Walter Crane foi um artista inglês que produziu diversos livros para todas as idades. Crane acreditava que as crianças tinham a capacidade de aprender por meio de imagens antes mesmo de que pudessem ler e escrever. Foi o responsável por uma revolução na qualidade artística dos livros infantis, e produziu, no processo, centenas de ilustrações magníficas, que influenciam ilustradores e desenhistas de histórias em quadrinhos até hoje.
The Fairy Ship (1870)
Quando era pequeno, antes dos seis, meus pais me deram um livro quadrado. Ao que me é permitido lembrar, foi um livro de Sinbad, o marujo, no qual as aventuras tiradas do Mil e Uma Noites eram contadas através de desenhos coloridos e letras grandes. Provavelmente li outros livros infantis, muitos outros, antes de passar para a leitura ávida de histórias em quadrinhos que antecedeu (sem que fosse substituída pelo) meu atual e inegável vício pela literatura. Mas penso que esse livro foi o começo. Sou grato até hoje pela existência de seu autor.
Contudo, se, como homenagem, precisássemos eleger uma lista dos maiores nomes da história dos livros infantis, quem seria impossível deixar de fora?
Entre muitos outros: falemos do nome de Walter Crane.
Walter Crane foi um artista nascido na Liverpool de 1845. Seu pai era pintor de retratos. Graças ao talento de seu filho, conseguiu que esse passasse três anos sob a tutela do artista, escritor e ativista político William James Linton, com quem aprendeu a xilogravura. Nesse ofício, teve a oportunidade de estudar trabalhos variados, como as obras dos Pré-Rafaelitas, do multitalentoso John Ruskin e de John Tenniel, ilustrador dos Alice de Carroll. Walter Crane produziu diversos livros para crianças e adultos, tendo ilustrado a famosa coletânea Household Stories dos irmãos Grimm (traduzida do alemão por sua irmã, Lucy Crane).
The Fairy Ship (1870)
A Gaping-Wide-Mouth-Waddling Frog (1866)
A Gaping-Wide-Mouth-Waddling Frog (1866)
King Luckie Boy's Party (1870)
Household Stories (1882)
Influenciado por outro artista que entraria para a história, o designer William Morris, Walter Crane aproximou-se do movimento artístico Arts & Crafts, e envolveu-se também com o socialismo. A essa causa emprestou sua arte, desenhando logotipos a editoras anarquistas como a Freedom Press, escrevendo poemas em favor da causa e defendendo-a publicamente. Argumentou certa vez com carta ao Boston Herald: “O anarquismo é simplesmente um apelo por uma vida de associação voluntária, de desenvolvimento individual livre – a liberdade limitada apenas pelo respeito pela liberdade do outro.”
Mas esse inglês de posição política vertiginosa também se debruçava sobre outro tipo de ideia revolucionária. Acreditava que as crianças tinham a capacidade de aprender por meio de imagens antes mesmo de que pudessem ler e escrever.
“Crane acreditava que boa arte e design podem estimular o interesse em livros e ajudar crianças a aprender a ler desde muito cedo. Entendia que cada aspecto do livro – incluindo capas, guardas, títulos, ilustração, tipografia e layout da página – pode ser usado para encorajar a apreciação da criança pela leitura.”
Walter Crane: A revolution in nursery picture books
Foi o responsável por uma revolução na qualidade artística dos toy books ingleses. Buscava sempre o que alimentasse a imaginação. Em um de seus primeiros livros, posicionou as caixas de texto das páginas como quadros brancos sobrepostos por cenas fantásticas ou divertidas, o que faria com que as crianças entendessem que um universo mágico as chamava para além dos quadros das salas de aula.
Grammar in Rhyme (1870)
Na capa de outra de suas obras, três camundongos correm discretamente pela parte inferior dela, indo se esconder pela orelha da capa, dentro do livro. O propósito da ilustração é fazer com que a criança deseje virar a página. Ensina as convenções da atividade da leitura como o exercício da curiosidade. Os dedos devem correr também pela dobra das folhas, querendo acompanhá-los e descobrir onde vão parar. Os ratos terminam por serem personagens cômicos do livro, reaparecendo em algumas das páginas posteriores, comic relief recorrente.
