÉ, 2002)
Logo, o rapper retrata a sua realidade, a realidade periférica, que vive à margem da sociedade. Onde todos esses fatores, estão vivos. “Porém, consideram-se mais solidários, mais companheiros, menos individualistas, e dizem conhecer melhor a realidade e estar mais preparados para enfrentar o mundo” (ABRAMOVAY, 2002, p.40).
Até mesmo o rap ostentação tem seu valor, tem a sua relação com a periferia, o pobre, o negro. Pois o rapper que ostenta está mostrando também que o negro, o favelado pode sair da pobreza. Mostra que preto não é sinônimo de pobre, e o pobre não será pobre a vida toda por nascer naquela classe social. “Trata-se de um grito por liberdade e direitos de igualdade, daqueles que vivem à margem da sociedade na mais perversa invisibilidade. ” (LUZ, ANDRÉA. 8/Dez/2014).
Um exemplo disso é o rapper estadunidense 50 Cent, de origem pobre, que ostenta em seus videoclipes e letras de rap, mulheres, joias, dinheiro, carros, mansões, e mesmo assim, ensina, nas mesmas letras, valores morais:
“[…] meu fluxo, meu show me trouxe grana que serviu para comprar coisas caras, minha casa, meus carros, minhas piscinas e minhas joias. Irmão, não subiu à cabeça e eu não mudei. Você deve amar mais que odiar […]” (IN DA CLUB, 2002)
O RAP SALVANDO VIDAS
Esse gênero musical bem urbano, ajuda a construir e formar o indivíduo. Um indivíduo diferente, propositalmente, da formalidade que a sociedade exige. “As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social”. (SILVA, 2000, p.39).
Esse indivíduo é composto, além da vestimenta diferente, de gírias, gestos e atitudes próprias da cultura hip hop. O rap consegue fazer essa formação, principalmente, em moradores onde as letras refletem a sua própria realidade, ou seja, nos periféricos. Esse ensinamento que o rap traz se vê nas letras de rimas, elas estão compostas de saberes empíricos, onde o rapper deseja compartilhar para os interlocutores do seu meio social, elementos de valorização de virtudes. Logo, o rap exerce a função que a escola deveria exercer sobre os jovens e o resto das comunidades marginalizadas.
“Ainda estimula o conhecimento da história do povo negro e seus líderes, que ganham importância dentro da cultura. Incentiva a afirmação de sua identidade negra e consegue atingir um senso crítico para reivindicação por direitos sociais, econômicos, culturais e a luta por melhores condições para sobreviver. É uma possibilidade de se tornarem protagonistas de seus destinos. Os elementos da cultura hip hop como o break, graffiti e o rap podem facilitar o ensino para essa juventude”. (GUILHERME, 2008, p.20).
Em entrevista para o conteúdo deste artigo, o rapper paraense Allan Conceição, 25, conhecido popularmente como Pelé do Manifesto, fala dos elementos de modificações que o rap trouxe para a sua vida:
“O rap modificou minha vida inteira. Modificou minha forma de ver o mundo, modificou minha forma de ver meu semelhante e, principalmente, a forma deu me expressar, e enfim, a forma deu me vestir e a forma deu falar. […]”
Ele também fala da importância de levar, por meio do rap, uma mensagem instrutiva para o periférico que irá ouvir a rima. Pois compartilha ou poderá compartilhar dos mesmos conhecimentos empíricos que o rapper.
“[…] levar uma mensagem de consciência pra esses caras que também compartilhavam das mesmas experiências que eu, era muito significativo, era muito importante, porque as vezes eu tava com uma dúvida que o cara também poderia ta, então se eu esclarecesse a minha dúvida aqui, conseguisse transformar isso em música, eu conseguia levar pra ele um pouco de luz também […]”
Figura 1: Rapper Pelé do Manifesto (no centro) mandando a ideia consciente.
Fonte: Acervo pessoal, 25/11/2016.
Um exemplo brasileiro, que será mostrado neste artigo, é o antigo grupo de rap 509-E. O grupo é formado por dois integrantes, o Dexter e o Afro-X, que se juntaram no extinto presídio Carandiru na cela que se tornou o nome do grupo, em São Paulo. Depois de se conhecerem na penitenciária, começaram a escrever rimas, letras de rap que se tornaram a voz de todos os penitenciários:
“[…] diretamente do complexo carcerário Carandiru pra zona norte, leste, oeste e sul… 509-E, pavilhão sete, apoiados por cinco mil manos, pode crer, por manos e não por fulanos […]” (HORA H, 2000)
Figura 2: Representação do grupo de rap 509-E no presídio.
