Às vezes é possível viajar sem passagem, sem bagagem, sem passaporte,sem visto. O exótico pode estar nos muitos ritmos da urbanidade.
Conhecer novas paisagens é uma questão de refinamento do olhar. As narrativas de Rubem Fonseca com frequência mostram como ser um
viajante em seu próprio mundo desde sempre.
Para nos movermos por este tema, parece imprescindível conhecer ou relembrar a emblemática figura do flaneur. Este sujeito aparece juntamente com o surgimento da vida urbana, quando se formam as multidões indo e vindo de seus trabalhos em direção a casa ou vice-versa. Imerso a este grande vai e vem, o flaneur acompanha a multidão com seu olhar. O prazer desta figura é próximo ao do voyer que observa o outro sem ser observado, entretanto, a diferença é que ao flaneur há prazer em movimentar-se pela rua capturando com seu olhar as imagens dos transeuntes que são transformadas, muitas vezes, em prosa ou poesia. Baudelaire, poeta francês do século XIX, foi o primeiro notável a praticar a flanerie pelas ruas de Paris, escrevendo até mesmo um poema dedicado a uma mulher desconhecida que passou por ele em determinado momento e que provavelmente nunca mais voltaria a ver, este poema é chamado A une passant. Tal qual Baudelaire, o flaneur, em suas caminhadas e esbarrões, capta inúmeras características do outro imerso no cenário por que passa, viajando por meio desses choques. É um andarilho que usa para construir seus castelos de histórias as imagens contempladas de transeuntes anônimo. O ritmo da cidade imprime algo sobre o tempo do olhar das pessoas. Enquanto os transeuntes estão imersos em um ritmo frenético, o andarilho se coloca a parte e destoa do compasso urbano. Este deslocamento parece aproximar-se do deslocamento do viajante, que uma vez fora da sua vida cotidiana, pode experimentar uma movimentação mais lenta em outro lugar e por isso gozar diferentes paisagens e experiências.
Neste momento em que nossa rotina mais parece envolta a uma redoma de vidro, é possível aprender com o flaneur moderno lições de como nos deslocar com um pouco mais de atrevimento em nosso próprio território. O fruto desse olhar ousado pode ser o de nos tornarmos viajantes no território que nos é corriqueiro. Para extrair as informações enriquecedoras as nossas trajetórias cotidianas, seria possível elencar inúmeras obras literárias que poderiam promover a desestabilização do olhar. Entretanto, como precisamos escolher apenas uma, percorreremos o conhecido conto do autor carioca Rubem Fonseca, A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, publicado em 1992. Elencaremos alguns caminhos apontados por Augusto, o andarilho, sobre a flanerie:
1- Obviamente ele habita o centro de uma cidade, mais especificamente, do Rio de Janeiro.
A arte de olhar ou “guardare”, em italiano, torna-se mais interessante onde há mais transeuntes, mais cenas heterogêneas, muito burburinho. Por isso, Augusto que mora na Rua Sete de Setembro, em cima de uma chapelaria, no Centro, consegue informações visuais de sobra.
2- O andarilho de Fonseca tem um lema que ele apresenta com uma expressão latina Solvitur ambulando.
Essa expressão significa, literalmente, resolver andando, ou seja, acredita que caminhando se pensa melhor, encontrando, desta maneira, soluções para os seus problemas. Esse pensamento do personagem nos remete à escola filosófica grega peripatética (os que passeiam). Alguns discípulos de Aristóteles estudavam ao ar livre, andando de um lugar para outro, este era um método para atingir o bom pensamento. Projetando para a nossa vida, este hábito parece um motivo interessante a fim de repensar o uso do automóvel para quem precisa de um meio de locomoção com motor até para ir à padaria.
3- Você não precisa pedir demissão do seu trabalho para praticar a flanerie.
