domingo, 3 de abril de 2016

TODO MUNDO E NINGUÉM





Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é"Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demônios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.
Representada pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), a obra é de autoria do criador do teatro português, Gil Vicente.
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:
Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Notas de tradução
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Porfiando: insistindo, teimando.
Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?O verbo haver nestes versos tem o sentido de ter.
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
sempre nisto me fundo.
E sempre nisto me fundo: e sempre me baseio neste princípio, nesta idéia.
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.

Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.

Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que ninguém busca consciência.
e todo o mundo dinheiro.




Ninguém:
E agora que buscas lá?
Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.

Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.
Adição: acrescentamento.
Acude: ocorre.



Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?A palavra mor, muito pouco empregada atualmente, é uma forma abreviada de maior. Poderíamos dizer, pois:
buscas outro maior bem...
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.

Ninguém:
E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.

Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado,
e ninguém ser repreendido.




Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.Ma: me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto, respectivamente.
Ninguém:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.

Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu:
Muito garrida:
Todo o mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte.
Garrida: engraçada.



Todo o Mundo:
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
Mo: me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome demonstrativo objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto a mim.
Estorvar: atrapalhar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Ponho: entenda-se: proponho.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
que todo o mundo quer paraíso
e ninguém paga o que deve.




Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Folgo: tenho prazer, gosto.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.

Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.

Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que todo o mundo é mentiroso,
E ninguém diz a verdade.




Ninguém:
Que mais buscas?
Todo o Mundo:
Lisonjear.Lisonjear: elogiar.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro,
e ninguém desenganado.
mui: forma reduzida de muito.
O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.
O autor: Gil Vicente

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