Decidi achar as cartas do Caio Fernando Abreu no meu arquivo (soterrado de papéis, acumulados em décadas). Ele escrevia normalmente para mim nos anos 1970, quando por um tempo fomos muito amigos e nos correspondemos, ele em Porto Alegre, eu em São Paulo. Biógrafos e estudiosos já me pediram essas cartas. Uma biógrafa chegou a duvidar da existência delas, já que eu não ofereço a aparência de um capital simbólico suficiente para convencer os deslumbrados. Mas por algum motivo não cedi.
Agora vou revisitar cada uma delas, sem obedecer a nenhuma cronologia. São todas cartas legítimas, originais, com a assinatura do amigo que já tinha grande prestígio na época e se transformou num escritor cult, numa celebridade nacional, queridíssimo por muitos milhares de leitores. Divulgo para o meu país conforme recebi: com o espírito desarmado e abraçado ao grande amor que os escritores do Brasil tem pela literatura que aqui se faz e aqui se paga com a vida.
Com vocês, o Caio que me escrevia e foi uma personalidade chegada, um amigo por algum tempo próximo, irmão das letras e generoso em sua amizade e talento. A primeira, que divulgo, é do início de agosto de 1976. Foi escrita em papel pardo comum, a máquina e corrigida a caneta. Tem algumas frases antológicas, que poderão ser notadas ao longo do seu texto.
As Cartas
Porto, 2. 8. 76
Nei:
Nosso velho conhecido — Mr. August — chegou ontem, vestido a caráter: aquele velho terno cinza muito molhado, e tão velho que já tem algumas manchas de limo. Agora é preciso hospedá-lo por 29 dias. E resistir, já que ele insiste sempre em nos puxar para dentro e para baixo. Resistiremos.
Junto com ele veio também — graças! — um pouco de luz, acho que para contrabalançar: a Pifa, um pouco mais ruiva e muito mais bonita. Deu notícias de você, da Ida, Daniel e Juliana (as mãos de Juliana já estão famosas aqui no Sul, dizem que são longuíssimas, expressivas, espirituais). Eu tinha recebido os teus BIC de pena (lindos) e a notícia do nascimento dela, fazia algum tempo. Devia ter respondido, mas a barra andou pesando, tremores de terra internos e também bodes de fora — mortes, doenças na família (avôs, avós, tias — essas coisas).
Agora estou recomeçando/refazendo. Batalho emprego COM vontade de achar y me vuelve a la universidad, dia 9. Independência ou morte é a ordem do dia. Tenho escrito bastante, umas coisas muito cruéis, às vezes até meio porcas, genetianas. Por aí você pode supor o estado da cuca. Mas tudo bem: botar o horror pra fora é um dos jeitos de não deixar que ele nos esmague.
Estou mandando procê o recorte duma entrevista com o Mário Quintana, saída no Caderno de Sábado, e onde você — glória!- pinta como um dos poetas preferidos dele. Congratulations efusivas! Acho que é o maior elogio que você já recebeu em toda a sua vida. Confesso, fiquei com inveja. Tá saindo um novo livro dele — “Apontamentos de História Sobrenatural”. Um dos poemas que mais me fez a cabeça é este aqui:
O Morituro (Mario Quintana)
“Por que é que assim, com suas caras imóveis e simiescas,/ os vivos nos devassam num cínico impudor?/ Por que nos olham assim — como se fôssemos cousas —/ quando os nossos traços vão repousando, enfim,/ na tranqüila dignidade da morte?/ Por que é que eles, com a sua obscena curiosidade,/ não respeitam o até mais íntimo da nossa vida/ — ato que deveria ser testemunhado apenas pelos Anjos?/ Ah, que Deus me guarde na hora da minha morte, amén,/ que Deus me guarde da humilhação deste espetáculo/ e me livre de todos, de todos eles:/ não quero os seus olhos pousando como moscas na minha cara./ Quero morrer na selva de algum país distante…/ Quero morrer sozinho como um bicho!”
Sinto saudade de ti. Sinto falta. Os amigos estão raros, distantes, esquivos. Não deu para viajar em julho, talvez no fim do ano, ou de repente, sempre pode ser.
Que teus três companheiros estejam bem. Um beijo para eles. Até a outra.
Teu
Caio
Retorno
Foi assim, naquele distante agosto, que Caio me falou de suas leituras, seus planos, seu trabalho, suas faltas e me informou sobre o elogio do Quintana para o poeta estreante. E se despediu beijando as três pessoas da minha família, mulher e um casal de filhos (o terceiro veio dois anos mais tarde). Deus guarde Caio, que entre nós cultivou a amizade sincera e a proximidade solidária e calorosa.
Caio Fernando Abreu: três motivos para uma carta
Compartilho mais uma carta que Caio Fernando Abreu escreveu para mim nos anos 1970. Desta vez, ele enumera três motivos para me enviar suas preciosidades: primeiro, a resenha sobre meu livro de estreia “Outubro”, que saiu na imprensa de Porto Alegre; segundo a alegria de ter participado de um encontro com jovens estudantes de Vacaria, RS, onde reforçou sua certeza na missão de escritor, num trecho antológico sobre nosso ofício; e terceiro, a descoberta de uma poeta mineira então desconhecida, Adélia Prado. O desfecho é mais do que surpreendente: o relato de um sonho castañedistico! Ou seja, é tudo alumbramento. Vamos à carta.