Fonte: https://pontoblack.wordpress.com/category/rappers/509-e/
Os dois presidiários, na época do grupo, conseguiram se transformar como indivíduos, e o rap teve forte influência nessa construção. “Relatos de reabilitação chovem no Brasil em que faltam oportunidades”. (PERES, 2009). Será analisado neste estudo os valores contidos nesses raps escritos, dentro de celas brasileiras, como fator transformador na vida de quem os ouve.
“[…] cocaína é pouco, o efeito aqui é outro, o R-A-P te deixa bem mais louco. Informação, autovalorização, pretos de periferia em ascensão. Alô, alô força da favela […]” (HORA H, 2000)
Nessa introdução da música “Hora h”, Dexter diz que o rap é mais forte que a cocaína, pois o seu valor cultural e transformador, no caso, faz o cantor “viajar”, quando canta o hip hop, mais “longe” do que qualquer outra droga. Depois, continua valorizando o rap, como a força dos pretos da periferia conseguindo, através desse meio artístico, a informação e a própria valorização do pobre como indivíduo social. Outro artista envolvido pelo rap, foi o, já falecido, Sabotage. Ele já foi assaltante e traficante, depois de entrar na música conheceu os valores da periferia que o rodeava:
“[…] sou Sabotage, um bom lugar, se constrói com humildade é bom lembrar, aqui é o mano Sabotage, vou seguir sem pilantragem, vou honrar, provar, no Brooklyn, tô sempre aqui, pois vou seguir com Deus, enfim […]” (UM BOM LUGAR, 1998)
Nos próximos trechos, o rapper Sabotage ensina o mal que as drogas causam, principalmente na periferia, onde a informação é precária. O poeta faz a comparação da droga chamada heroína com a bomba de Hiroshima, mostrando a fatalidade que causa na pessoa:
“[…] pras drogas basta um simples não, o dom da opinião… um beck muito louco e a maldita, a heroína, a tal da bomba da Hiroshima. Aqui se faz o fim pra periferia, melhor jogar pra cima que tomar […]” (CANÃO FOI TÃO BOM) “[…] drogas, labirinto sem rumo, sem volta, saindo da trilha sonora… mas isso não pretendo para os meus irmãos, não quero ficar tipo só o pó na capa do caderno, em dialeto máster ligado, dicionário no bolso e a leitura de um livro é necessário, informação à toda nação […]” (COCAÍNA, 1998)
Os marginalizados se afetam mais com as letras de rap, porque a linguagem é a mesma, direta e cheia de gírias, logo eles entendem rapidamente e facilmente a mensagem que condiz com a realidade dos mesmos, o favelado se vê como o rapper que passou pelas mesmas dificuldades, tornando o aprendizado mais dinâmico. “Podem ser muitas vezes vistos como ‘heróis’ por jovens de comunidades carentes. Eles compartilham da mesma realidade e o cantor pode ser considerado como um vencedor na vida por não ter optado por caminhos como a criminalidade por exemplo”. (GUILHERME, 2008, p.23).
