quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O BRÁS CUBAS DAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS


"Personagem marcante da obra Machadiana, narrador de memórias, entre feitos e não feitos, Brás Cubas transparece a capacidade de falar o que se quer porque já está morto. Uma breve explanação sobre este ícone do realismo brasileiro nos faz pensar em nossa própria essência de ser humano que não sabe ser sempre bom.
PUBLICADO EM LITERATURA POR JÉSSIKA LARANJEIRA



Brás Cubas é o protagonista e narrador da mais famosa obra realista de Machado de Assis, "Memórias Póstumas de Brás Cubas". A frase “não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor” exprime a ideia não de quem contou sua história e depois morreu, mas de quem primeiro morreu para depois contar. Filho abastado da família Cubas, passou por muitas experiências políticas e amorosas na vida, porém não alcançou o sucesso que gostaria e nem o casamento. Criou o “Emplastro Brás Cubas” buscando algum sucesso, mas acabou por gripar e, como consequência, morreu por pneumonia...

Expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado”. (p.11)

Quando começa a contar sua infância, Brás explica que era uma criança muito peralta e, como fora criado dentre muitas regalias, tinha um escravo, Prudêncio, para ser usado como brinquedo.

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — "ai, nhonhô!" — ao que eu retorquia: — "Cala a boca, besta!". (p.24)

Brás Cubas tornou-se um jovem rapaz e, além das regalias, também lhe era exigido o cumprimento das expectativas sociais para uma pessoa de sua condição financeira (o meio determina o homem). Chegou a beijar Eugênia mas rejeitou-a por ser coxa... "Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?", ele se perguntava. Bento, pai de Brás, espera que este se case e faça parte da política, pois uma escolha estava ligada a outra, Brás, porém, não estava necessariamente preocupado com o casamento em suas formalidades pois estava apaixonado por Marcela, a “linda Marcela”.

Primeira comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse efeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma coisa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito anos, deves lembrar-te que foi assim mesmo. (p.32)

Utilizando a ironia, uma característica marcante da personagem (e da obra como um todo), Brás disse “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos” (p.34), ironizando tanto sua inocência juvenil quanto a ganância oportuna de Marcela que, em troca de presentes caros, lhe dava atenção e falsos sentimentos. Mais tarde, acabou por fazer parte da política, e disse “entrei na política por gosto, por família, por ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos os motivos que levam o homem à vida pública” (p.75), assim percebe-se tanto a influência social a respeito de suas escolhas como a ironia ao relacionar a escolha da vida pública com ambição e vaidade.

Quando apaixonou-se por Virgília, mulher que passou a considerar o grande amor de sua vida, Brás Cubas apresentava sentimentos mais fervorosos, mas também pacientes. Virgília fora prometida à Brás, mas acabou por casar-se com Lobo Neves mesmo depois mantendo relações secretas com Brás, deste modo, ele até era amado, mas era apenas amante.

Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um beijo que ela me deu, trêmula, — coitadinha, — trêmula de medo, porque era ao portão da chácara. Uniu-nos esse beijo único, — breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, — uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, — vida de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo. (p.71)

Também por questões sociais, Brás e Vírgilia não poderiam assumir tais sentimentos em público por causar escândalos e problemas para a reputação da família de Lobo Neves, e reputação comprometida é sinônimo de baixos resultados tanto políticos quanto de politicagem, talvez o último especialmente. Com a vida conflitante a respeito de Virgília, com a morte do pai e a vinda da herança, Brás Cubas conhece Nhã-Loló, por intermédio de Sabina, e com ela pretendia casar-se, mas esta acabou por morrer aos dezenove anos e Brás, que confessou (como narrador) não tê-la realmente amado, não mais teria outro noivado.

Depois de idoso, já ausente da companhia de seu grande amigo Quincas Borba, com quem esteve por um bom período até a morte, Brás Cubas fica doente e começa seus delírios, imaginando-se em diversas figuras metafóricas, bem como a personificação da natureza que lhe dizia não ser ele mais útil a ela. Assim, tendo como última visitante de seu leito, Virgília, Brás Cubas falece.

O Brás Cubas narrador, por estar morto, utiliza discursos que, por questões diplomáticas, não se usaria em meio social, bem como expõe pensamentos que lhe ocorriam mas não eram divulgados em vida, assim, este fato, estar morto, o traz a não mais censurar o que se deseja transmitir, portanto há nesse ponto a crítica negativa tanto em relação às suas atitudes quanto às dos outros e aos costumes sociais da época. Brás Cubas buscava, de certa forma, a imortalidade, mas o que consegue é apenas contar, mesmo após a morte, a trajetória de vida mesmo que esta não mais poderia modificar-se. Como desfecho, o narrador utiliza, em seu mais profundo pessimismo, ocultando sua empolgação quando Virgília possivelmente estava grávida dele, o seguinte ceticismo: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (p.152).

Brás Cubas é uma personagem histórica. Personagem inerente a qualquer abrangência sobre literatura brasileira. Não seria menos."



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