quinta-feira, 8 de maio de 2014

Crônica de Luís Fernando Veríssimo, "A bola".




A bola


O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola. O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “legal” Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, a procura de alguma coisa.


- Como é que liga?
-Perguntou.


- Como, como é que liga? Não se liga.


O garoto procurou dentro do papel de embrulho.


- Não tem manual de instrução?


O pai começou a desanimar e pensar que os tempos são outros. 
Que os tempos são decididamente outros.


- Não precisa manual de instrução.


- O que é que ela faz?


- Ela não faz nada, você é que faz coisas com ela.


- O quê?


- Controla, chuta...


- Ah, então é uma bola.


Uma bola, bola. Uma bola mesmo. Você pensou que fosse o quê?


- Nada, não.


O garoto agradeceu, disse “legal” de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da TV, com a bola do seu lado, manejando os controles do vídeo game. Algo chamado Monster Ball, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de Blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente. O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio. Estava ganhando da máquina.


O pai pegou a bola nova e ensinou algumas embaixadinhas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.


- Filho, olha.


O garoto disse “legal”, mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e o cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro do couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. 
Mas em inglês pra garotada se interessar.


Veríssimo, Luis Fernando. A bola. Comédias da vida privada; edição especial para as escolas. Porto Alegre: L&PM, 1996. P. 96-7

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