Muitos artistas reconhecem e agradecem a presença do hip hop e do rap salvando a vida deles, ou seja, levando para o caminho artístico e não do crime. Em entrevista para a revista “Cult”, o rapper Pedro Paulo, com o nome artístico de Mano Brown, fala da grande importância do rap em sua vida:
“[…] o Pedro Paulo talvez não estivesse vivo se não fosse o rap, então também não posso ter essa ingratidão. O Pedro Paulo está vivo até hoje por causa de rap. Quando eu conheci o rap, o Pedro Paulo estava fadado a morrer. E na verdade o Pedro Paulo nunca deixou de existir, mas ele poderia ter morrido em 1988. […]” (BROWN, 2014, p.34) “[…] eu sei que pau que nasce torto se endireita, e eu exemplo vivo continuo na luta […]” (MARCELO D2, VAI VENDO, 2003) “[…] os mano da correria que se envolve com o rap, curti esse rap, é resgatado pelo rap […]” (CRIOLO, SAPATINHO, 2016)
Todos esses aprendizados compartilhados foram atribuídos empiricamente, na rua, nas vielas ou nas celas, e por isso informam às outras pessoas, que têm grande oportunidade de passar pelos mesmos sofrimentos do aprendizado, por morarem no mesmo meio social, e assim não precisar sofrer ou errar para conhecer os valores e a importância do bem para uma comunidade sem violência. Esse conhecimento de não induzir o ouvinte ao crime ou às drogas é mostrado na música “Gíria Criminal”:
“[…] Cascão: Tipo o barato que eu acho importante, ta ligado Jackson? É mandar uma ideia pra pivetada, aí né mano, cê ta ligado, os moleques… eu mesmo né mano, eu vou falar o barato pra você, eu me preocupo pra caralho no meu trampo que eu tô fazendo, porque que nem… é o seguinte, falo pro Brown direto, eu sou uns dos caras que tem que saber o que fala, se não os moleques vão falar: caralho mano, eu vou entrar no crime também que é mó boi, o Cascão tirou cadeia, ta, viveu no crime e ta cantando rap, então é mó mamão o bagulho. Então eu me preocupo muito nas minhas letras né mano, então eu acho que cê tem tipo que dar uma raciocinada em cima das letras pro moleque não pensar que o barato é viver o que você vive, ta ligado? Acho que o que você vive é consequência da sua caminhada e tal, eu acho que a molecada tem que ver o que nós vivemos, analisar e colocar algumas coisas na caminhada deles, não tudo né mano, ta ligado?
Jackson: Pode crer, e o rap salva né mano, essa é a prova né Jão! […]” (SABOTAGE, GÍRIA CRIMINAL, 2002)
A HUMILDADE COMO VIRTUDE ESSENCIAL
Para ser iniciado o objetivo deste tópico, deve-se conhecer o significado de virtude. Resumidamente, virtude é a disposição de caráter para querer fazer o bem, como por exemplo, a tolerância é uma virtude, porque o indivíduo que tolera, respeita o outro sabendo da importância dessa virtude para uma sociedade harmônica.
Em letras de rap é comum a presença da aceitação, do indivíduo, da sua cor, da sua classe social, do lugar onde mora, ou seja, a coragem de assumir quem realmente são. O rapper Pelé do Manifesto fala desse reconhecimento que o rap ajudou a visionar:
“[…] o rap fez aceitar como eu era, que eu era periférico, aceitar minha condição de periférico e me aceitar como preto […]”
Com esse primeiro passo da aceitação, com a virtude da coragem, vem a próxima virtude que é o orgulho de nascer naquele ambiente e consequentemente ama-lo e valoriza-lo. Para isso, é necessário a virtude do respeito por aquele lugar, e a humildade como o reconhecimento de quem somos no mundo. “As formas de ações individuais e coletivas têm início a partir de um sentimento de pertencimento, de identidade coletiva, que é motivado por sentimentos de solidariedade e de identificação com interesses comuns, associados às crenças e valores da comunidade”. (SANDOVAL, 2001).
Na entrevista para o objetivo deste artigo, o indivíduo Allan, conta quais os valores atribuídos depois de se tornar/formar um indivíduo do hip hop. Além de citar a humildade, ele fala da virtude da solidariedade na periferia:
“[…] são muitos os valores. Primeiramente, a humildade, depois pensar num bem coletivo, parar de pensar em crescer sozinho e começar a pensar num bem coletivo, pensar no meu vizinho, pensar na comunidade […]”
Mas, o que é humildade? “A palavra humilde vem do latim humile e, etimologicamente, quer dizer baixo, rente com a terra”. (RECINELLA, 2009). Logo, humildade não é sinônimo de pobreza, como o senso comum compartilha atualmente, é reconhecimento de não ser superior e nem estar abaixo do outro. Estar rente com a terra.