Porto 4. 7. 76
Nei:
Te escrevi acho que faz umas duas semanas, um pouco menos. Você ainda não respondeu, e tudo bem, não se preocupe nem se apresse. Soube pelo Dudu (o San Martin, não o “Magic Stone”, que é meio chatinho) que você saiu da Folha de São Paulo — ou que te saíram, digamos assim. Sempre as sacanagens inesperadas, não é? Então imagino que você deva estar um pouco envolvido com a batalha de grana ou de novo emprego, e, sei lá, espero que tudo já tenha se resolvido ou, pelo menos, que você esteja levando na melhor possível, sem bodiar com isso.
Tô te escrevendo por três motivos, principalmente.
Primeiro: enviar esse recorte, do “Caderno de Sábado” de ontem — uma crítica do Antonio Hohfeldt sobre “Outubro”. É UMA CRÍTICA ALTAMENTE ELOGIOSA — e eu fiquei contente. Muita gente pixa o Antonio (inclusive eu), mas, não sei, o Appel diz sempre que “no fundo ele é um sujeito bom e esforçado” — é um cara também que apesar dos seus muitos defeitos, tem uma grande abertura. É muitíssimo menos provinciano e cagador de regras que os Neis Gastais e Cristaldos da vida, o que é um ponto (ou muitos) a favor. Além disso, me parece que ele decodificou muito bem o teu livro, que ele sacou, sentiu. Espero que você também fique contente. O Wladyr Nader disse que teu livro era adolescente. Forças! Eu não concordo. Uma vez você falou uma coisa muito bonita, aquilo que “a gente não deve atraiçoar a própria juventude” — e na minha opinião é exatamente isso que o Nader não sacou no “Outubro”: o compromisso com o novo (que sempre vem, não é Belchior?).
E aqui pinta o segundo motivo desta carta. Seguinte: estive dois dias em Vacaria, fazendo palestras para estudantes do nível colegial, sobre a experiência “Teia” e “Há Margem” e “a novíssima literatura gaúcha”. Nei, foi demais bonito. Não dá para contar tudo, seria assunto pruma carta de 50 páginas. Mas o que aconteceu foi que me dei conta que não estamos escrevendo inutilmente, para ninguém ou para nós mesmos. A molecada (em Vacaria!) estava excitadíssima, na biblioteca do colégio tinha “Teia” e também “Há Margem” (a professora de literatura é muito legal), então eles estavam informados sobre você e o resto do pessoal. Senti que estão muito ávidos de uma literatura que fale do aqui-agora, que fale deles também.
Um garoto me falou que não suportava a literatura antes do meu papo porque pensava que “literatura eram só aqueles caras chatos do livro de português: José de Alencar, Raul Pompéia”. Por aí afora. Me deixou muitas coisas boas, uma delas a certeza que minha missão é exatamente essa: fazer as cabeças alheias. Distribuir, salpicar aqui e ali pitadinhas de inquietação, de sonho, também de luta. Uma certeza objetiva (fora de mim) que existo como escritor, você me entende? E que o nosso recado, através do que escrevemos, sem que a gente saiba, está voando por aí — e que nós temos que ser cada vez melhores, mais verdadeiros e mais conscientes do que podemos dar ao outro que nos lê. Isso aí. Pessoalmente, um dia, te conto como foi tudo.
O terceiro motivo é poesia, também. Encontrei uma poeta chamada Adélia Prado, mineira — acho que já te falei dela —, tem um livro chamado “Bagagem”. E tenho lido os poemas dela sempre pensando em você. Deu a vontade de dividir contigo e, na impossibilidade de te mandar o livro (não me separo dele), te mando também esses poemas: Grande Desejo, Impressionista, Ensinamento, Um Jeito, Bilhete em Papel Rosa, Psicórdica, Clareira, Cabeça.
É isso aí. Tem muito mais, é um livro farto de singelezas, gosto de bolinho, dia de chuva e café preto. Adélia tem me encantado e me feito ver o mundo de um jeito muito mais simples, “sem sérias patologias”, que existe e que a gente já teve e se perdeu.
Ah, queria te contar também de um sonho castañedistico que tive em Vacaria: muitas coisas, uma festa, eu assistindo do portão uma festa que passava sobre a rua, e a rua era rolante, as pessoas não caminhavam, a rua é que carregava eles. Aí entrei na casa branca, grande, colonial, e tinha uma bacia de louça cheia de objetos, principalmente pedras. Mergulhei as mãos dentro da bacia. A voz da minha avó disse: “São objetos de poder”.
Saudade de você. Um beijo pro Daniel, outro pra Ida. Até de repente,
do seu
Caio
Retorno
1. Sobre personalidades: é a opinião do Caio, que deixo aqui na íntegra. 2. Gostei muito da resenha do Antonio Hohfeldt. 3. “Teia” e “Há Margem” são dois livros coletivos de contos e poemas que foram publicados naquela época em Porto Alegre. 4. Pedi demissão da “Folha” para trabalhar na “IstoÉ” onde, aí sim, me saíram. 5. “Outubro” é meu livro de estreia, publicado pelo Instituto Estadual do Livro — RS em que Caio foi um dos consultores: era preciso três aprovações — uma outra foi do Irmão Elvo Clemente, da PUC. 6. Wladyr Nader escancarou as páginas da “Escrita” para minhas resenhas. 7. Caio datilografou todos os poemas citados da Adélia Prado. Não reproduzo aqui porque tomaria muito espaço. 8. Pelo mesmo motivo só reproduzo a primeira, a segunda e a última página da carta. As outras contém reproduções dos poemas de Adélia. Ao todo, são três folhas escritas na frente e no verso.
