Walter Molino (Itália, 1915-1997)
Capa da revista Domenica del Corriere, 8/03/1960
O conselho universal aos que querem se tornar escritores é conhecido: leia. Leia sempre. Leia bons escritores. Leia maus escritores. Perceba a diferença entre eles. Imite. Tente escrever no estilo de algum escritor de que você gosta; tente o estilo de quem você não gosta. Aprenda as diferenças. É claro que o conteúdo é importante. Esse não se aprende. Mas a técnica pode ser aprendida. É um caminho solitário e tortuoso. Solitário principalmente.
Meu avô se dedicou à escrita além da advocacia. Contribuiu por algum tempo com colunas semanais para jornais brasileiros, e vendo que eu, criança, havia mostrado uma certa habilidade para a palavra escrita, recomendou que eu copiasse um, dois, ou três parágrafos, um conto ou uma crônica de que eu gostasse; que eu simplesmente copiasse o texto, para aprender melhor como o escritor chegou ao resultado que havia me encantado.
Os primeiros passos, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 92 x 72 cm
Metropolitan Museum, Nova York
Por isso mesmo, através dos anos, acabei com uma quantidade grande de trechos de livros copiados numa série de cadernos simples com anotações bibliográficas em geral incompletas. Esse hábito me persegue até hoje. Este blog se assemelha um tanto a esses meus cadernos. Mas ainda me surpreendo quando escolho um trecho, que me encantou, porque descubro o uso de uma palavra que passou despercebida na leitura inicial ou uma colocação de vírgulas, dois pontos, ou divisão de parágrafos que eu não teria notado se não tivesse tido o cuidado de copiar o texto. Esse hábito me tornou uma leitora cuidadosa.
Os primeiros passos, 1858
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 32 x 43 cm
Lauren Rogers Museum of Art, Laurel, Mississippi
O mesmo conselho foi dado aos pintores. Tradicionalmente, desde a idade média, quando eram treinados nas Guildas de São Lucas, pintores que demonstravam habilidades, copiavam seus mestres. Começando aos onze ou doze anos, dedicavam-se primeiro à fabricação de tintas, aprendendo a ralar as pedras coloridas usadas pelos mestres. Esse longo aprendizado – de muitos anos — ensinava todos os truques do ofício até o jovem ter o direito de pintar os ramos de flores em uma tela do pintor responsável pela sua educação, ou a paisagem de fundo. Era uma escola rígida, o ofício era levado a sério. E só era permitido que alguém se chamasse pintor depois de passar por tal sistema. Dentro desse esquema, copiar o mestre era comum e um mérito.
Copiando Murillo no Louvre, 1912
Louis Beroud (França, 1852-1930)
óleo sobre tela, 130 x 161 cm
Coleção Particular
A cópia de obras de arte sempre foi uma maneira dos pintores entenderem como um mestre do passado, de outro século, resolvera um problema, como combinara uma cor, ou como posicionara os elementos na tela.
Mulher com ancinho, 1889
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela
Coleção Particular
Conhecidos exemplos desses estudos podem ser encontrados na obra dos maiores pintores da arte ocidental de Delacroix, que copiou Rubens, a Manet que estudou a obra de Velazquez ou Picasso copiando Manet. O círculo é infinito e demonstra como o sistema é uma das melhores maneiras de se aprender o ofício da pintura.
Camponesa com ancinho, 1857
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 39 x 34 cm
Metropolitan Museum, Nova York
Venho a esse texto porque tenho recebido muitos emails de pessoas que sabem do meu envolvimento com as artes plásticas, emails que anunciam a fraude, em geral de um pintor famoso, nesse caso van Gogh mostrado acima, em que um texto maldoso e ignorante do estudo da técnica, sugere a falta de criatividade, a falta de caráter mesmo, de um artista. Com títulos sensacionalistas tal como —Fraude ou falsificação? ; Artista … plagiador — esses emails têm enchido a minha caixa postal.
A sesta, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 73 x 91 cm
Musée d’Orsay, Paris
No caso de van Gogh, a cópia era absolutamente necessária já que se tratava de um artista com muito pouco estudo, não mais do que um ano na Academia Real de Belas Artes em Bruxelas, por volta de 1880 e algum tempo, quase dois anos com seu primo o pintor Anton Mauve. Foi de fato necessário para seu próprio aprendizado a cópia de outros artistas. Ela não se limitou às obras de Millet.
A sesta, 1866
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 29 x 41 cm
Museum of Fine Arts, Boston
Essa obra de Millet, A Sesta, inspirou pelo menos mais um pintor. John Singer Sargent, americano, impressionista que passou toda sua vida na Europa, dedicando-se às paisagens americanas só na última década de vida.
A sesta, c. 1875
[d’après Millet]
John Singer Sargent (EUA,
grafite sobre papel, 14 x 21 cm
Metropolitan Museum, Nova York
Vincent van Gogh admirava Millet. Seus temas de peões no campo, gente de vida simples, pareciam inundados da espiritualidade dos homens comuns que teve grande ressonância no pintor holandês, que havia desejado estudar teologia.
A vigília, 1867
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 29 x 41 cm
Museum of Fine Arts, Boston
Vigília noturna, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 74 x 93 cm
The van Gogh Museum, Amsterdam
Mas van Gogh nunca chegou a se sentir satisfeito com as telas que produziu tendo como modelo as obras de Millet. Sabe-se por exemplo que as oito telas inspiradas no Semeador de Millet, nunca lhe agradaram, ainda que para nós hoje elas pareçam muito boas. Ele desistiu do tema, frustrado, porque achava que em nenhuma das versões conseguira chegar próximo da mestria de seu predecessor.
O semeador, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 80 x 66 cm
Coleção Particular
O semeador, 1850
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
óleo sobre tela, 101 x 82 cm
Museum of Fine Arts, Boston
Mas van Gogh não limitou seu aprendizado a Millet. Copiou, entre outros, o trabalho de Gustave Doré, como vemos abaixo:
O exercício na prisão, 1890
[d’après Gustave Doré]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 80 x 64 cm
Museu Pushkin, Moscou
Pátio de exercícios da prisão Newgate, 1872
Gustave Doré (França, 1832-1883)
Gravura, ilustração para ‘London: a Pilgrimage‘ [Londres: uma peregrinação] de Blanchard Jerrold e Gustave Doré, 1872.
Museu de Londres
A cópia de telas e gravuras dos mestres do passado é uma técnica difundida há muitos séculos, que teve grande ímpeto no coração da Idade Média, quando monges se dedicavam à ilustração de textos religiosos e filosóficos, e às cópias desses textos com as quais difundiam o conhecimento para outros ramos das ordens religiosas a que pertenciam. É uma técnica usada até hoje. Pobre é a escola ou o professor de pintura que não incentiva esse método a seus alunos, mesmo que no futuro eles venham a ser artistas dedicados ao abstracionismo, ao conceitualismo ou a qualquer outro estilo que pareça não ter nada a ver com o passado. O conhecimento do lugar em que a sua arte se enquadra na história das artes, é uma sólida base para a produção de qualquer artista, qualquer pintor, mesmo nos dias hoje.
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