Sócrates foi humilde quando respondeu ao oráculo “Só sei que nada sei. ”, pois reconhecia a impossibilidade de ter a sabedoria absoluta, e mesmo deixando muitos intelectuais da época sem resposta, não afirmava que sabia mais que todos eles. “Para Sócrates, este é o início de toda sabedoria. À medida que o homem se conhece bem, ele chega à conclusão de que não sabe quase nada. Para ser sábio, é preciso confessar, com humildade, a própria ignorância. Só sei que não sei, repetia sempre Sócrates… uma vez confessada a ignorância, o interlocutor estaria disposto a percorrer o caminho da verdade. ” (WEBMASTER JÚNIOR, 2015. JOSÉ ANTÕNIO DA CONCEIÇÃO, 2015)
No hip hop, a virtude da humildade está nesse indivíduo formado pelo movimento. Conviver diariamente com o racismo, com a violência psicológica que a pobreza gera, faz com que a vítima se ache inferior do que os outros que possuem uma melhor condição de vida. Mas a favela ensina o caráter do respeito, seja nas letras de rap, nos guetos ou dentro dos barracos das comunidades, pela família. Ensina a ter humildade pois não é isso que é visto diariamente por eles por outras classes sociais, logo é um ensinamento que receberam pela não reciprocidade dessas virtudes. Isso é observado nas letras de rap:
“[…] Reinaldo voz ativa na quebrada, respeitado bem quisto pela rapaziada, um cara justo em qualquer situação, lado a lado parceiro sangue bom, há quatro meses saiu da detenção […]” (509-E, SEM CHANCES, 2000) “[…] humildade é minha lei, aqui Sabotage, não é viagem o que sei, então vai, faz sei que Jesus é a luz, a humildade é quem conduz para o rap reproduz […]” (SABOTAGE, RESPEITO É PRA QUEM TEM, 2000) “[…] e a humildade de um rei serão as armas da vitória para a paz mundial […]” (RACIONAIS MC’S, VIVÃO E VIVENDO, 2002) “[…] e é isso que é preciso, coragem e humildade, atitude certa na hora da verdade […]” (MARCELO D2, QUAL É?, 2003) “[…] eu nunca esqueço humildade vem desde berço, conheço longa estrada, ouvi tropeço não me perco, pois tudo tem devido preço […]” (CRIOLO, RAP É FORTE, 2016)
Portanto, assim como na filosofia, a humildade é essencial na produção do rap e na vivência dos moradores de periferia, pois com ela se obtém a coragem do reconhecimento como população pobre e o respeito para a união desse povo, o que é importantíssimo no movimento hip hop. Assim como dizia Confúcio, “a humildade é a única base sólida de todas as virtudes.
O RAP COMO A FILOSOFIA DA PERIFERIA
Nesta parte do artigo será mostrado porque o rap é filosofia, sendo, portanto, a filosofia da periferia. Etimologicamente, filosofia significa “amigo” ou “amante” (philo) do saber (sophia). O filósofo é aquele que busca a sabedoria, a ama. Podemos afirmar que o filósofo busca a verdade, logo, vai além do senso comum e procura a raiz dos acontecimentos da vida.
Na expectativa de tornar viva a identidade do excluído, o movimento hip hop faz várias críticas sociais, seja no break, no graffiti ou no rap. “Em um desses passos, o dançarino, com a cabeça no chão, gira o corpo em torno de si, fazendo com que as pernas lembrem os helicópteros americanos”. (TONI, 2005, p.70).
Para se obter críticas sociais, deve-se olhar a sociedade de outra forma, se desligando da mediocridade para analisar a totalidade do objeto, problematiza-lo e chegar à verdade. Mas para essa atividade, é necessário o instrumento da razão, no qual o indivíduo é o único animal privilegiado de usá-lo. “ É em busca pelo sentido que conduz o ser humano a questionar. Nossa condição é a de seres inquietos, garimpeiros incansáveis. Aprofundar a consciência é, assim, mergulhar na nossa identidade radical, uma vez que em nossa raiz está a vocação para a vida refletida ou reflexiva”. (MEIER, 2014, p.57).