Karta kaótica de Caio Fernando Abreu
Já tínhamos tempo acumulado, e não era pouco. Das cartas que Caio Fernando Abreu me endereçou em 1976, esta é a mais dark, pesada e absurdamente luminosa. Aqui temos o escritor aos 27 anos, com um livro poderoso na praça, “O Ovo Apunhalado”, sendo alvo de críticas, análises, elogios da grande imprensa e dos veículos especializados e se sentindo um lixo, desconfortável no seu papel de escritor, duvidando agora do seu ofício, se perguntando porque nos metemos nessa e falando sobre surtos, loucuras, internações, psiquiatria, porres. E, ao mesmo tempo, declarando mais uma vez sua fé na dignidade humana. Nada foi cortado, nem nesta nem nas cartas anteriores. Com todas as letras, vamos revisitar o Caio dos meus arquivos, que agora vem à tona como um vulcão. Fiquem atentos. É barra. A mais genuína.
Ao som de Belchior
Nei:
Salve: hoje to tomando chá com limão e ouvindo Belchior: “eu sou apenas um rapaz latinoamericano/ sem dinheiro no banco/ sem parentes importantes/e vindo do interior”. Eu também. Grilei com a crítica e as cartas-pixativas de “Escrita” — ainda não chegou aqui — sei lá, to numa fase de análise em que fico me achando um lixo (apaga o cigarro no peito), outras putas-velhas-de-divã dizem que é-assim-mesmo and I hope so, daí fica pintando esse tipo de coisa e só piora, não é? Sabe que desde janeiro não escrevo NADA? Foi em janeiro que começou essa badalação em torno do Ovo, que me fez muito mal, tanto a positivo como a negativa — já não tenho naturalidade para escrever. Além disso inútil.
Nair, minha mãe, hoje veio de novo com o velho papo: na sua ronda costumeira por casas espíritas, umbandistas e o que pinta, sempre dizem que “uma mulher fez um trabalho para mim num cemitério”, many years ago — é uma coisa pra me enlouquecer, e que só não enlouqueci porque tenho muita força, mas o tal trabalho bodeia num outro sentido, causando depressões, autodepreciações. O psiquiatra hoje de manhã disse que tenho como uma espécie de “culpa original”: acho que não mereço nada de bom que me acontece, daí nos momentos em que devia estar meio contente é quando estou mais bodiado (vide Laing, “O Eu Dividido”, falso-self & outros bichos). Eu não sei. Sei que tem um negócio errado.
Tua carta, lida quatro vezes, me deu uma vontade absurda de estar em SP. Absurda porque tive a oportunidade de ficar aí em fevereiro e não quis. Você me pergunta pela minha paixão…Saco, acho que aqui to sentindo falta de estímulos-externos: barras mui violentas, batalha por grana, por casa, por emprego, essas coisas. Nas vezes em que estive mais pressionado de fora para dentro foi quando mais produzi. Estou cansado da meia boca daqui: sentimentos mornos —quanto tempo faz que não me apaixono? quanto tempo faz que não sinto ódio? quanto tempo faz que não tenho vontade de morrer? É como um filme de Antonioni fase- antiga, longas tomadas, lentíssimas, mui sacais — & nada acontecendo. Quanto tempo faz que não beijo alguém na boca? Many time, my friend.
Saí a catar o Dudu San Martin ontem —não teve espetáculo, chovia pra caralho (“o maior caldo”, como dizem no IAPI) — daí li os poemas que ele mandou pro livro-coletivo-do-Valdir (que me mandou o livro, tudo bem, escrevi a ele). Wow! Ou uáu, para ser mais nacionalista. São muito fortes? vivos? bons? são fortes-vivos-bons, mas também são mais, têm um FERVOR que fazia tempo eu não sentia em nada escrito. Acho que é o melhor dele que li até agora, me fez muito mal, me baixou ainda mais a moral, porque são extremamente pessimistas (mas, nessa altura do campeonato, pode-se ser otimista?). Depois bebemos cachaça e ouvimos Mercedes Sosa. Levitan — encontrei no teatro, outro dia, ele fez a música duma peça infantil que está em cartaz junto com a nossa, tava de calça listrada e, não sei, meio “controlado” (não sei se é bem isso), como sempre.
Intervalo: gagos e vesgos
Parei quase umas 24h, nesse tempo (será que no espaço também?) que separa a última frase coube: uma apresentação do “Sarau” prumas 20 pessoas (amargo, não?), uma tarde de autógrafos do Gabriel de Britto Velho onde a média de idade das pessoas devia ser — sem exagero — uns 60 anos (mas ele é ótimo: gago: sempre gostei muito de gagos, de vesgos também, têm something else); quebra-pau nos camarins (ainda vou escrever uma peça que se passe naquele espaço entre o camarim e o palco).
Incrível, tá mesmo difícil, meu amigo — chegou Caparelli, trovamos, trovamos, aí quando ele ia saindo chegou um cara da UNISINOS com um gravador, querendo me entrevistar. Fui entrevistado. Burríssimo, o moço, mas excelente visual. Ficou me olhando dum jeito esquisito quando perguntei: “Sabe que você poderia estar faturando horrores como mocinho de bangue-bangue italiano?”
Esquina maldita
Mas, como eu ia dizendo — depois de mais de um mês, ontem, fui à Esquina Maldita procurar Emílio Chagas. Bem foi inevitável, tomamos um pileque épico. Hoje acordei ruim, gosto de cabo-de-guarda-chuva na boca & culpa: ando bebendo muito. Horrível, não é? Eu acho, também, mas é difícil evitar, principalmente agora que começou a esfriar, de noite dá aquela necessidade de coisas quentes você sai por las calles, aí vêm as brahmas, os vinhos, os conhaques, as cachaças. E é engraçado, quando a gente tá bebendo com alguém chega num ponto em que parece que vai acontecer alguma coisa (ninguém sabe exatamente o que), e que para essa alguma-coisa acontecer mesmo é preciso beber um pouco mais. Daí você pede — e então a coisa começa a se decompor. Nada acontece, o porre começa a pintar & a mosca pousa na sopa fria.