Apesar dos flaneurs tradicionais serem pessoas consideradas ociosas, o personagem em questão preferia trabalhar. Por razões pessoais, não se sentia bem desfrutando do dinheiro ganho com sua arte. Para ele, era como torná-la mercadoria. Claro que isso é apenas uma particularidade do personagem-escritor. Só queremos apontar com isso que você não precisa estar desempregado para viajar nas cenas do cotidiano. Embora esta seja uma boa atividade para quem está dando um tempo de algum trampo no momento. No entanto, no conto em questão, assim que o personagem consegue uma forma de renda alternativa – o sortudo ganhou na loteria – ele para de trabalhar. Óbvio!
4- Mesmo ganhando na loteria e não precisando trabalhar, Augusto exerce alguma distinta atividade.
Depois de pedir demissão da companhia de águas e esgotos onde trabalhava, Augusto passa a ensinar prostitutas a ler. Ele percorria zonas de prostituição e escolhia uma prostituta, como a maioria não sabia ler, ele as pagava para que pudesse ensiná-las. Um fetiche? Talvez. Mas seja lá o que o motivasse, parece pertinente notar que quando o nosso olhar está voltado para o outro, é mais provável que nos sintamos movidos a ajudá-los com nossas habilidades.
5- Augusto observa e acompanha as mudanças dos cenários de sua cidade, pois transita por ela com um olhar muito aberto para a alteridade.
Augusto percebe um fenômeno que há muito ocorre nas grandes cidades brasileiras: a transição das salas de cinemas de bairro em igrejas. É interessante a forma como Fonseca descreve isso e como o personagem utiliza um cinema que ora é cine pornô ora igreja como material para escrever o seu livro. Augusto não faz qualquer tipo de julgamento moral dos personagens com quem entra em contato, por outro lado, observa e os descreve.
6- Augusto conhece cada ponto da cidade e estabelece com ela uma afetividade que provoca no leitor uma vontade louca de se transportar para esses nomes de ruas, largos e praças citados.
O personagem apreende a cidade não apenas para escrever seu livro. Livro este que não pretende ser guia turístico, nem manual de saúde, muito menos guia arquitetônico. A finalidade do livro de Augusto é filosófica. Uma espécie de representação da comunhão com a cidade em que vive.
6- Como conhecedor do lugar onde vive, o personagem consegue dar seus jeitos na hora da necessidade. Sobre sobreviver na rua. Sabe que as muitas lojas do McDonald’s representam um oásis para quem precisa aliviar-se em plena cidade. Ensina também que quem anda à noite em um grande Centro nunca deve estar parado ou andando devagar, afinal, “nas ruas desertas é preciso andar muito depressa, nenhum assaltante corre atrás do assaltado”.
7- O andarilho se inebria da poesia do pouco que resta da natureza no grande Centro.
Em uma passagem, Augusto fica preso de propósito no parque do Campo de Santana apenas para sentir o ar perfumado das árvores e inebriar-se de sua leveza. Você não precisa ficar preso num parque, mas parar alguns minutos e observar a natureza é uma atitude da flanerie admirável.
8- Augusto resolve suas questões existenciais na rua.
Augusto é um personagem niilista. Sem esperança, porque a esperança, segundo um velho amigo, é uma espécie de libertação apenas para os jovens. Mas a memória substitui a pulsão de vida no caso de Augusto, as lembranças de sua família naquela cidade, a lembrança de suas rotas noturnas, os prédios, as árvores. Enfim, a sensação de pertencimento em relação à cidade onde vive. Mesmo que esta não seja perfeita. Afinal, Solvitur ambulando.
Longe de querer aproximar a Literatura a um manual de como viver a vida, desejamos lê-la como um instrumento de espelhamento de nós mesmos. Usando a analogia do escritor Gustavo Bernardo, a literatura nos torna Ouroboros tentando morder a própria calda, mas sem nunca de fato alcançá-la. Portanto, a obra do escritor carioca Rubem Fonseca, além de nos proporcionar um passeio literário pelo Centro do Rio de Janeiro, também nos mostra uma das várias formas de cultivar um olhar mais apurado na viagem da vida cotidiana
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