O filósofo e rapper Gabriel, o Pensador, demonstra em suas letras de música a importância da razão, logo, da filosofia, provando a igualdade com o rap. Em letra do Pensador, ele diz para fazer o uso desse instrumento:
“[…] pensa! O pensamento tem poder. Mas não adianta só pensar, você também tem que dizer! Diz! Porque as palavras as palavras têm poder. Mas não adianta só falar, você também tem que fazer! Faz! Porque você só vai saber se o final vai ser feliz depois que tudo acontecer. E depois a gente pensa. E depois a gente diz. E depois a gente faz… o que tiver que fazer! […]” (SE LIGA AÍ, 2001)
Neste próximo exemplo, da letra do filósofo, ele diz da necessidade da mudança de atitude, no caso, saindo da acomodação, da ignorância, do senso comum para a análise crítica do meio social:
“[…] até quando você vai ficar usando rédea?!… Rindo da própria tragédia… até quando você vai levando? Porrada! Porrada! Até quando vai ficar sem fazer nada? … muda, que quando a gente muda o mundo muda com a gente. A gente muda o mundo na mudança da mente. E quando a gente muda a gente anda pra frente. E quando a gente manda ninguém manda na gente. Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura! Na mudança de postura a gente fica mais seguro, na mudança do presente a gente molda o futuro! […]” (ATÉ QUANDO?, 2001)
Outro rapper e, segundo Gramsci, filósofo, por questionar a vida, a realidade, Criolo chega a citar filósofos em suas letras. “Segundo o filósofo italiano Antônio Gramsci do século XX ‘Todos os homens são filósofos’, pois, todas as pessoas consciente ou inconscientemente param para questionar seu dia a dia, sua vida, a realidade em sua volta”. (PROF. TEREZINHA, 2009). Ele ironiza falando que loucura seria cidadãos lendo Hobsbawm e Maquiavel, pois não é essa a realidade presenciada na periferia.
“[…] alô Focault, cê quer saber o que é loucura? É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” […]” (DUAS DE CINCO, 2014)
Ele valoriza a educação incentivando a leitura, o estudo, a arte, o rap e com isso compartilha além de realidades, sabedorias que obteve empiricamente em seu tão falado bairro e pelos livros que leu durante sua trajetória. No final dessa próxima música, ele fala da importância de tudo isso para a formação intelectual de qualquer pessoa, principalmente do favelado:
“[…] a arte liberta, o livro liberta, o estudo liberta, o conselho de um mais velho da quebrada pode ajudar pra caramba na sua caminhada certo?! […]” (VEM COMIGO, 2010)
Figura 3: Rapper Criolo atuando em seu show.
Fonte: Acervo pessoal, 25/11/2016.
Na caverna de Platão, o antigo prisioneiro representa o filósofo que se desprende do senso comum encontrado dentro da caverna, e consegue enxergar a luz que simboliza a verdade. No rap não seria diferente. O rapper seria o filósofo cantando a verdade do meio periférico e o rap seria a luz da periferia ou a luz para a periferia. “Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo exterior? O mundo das ideias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a visão do mundo real iluminado? A Filosofia. ” (CHAUÍ, 2004, p.47)
Com isso, o indivíduo marginalizado e formado pelo hip hop conquista e busca o conhecimento empiricamente, e o rapper, além de adquirir o saber da mesma forma, consegue expressa-lo e, consequentemente, educa os demais indivíduos escrevendo letras sobrecarregadas desses saberes empíricos. Por isso o rapper ou o morador da periferia pode ser um filósofo, fazendo do rap uma filosofia da periferia. Como diz o rapper Criolo:
“[…] cada maloqueiro tem um saber empírico […]” (ESQUIVA DA ESGRIMA, 2014)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste estudo é igualar o rap com a filosofia, mostrando que também é um meio de educação, mas que ao mesmo tempo é bastante desvalorizado e por isso não é tão conhecido essencialmente pelo resto da população, fazendo com que seja discriminado por ser feito por favelados.
Mesmo sendo discriminados dessa forma, o favelado e a sua cultura, o rap pode salvar vidas, vidas perdidas pelo mundo do crime que foram para esse lado pela má educação que obtiveram devido ao seu meio social desigual.
Com isso, o rap é uma das filosofias, que se engajam no movimento hip hop, para a classe que mais precisa, além de capital, mas também de amor para seguir em frente em busca de trabalho, ou no trabalho, arte e filosofia para uma formação digna como indivíduo.
O rap incentiva o que a filosofia busca, o que é necessário para filosofar, logo, pode ser considerada a filosofia da periferia, pois retrata e critica a realidade vivida na favela, sendo um dos únicos e fortes meios de educação para a reflexão nas sociedades marginalizadas.
Fonte:http://www.rapnacional.com.br/a-filosofia-da-periferia-o-rap-e-a-sua-influencia-nas-comunidades-marginalizadas/
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