Nei, estou ficando cínico e sem esperanças. Essa é uma fase grave. Você não pode me ajudar. Pode-se ficar cínico numa boa? Já não consigo acreditar muito mais nessa “numa boa”. Apaga o cigarro no peito.
Tenho transado com o Henrique do Valle. Ele é incrível, incrível mesmo, mas numa ruim. Não é exagero, NUNCA vi ninguém mais drogado, não consegue ficar em pé, quem o ampara é a namorada, que se chama — juro — Misericórdia. Tem marcas de picadas nas VEIAS DOS TORNOZELOS. Veja esses poemas que ele me trouxe: “ninguém acreditou/ quando eu falei dos anjos/ que moram nas estrelas// então eu falei da crise do petróleo/ do preço do dólar/ e falei mal dos outros// nas estrelas/ os anjos morriam de rir”. Ou esta, baudelairiana: “escuta minha prece, Satan/ já que o lótus não nasceu/ deixa eu beber teu vinho/ com os bodes da floresta// já que a vida não é nada/ sem teu sopro// só tu devolves paz/ só tu dás alegria// só tu entregas prazer// enchendo a terra com teu orvalho”, Ele trouxe as respostas de um questionário para a “Escrita”, mais uma pilha de poemas. Alguns vão junto com a matéria mas os outros eu não sei o que fazer. Tem a “Inéditos”, de Belo Horiozonte. Ele é muito muito muito bom. E dói olhar para ele, porque está se matando e sabe disso.
Cuca meia-boca
Estou meio tonto, de ressaca. Ontem vi a crítica da Veja sobre “O Ovo” — aprovado, não é? Não fiquei contente, não me pergunte porque (a tal “culpa original”?). Depois vi meu conto na Ficção, aí fiquei contente. Queria que você lesse, é uma coisa muito louca.
Chega o Correio com um livro de Minas (meu deus, como os mineiros escrevem) —“O Globo da Morte”, de Hugo Almeida Souza, um pra mim outro pra Jane (que manda um beijo), abro ao acaso: “Faz assim, cara: diga que tá legal, muito bonito, colorido, sabe como? , (suas mãos mexiam, o cabelo no olho), que o anúncio dá vontade na menina de comprar a porra aí, entende?”. Quem mandou foi o Luiz Fernando Emediato, que me dá um click! — esse-cara-é-bom. Dudu quer ir para Minas, eu quero conhecer Lucienne Samôr, também quero ir pra Minas, Minas não existe mais? Rosane-Luísa internou-se na ala para indigentes do São Pedro, a psiquiatra descobriu e recambiou-a para a Melanie Klain. Procurem, procurem.
Nei, houve um tempo em que a loucura era coisa tão de poucos, lembro dos loucos de rua de Santiago/Itaqui, e gente assim mais fina só tinha uma mulher, Dona Benvinda (!), mãe dum amigo meu, Fernando, que tinha medo de formiga e quase 20 anos depois econtrei no El Mourisco, desmunheecando muito — Benvinda enlouquecia periodicamente e era trazido pro São Pedro. Agora todo mundo enlouquece a toda hora, já estive louco, mas nunca numa clínica, o que é uma desfaçatez da minha parte, às vezes até entro numa que a minha cuca é demais meia-boca, já que nunca mereceu sequer uma clínica. Rosane, eu não tive coragem de amar Rosane como ela me pediu que eu a amasse (sem pedir, entende?)
Nei, os amigos estão enlouquecendo, alguns, outros indo embora, outros se trancando em casa, outros ainda bebendo muito, não interessa falar do meu medo, mas ele existe e eu não sei se o nosso grito adianta alguma coisa contra tudo isso — adianta? Gritarei/gritaremos sempre, mas as coisas mudarão? Esta é uma karta kaótica. Caparelli diz que todo verbo no futuro é imbecil. Houve um tempo em que pensei que tinha asas, houve um tempo em que pensei que comigo seria diferente. Tenho na memória imagens & imagens de solteirões de bombachas tomando mate nos degraus ao sol, no inverno (sempre agosto), eu não sei porque isso me ocorre agora, já caiu a primeira geada e as bergamotas estão muito doces. É isso aí. Ou não. Amanhã continuo.
Retorno
1. Alguns verbos chamam a atenção, como “bodiar”, gíria para algo baixo astral e que já caiu em desuso (acho eu). “Transar” tem mais de um significado, pois podia, como é o caso aqui, se referir a um encontro recorrente com algum amigo ou pessoa conhecida, um mergulho na amizade, uma conversa que toma tempo etc. E “trovar” é coisa de gaúcho, é conversar muito, mudando assim o sentido original, de declamar versos de improviso numa roda de galpão. 2. Pessoas queridas e amigos meus são citados, como Claudio Levitan, Emilio Chagas, Eduardo San Martin e Sergio Caparelli. Publico como Caio se referiu a eles naquela época distante. Minha intenção aqui é trazer Caio na íntegra e ele era sempre carinhoso, mesmo quando deixava transparecer alguma crítica. 3. Citações: “Apaga o cigarro no peito” é um verso de Gabriel Britto Velho, que o Caio gostava muito de citar; e há o “procurem procurem” drummondiano; ambos são inseridos por Caio nesta sua brilhante karta kaótica, focada principalmente nos escritores.
Porto Xarope: a carta que Caio Fernando não conseguia encerrar
Sigo publicando as cartas que Caio Fernando Abreu enviou de Porto Alegre (aqui identificado como Porto Xarope) para mim nos anos 1970. Digitá-las uma a uma, cuidando para que tudo saia na íntegra como ele me enviou é um exercício não apenas de memória, mas de resgate de emoções soterradas, paisagens perdidas, dias ocultos, conversas que o vento tinha levado. Por isso este processo é lento, intenso e revelador. Vamos à carta.
Porto Xarope, 6. 6. 77
Nei,
eu hoje tô tão triste — não, eu tava, agora já passou um pouco, porque eu já cheguei em casa, fiz um mate e tô ouvindo o Concerto de Bra(n)denburgo de Bach (“poucos sabem que Johann Sebastian Bach…”), um giorno de cane, como costumam ser os dias nesta cidade, especialmente para quem trabalha na Folha da Manhã (tem coisa pior). Tudo começou às 8h30 da matina, tirando uma radiografia absolutamente sádica de um dente — é assim: o cara enfia ferrinhos nos canais abertos de um dente até localizar o nervo. Quando a agulha pica o nervo (e você se crispa de dor) é preciso que o próprio radiografado fique segurando uma chapinha contra o dente até radiografar. Brrrrr. Tudo bem: no mínimo duas encarnações de karma a menos.
Depois o jornal e tanta, mas tanta gente querendo falar comigo. Tem dias que tenho vontade de escrever nas costas da cadeira “hoje não estou para ninguém” ou “seja breve” ou “genius at Work” ou também “keep distance”. Fui agressivo e desagradável com o San Martin e com todo mundo. Tenho usado botas — fisicamente e no sentido figurado também. Por fim a Praça XV, vir em pé no ônibus, como gado, um passo à frente, outro mais — e aos pedaços chegar em casa.
Eu queria ter te escrito antes. Tinha POTES de trabalho. Me descontaram cerca de uma milha e quinhentos da quinzena, recebi só 900 e só de aluguel tinha 950. Fiquei com menos 50 até o dia 15. Queixas, queixas. A portaria da censura prévia aos livros, jornais & revistas estrangeiros. O negócio do INPS, não tem mais direito a atendimento (embora continue descontando) quem ganha mais do que a monumental quantia de três salários mínimos. O quebra-pau em belo Horizonte. E coisas que não sei, porque não li e ninguém me disse. E um cansaço, e uma sensação de estar escorregando (não individual) prum negócio escuro.
As batalhas de todo-dia parecem inglórias. Claro que a gente insiste. Tenho comprado brigas: esta semana devo falar, quarta, no Clube de Cultura e, na sexta, em Pelotas. Quero “dizer coisas”. Não sei se posso, se devo — mas tô evitando me omitir e, na medida do possível, através das matérias que faço ou desses papos que pintam ir — que pretensão — pelo menos alertando as pessoas para o HORROR que taí em volta delas e pra necessidade — urgente, urgente — de modificar as coisas.
Ô Nei, não temos nenhum líder, nenhuma ideologia que preste, nós estamos sendo roubados, estuprados e assassinados lentamente, todos os dias. Eu ando cheio de raiva. Acho que todo mundo. E de impotência. E de vontade de agir de uma maneira mais eficiente, mais real, mais imediata. Porque NINGUÉM a não ser pessoas como nós vai fazer porra nenhuma para modificar essa merda toda. A gente não pode, não deve, não tem o direito de se omitir. Apesar das limitações pessoais, das dores individuais ou da própria pele a defender. Que talvez valha muito pouco neste momento.
Pausa. Tomo mate, ouço Bach, fumo Carlton.
Individualmente, tudo — digamos — bem. Cheguei daí com uma energia incrível. Eu tava todo amortecido aqui, eu só tinha dor e um nojo constante de tudo, de todos, um desprezo, um desgosto. Isso aí me sacudiu, a partir da ansiedade mesmo das pessoas, da crispação das situações, do desespero gritante de todo mundo. E Julio, teve Julio. Foram 12 dias de convivência intensa, 24 horas por dia.
Quando cheguei aqui me faltava um membro, uma metade de cérebro. Doeu muito. Tomei meio vidro de Vegostesil (é ótimo) e dormi 16 horas. Depois fui aterrissando aos poucos, e perdendo energia, e voltando aquele desgosto, aquela náusea, e contração no canto da boca. Mas tô resistindo, che. E tento me querer bem apenas por isso — por insistir e resistir. Nem sempre consigo.
Sábado faz uma semana que me mudei. Desde que tinha proclamado minha independência ou me auto-parido, em novembro, tava morando num apartamento em pleno centro (Jerônimo Coelho) onde a paisagem
onde a paisagem
(onde a paisagem)
onde há pais agem
Passou um tempo. Agora é quase meia noite. Eu jantei, fumei, bebi vinho (pouco), conversei com Gui e Graça Medeiros, depois chegou Sandra — e tantas coisas se passam, na real-de-fora e na da-mente-de-dentro-tão-real-quanto. Ô Nei, ás vezes eu fico tão confuso. Agora tô meio chapado e acho que antes estava tentando dar umas coordenadas objetivas da minha vida, mas agora eu fico me perguntando se têm importância. Suponhamos que sim.
Aí continuo a te contar. Retome a página anterior, na parte (…Coelho) onde a paisagem — bem a paisagem lãs era um paredão de concreto. Agora estou numa casinha, em Petrópolis, com terra e pátio. Tento me adaptar. De qualquer forma, anyway, me adaptaria. Mas teve coisas/tem coisas boas.
Eu não sei. Mas passa pela cabeça que isso não interessa, e me dá vontade de reler tudo o que te escrevi antes para tentar pegar algum sentido. Mas é tão partido. Ô Nei, eu tenho ficado tão confuso. Tem uma divisão aqui — uma querendo fugir a todo vapor a qualquer compra de qualquer barra e uma outra onipotente, querendo ficar no controle de absolutamente todas as emoções, sensacionais, situações.
Tenho planos. Acho um pouco temerário? utópico? fantástico? escapista? ainda ter planos a esta altura do campeonato, mas — que se á de fazer? — tenho. Tem uma coisa contra a cidade, contra a moral local, estadual, contra a burrice, a estreiteza e a mediocridade crescendo. Há uma possibilidade de conseguir um registro profissional no Sindicato. Ainda não foi possível ir lá (dentista todas as manhãs), mas eu gostaria de cair daqui depois de julho. Acho que esta casa para onde vim e todas as barras que possivelmente pintarem nela — boas ou/e más — devem ser transadas. Mas eu quero ir. Ô Nei, eu sinto um sufoco terrível.
Me escapam queixas, chicotinhos autopunitivos.
Foi bom e quente ver você. Depois, na tua casa, eu fiquei achando que a vida de vocês tá bastante dura. Que era uma vida muito nua. A partir das paredes da casa, dos poucos móveis — de tudo o que há (ou que não há) de objetos dentro dela. E que isso me dava uma outra face tua. Como te ver no jornal também me dava. E me ocorre que — porra, que troço mais literário — que as pessoas são um pouco quebra-cabeças que você vai juntando pedaço por pedaço (às vezes misturando dois ou mais jogos diversos e fazendo confusões medonhas, ou tentando freneticamente encaixar peças que absolutamente não cabem nos espaços, ou — tanta coisa). Me confundo nessas.
Enquanto te escrevo, me passa uma idéia ubaldiana na cabeça: até que ponto é inviolável tudo isso que digo aqui? (*) Outro dia — há uma semana — recebi uma carta de Madri que foi colocada no correio dia 12 de dezembro de 1976!
Mas não importa muito. Acho que já te disse que ando meio agressivo — tenho pensado que não existe nada absolutamente inconfessável.
Quando eu voltava pra casa, hoje, ao descer do ônibus, quando ia cruzar na frente de uma garagem — de dentro da garagem saiu uma moto em alta velocidade, com um garoto em cima, passou zunindo na minha cara e espatifou-se contra o poste da calçada oposta. Eu não parei pra olhar.
É meia-noite, a minha cuca não tá rendendo mais nada, tô dispersando e confundindo. Ô, Nei, eu queria te dar um grande abraço — tem um jeito disso não soar forçado? — aquele dia em que você entrou na sala Vladimir Herzog me deu um ufa! interno. Eu acho que vou cair enseguida nessa briga aí, pra dar um jeito de enseguida cair pra outra fora daqui. Brigas, brigas. Eu quero te mandar um poema aqui do fim, tem a obra completa de Mario de Andrade aqui na minha frente. Vemos ver o que ele sugere: (abriu nos poemas de amiga, já está viciado)
VI
Nós íamos calados pela rua
e o calor dos rosais nos salientava tanto
que um desejo de exemplo me inspirava, e você me aceitou por entre os santos.
Erguer do chão um toco de cigarro,
fumá-lo sem saber por que boca passou,
a terra me eriçava a língua e uma saliva seca
poisando nos meus lábios molhados renasceu.
Todos os boitatás queimavam minha boca
mas quando recomecei a olhar, oh minha doce amiga,
os operários passavam-se todos para o meu lado,
todos com flores roubadas na abertura da camisa…
O Sol no poente, de novo auroral e nativo,
fazia em caminho contrário um dia novo,
e as noites ficaram luminosamente diurnas,
e os dias massacrados se esconderam no covão duma noite sem fim
Dá um beijo na Ida, outra nos petizes (petizes é bom, não é?). Dá um abraço no Moacir Amâncio e anota lá a direção, che: Rua Chile, 661, 90000 Petrópolis, Porto Alegre (o CEP deveria vir após Petrópolis, e não antes — a minha objetividade às vezes também marca).
Agora abri de novo o Mario de Andrade e peguei ele “sonetizando” lindo. Che, veja estes, a La Augusto dos Anjos (que tenho lido muito):
“Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!…Que eu quero amar a morte
com o mesmo engano com que amei a vida”.
Tô espichando para terminar. Julio (Santa Hoerst) tem me escrito muito. Tem pintado baixezas & vilezas na história do livro do Pasquim absolutamente vergonhosas. Um pouco por isso, também, a minha cuca está um pouco descacetada. Me dá uma puta decepção e uma certeza de novo que a política-dos-bastidores-literários é, realmente, de vomitar. Blllleeeeaaaarrrrggghhhh! (não é assim vômito de HQ?). A minha cuca tá cheia de idéias pra escrever, mas eu não tenho ousado. Li a entrevista do Ferreira Gullar no Pasquim (leia o poema dele chamado Alegria no Anima nº 2 — achei ele aqui — e ele diz que agora só escreve quando é pressionado por alguma coisa interna muito forte. Comigo tem sido assim, não sei se é uma desculpa para a minha falta de método. Esse poema do Gullar aí me incendiou por uns três dias, é uma barra de lucidez meio alucinante, veja:
“O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
nem mesmo o que iluminaria a lembrança
ou a ilusão
de uma alegria)
Sofre tu, sofre
um cão ferido, um inseto
que o neocid envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça não.
A dor te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.
Esse é A Alegria. (definitivamente não estou conseguindo encerrar esta carta). Sábado foi o aniversário do Dudu SM (Dudu SM é um bom nome prum personagem. Não?). A gente fez um jantar aqui e tentou fazer com que com que — quem sabe? — as coisas ficassem um pouco legais, pra todo mundo. Foi meio crispado, meio o final desse poema. Acho que é assim quase sempre. Ou sempre, não sei. Magra Jane vai sexta embora para o Rio. Eu acho ótimo. A cidade, ô Nei, a cidade. O jornal, ô Nei, o jornal.
Mas o inverno, tem frio chegando e aqui em Petrópolis um céu incrível. Que eu quase nem olho, mas quando olho é bom. Vi um filme absolutamente lindo: A História de Adele H., de Truffaut, um amor alucinado, romantismo louco, uma paixão levada ao limite da loucura. Dá uma grandeza pros sentimentos humanos.
Sei lá.
Um beijo. Não escreve se tu não puder ou não tiver tempo. Tudo bem.
Até
Caio
Retorno
Tempo brabo de censura, Caio se preocupava com a inviolabilidade das cartas em relação à interferência da ditadura e não ao eventual segredo contido nelas. 2. O carinho de Caio por mim e minha família é uma presença recorrente e marcante em todas essas cartas, assim como a relação afetiva que tínhamos, como dois escritores em pleno processo de criação. 3. Pessoas queridas citadas estão aqui como Caio se referiu a elas, sempre do seu jeito literário de ser, considerando cada uma como um personagem. O meu personagem, vê-se nessa carta, era um pouco desafiante e por toda a correspondência interagimos como duas pessoas próximas e ao mesmo praticamente desconhecidas.
Carta de uma data adivinhada
Da solidão à epifania, esta carta que Caio escreveu para mim em data incerta, mas determinada (vejam por que logo no início) percorre as dificuldades que enfrentávamos na época, como desemprego, projetos frustrados, amores que se esvaziam, relacionamentos que acabam, dor de cabeça que não passa. Começa mostrando como se fazia nos anos 1970: ia-se pessoalmente à redação levar o texto para ser publicado. Não tinha essa moleza de e-mail. E não era um lugar qualquer, mas na mais profunda Marginal do Tietê, na redação da “Veja”. Ia-se a pé, ou seja, de ônibus. Assim vivíamos naquele tempo heroico. Caio mostra com todas as letras o que se passava na época. Destaque para a história ótima com Mario Quintana.
Porto, acho que 23. 11. 77
Nei,
tanto silêncio meu que, eu sei, pode ter soado a desamor. Não foi não, só um acúmulo de coisas internas e externas, lançamento de livro, insegurança, medos, bodes e bodes que não vale a pena enumerar. Mas hoje pensei forte em você porque fui na sucursal da Veja levar — depois de muita marcação — uma resenha que o Humberto Werneck tinha pedido sobre “A Vaca e o Hipogrifo”, do Mario Quintana – e que eu abri citando aqueles versos seus, o dinossauro, a borboleta, é incrível como ele dinossaureia e borboleteia nos textos. Depois levei na Folha a minha página de quinta, estou só com duas páginas, agora uma às segundas, outras às quintas, sobre o que eu quiser, depois fui no psiquiatra e saí tão desantenado (demônios novos na roda…) que não suportei sequer a idéia de tomar um ônibus na Praça XV e voltar pra casa.Daí fui ver um filme qualquer, meu deus, uma pornochanchada grossíssima, “Gente Fina é Outra Coisa”, do Calmon, que já fez coisa boa, e saí mais desantenado ainda e na rua tava uma puta agitação com a história de terremoto no interior. Só li as manchetes, meio apavorado, apocalíptico demais, acabei enfrentando a Praça XV, a casa vazia, eu e Tigra, ,cozinhei, lavei pratos e panelas, fiz um chá de cidró-hortelã-funcho colhidos no quintal, que to tomando agora, dez e meia da noite e uma pontada do lado esquerdo da cabeça, que não me larga faz dias.
E eu tava no meio da comida quando me dei conta que tinha começado a chorar e a repetir meio dementemente “tudo-faz-tanto-tempo-tudo-faz-tanto-tempo”, talvez em parte um efeito colateral da matéria enorme sobre o Tropicalismo que li ontem em parte uma sensação presente, cada vez mais, e mais constante, de qualquer coisa como estar-ficando-velho, ou já ter atrás de mim uma história dessas com agá mesmo. E uma solidão muito grande. E uma sede. E uma vontade de ir embora, obsessiva, esgotante. E uma falta de coragem. E um desgosto com a cidade semi-destruída, com as pessoas esvaziadas e semi-destruídas também (e eu nem sequer me excluo disso).
Me olho no espelho e vejo uma cara endurecendo dia a dia, uma falta de espanto nos olhos. Não faço nada. Um dia engendra o outro, sem alegria, desde que voltei. E quando andei por aí parecia tudo tão novo, me veio outra vez uma curiosidade pelo mundo, um carinho pelas pessoas, uma vontade de continuar vivo, de lutar, de seguir. As águas estagnadas de escorpião deste porto parecem fazer dueto com o zero grau do meu escorpião ascendente. Meu deus (há poucos dias fiz uma grande descoberta: deus está na clínica), quanta queixa sem ponto de exclamação. Por isso também tava evitando escrever, porque sabia que a torneira ia abrir e jorrar água barrenta.
Me conta de você, Ida, de Daniel e Ju Jaegger, das batalhas pela nova casa (espero que ainda esteja aí na antiga, senão essa carta vai se perder). Vocês foram tão bonitos comigo quando estive aí, não agradeci porque sou sem jeito pressas coisas, mas tinha um agradecimento implícito que acho que foi percebido. Olha, se eu continuar escrevendo, vou continuar me queixando, então vou te mandar este poema do César Vallejo, que eu gosto muito. Lá vai:
ESPERGESIA
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Todos saben que vivo,
que soy malo; y no saben
del diciembre de ese enero.
Pues yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Hay un vacío
en mi aire metafísico
que nadie ha de palpar:
el claustro de un silencio
que habló a flor de fuego.
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Hermano, escucha, escucha…
Bueno. Y que no me vaya
sin llevar diciembres,
sin dejar eneros.
Pues yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Todos saben que vivo,
que mastico… y no saben
por qué en mi verso chirrían,
oscuro sinsabor de ferétro,
luyidos vientos
desenroscados de la Esfinge
preguntona del Desierto.
Todos saben… Y no saben
que la Luz es tísica,
y la Sombra gorda…
Y no saben que el misterio sintetiza…
que él es la joroba
musical y triste que a distancia denuncia
el paso meridiano de las lindes a las Lindes.
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo,
grave.
Uma força grande pro vestibular da Ida. Agradeça por mim ao Moacir Amâncio a publicação da entrevista, e diga que to esperando a Estação dos Confundidos. Falar nisso, pedi ao Mangarielo que te levasse um exemplar das Pedras. Levou? Se não levou, dede ele pra mim.
A pontada na cabeça continua. Não consigo parar de escrever. Ocê me agüenta mais algumas laudas? Podia ser assim:
Yo naci um dia
que Dios estuve loco,
despelotado
Produzindo (é a palavra) as páginas pra Folha, veio um lado bom — não-ir à redação — e um lado mau, me esgotar pra parir textos imbecis praquele jornal imbecil. Veja só: fui escrever mau e escrevi meu : lapso freudiano, típico. Sandra e Gui chegam, semi-demolidos, foram assistir “Face to Face”…
Às vezes tenho vontade de dormir até 1º de janeiro de 1978. Andei tão mas tão paranóico que parei de fumar e de beber. Fiquei inteiramente careta. A última vez que fumei, me deu um nervoso tal que mudei de lugar todos os moveis do quarto e fiz uma puta faxina: eram cinco da matina quando terminei. O que eu diria dessa coisa que não dá mais pé? Nada: em boca fechada não entra mosca. El Zwetsch mandou o Vício da Palavra, que distribuí por aqui, preciso escrever a ele, pero no hay saco, fiquei coma puta rejeição do livro- guardei um exemplar pra mim sem conseguir ler nada.
Aristides Klafke passou por aqui, ficou uns dias aqui em casa, foi bom, uma cuca nova! acho que sou meio vampiro de cucas, depois se mandou pra Montevidéu pra ver dois amigos. Sábado chegou um cartão dele: os dois amigos estão presos há três meses, sem perspectiva de serem soltos…Soube pelo Julio que ocê teve no Rio, pro lançamento do Torpalium. Ele vezenquando escreve cartas dementíssimas, ótimas, e eu fico pensando que podia ter sido diferente, se ele não fosse assim como é e se eu não fosse assim como sou, estás a ver que já parto de uma premissa impossível. Mas.
Pifa voltou de Vitória pra pegar no meu pé. Vai ficar aqui até o fim deste mês. Transei um pouco, depois destransei, cansei, bodiei. Detesto a sensação de “ter compromisso” com alguém. Mas a solidão rói, dói, mói, como diz a Lara de lemos. Estou tentando me organizar para ir embora: decidi (teoricamente, até agora) dar uma injeção de adrenalina na minha Caderneta de Poupança (por enquanto tenho 50 pilas!), mas sofro ataques cotidianos fortíssimos de bundamolismo. Magliani voltou triste. Bem, Magliani é triste, mas voltou mais ainda, dizendo que a barra do desemprego tá pesada . Me cansei, desisti, se há sorte? eu não sei, nunca vi. Vontade de ver um filme de vampiro. Você tem a “Vaca e o Hipogrifo?” Se não tem diz, que te mando. O Mario Quintana lá pelas tantas diz que adora filme de vampiro. Quando eu tava autografando as “Pedras” ele entrou na fila para apanhar um autógrafo. Eu abanei o rabo de puro contentamento, e disse: “O título do livro é de um poema seu”. Ele agitou as asas de borboleta, fixou em mim os olhos de dinossauro e soltou: “Eu sei. Foi só por isso que comprei”. Achei marioquintanamente ótimo.
Você tem alguma receita pra gente mudar de vida? E pra tomar decisões? E para mudar de personalidade? E para flagrar-se? E para pagar o karma em suaves prestações? E pra desorientação aguda, você tem? Se tiver, me passa que eu preciso. Se não tiver, me escreve e me dá um corte. Vontade, também, de tomar uma Brahma contigo e ouvir Carmélia Alves. Anyway, um beijo. Segura as pontas daí que eu seguro as daqui. E não se preocupe: Deus estaria conosco até o pescoço, se não estivesse na divisão Melanie Klein.
Te gosto.
Sempre. Caio
Retorno
1. Mario Quintana: gosto de contar a história desse poema que fiz para ele e que contém forte dose de Caio, que trabalhava conosco a edição do meu livro de estreia “Outubro”. O poema é este: Olhem o antípoda/ olhem o animal da palavra/ É um dinossauro na cidade de vidro/ borboleta branca na floresta queimada/ Respeitem seu andar/ e desconfiem com temor/ de sua conversa fiada/ Ele é o flagelo do Senhor/ e vocês não sabem”. De que se trata? perguntou Caio. É para o Mario Quintana, falei. Mas então por que você não põe o nome dele no título, para ficar claro?. 2. Pedras é “Pedras de Calcutá”; O ovo, “O Ovo Apunhalado” 3. Na borda da lauda, um recado a caneta: “Teu aniversário passou: eu não esqueci: Parabems” (com o m imitando o símbolo de escorpião).
EM COLUNISTAS
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