The Baby’s Opera (1877)
Reparemos nos ratos, correndo na parte inferior da capa do livro...
The Baby’s Opera (1877)
…e como eles reaparecem, em diversas ocasiões.
The Baby’s Opera (1877)
Durante seu treinamento, Walter Crane teve contato com as xilogravuras japonesas do período Edo e do Meiji. Conhecidas como Ukyio-e, essa técnica teve grande influência em Crane e no método como produzia sua arte. Ukyio-e significa “retratos do mundo flutuante” — uma expressão com tonalidades budistas, que foi assim batizada porque tinha por objetivo capturar um mundo impermanente, de beleza e ideais efêmeros, retratando gueixas e cortesãos longe de suas tarefas do dia-a-dia. Nas palavras de Richard Lane, Ukyio-e é “viver apenas o momento presente, entregar-se inteiramente à contemplação da lua, da neve, da flor de cerejeira e da folha de plátano (...) não se deixar abater pela pobreza e não deixá-la transparecer em seu rosto.”
Reparemos nos ratos, correndo na parte inferior da capa do livro...
The Baby’s Opera (1877)
…e como eles reaparecem, em diversas ocasiões.
The Baby’s Opera (1877)
Durante seu treinamento, Walter Crane teve contato com as xilogravuras japonesas do período Edo e do Meiji. Conhecidas como Ukyio-e, essa técnica teve grande influência em Crane e no método como produzia sua arte. Ukyio-e significa “retratos do mundo flutuante” — uma expressão com tonalidades budistas, que foi assim batizada porque tinha por objetivo capturar um mundo impermanente, de beleza e ideais efêmeros, retratando gueixas e cortesãos longe de suas tarefas do dia-a-dia. Nas palavras de Richard Lane, Ukyio-e é “viver apenas o momento presente, entregar-se inteiramente à contemplação da lua, da neve, da flor de cerejeira e da folha de plátano (...) não se deixar abater pela pobreza e não deixá-la transparecer em seu rosto.”
A hora da cobra (1856), por Kunisada
O Ukyio-e compartilha também com o movimento Arts & Craft de Crane a face democrática da arte: suas técnicas permitiam que as obras fossem reproduzidas em massa, o que, diminuindo seu custo, fazia delas comercializáveis.
Em um segundo olhar, o trabalho de Walter Crane e de outros ilustradores vitorianos parece também auxiliar o crescimento de outro galho da literatura. Perguntemos: de que forma pavimentaram o caminho que tornou popular as histórias em quadrinhos no século XX?
Apesar das HQs serem (como arte sequencial) tão antigas quanto a Coluna de Trajano ou os hieróglifos egípcios, o estabelecimento do formato como entretenimento popular fora das caricaturas (políticas ou não) teve de esperar pelos séculos XIX e XX. E em alguns ilustradores como Walter Crane, encontra-se um trabalho que propõe (sem que esse fosse o objetivo) uma estética ao meio. Uma das histórias que ilustrou, “O gato de botas”, possui vários quadros que conduzem a criança a um fluxo, acompanhando ações do personagem, permitindo até que os leitores de capacidade limitada de leitura possam entender a história. Assemelha-se muito a uma graphic novel:
O Ukyio-e compartilha também com o movimento Arts & Craft de Crane a face democrática da arte: suas técnicas permitiam que as obras fossem reproduzidas em massa, o que, diminuindo seu custo, fazia delas comercializáveis.
Em um segundo olhar, o trabalho de Walter Crane e de outros ilustradores vitorianos parece também auxiliar o crescimento de outro galho da literatura. Perguntemos: de que forma pavimentaram o caminho que tornou popular as histórias em quadrinhos no século XX?
Apesar das HQs serem (como arte sequencial) tão antigas quanto a Coluna de Trajano ou os hieróglifos egípcios, o estabelecimento do formato como entretenimento popular fora das caricaturas (políticas ou não) teve de esperar pelos séculos XIX e XX. E em alguns ilustradores como Walter Crane, encontra-se um trabalho que propõe (sem que esse fosse o objetivo) uma estética ao meio. Uma das histórias que ilustrou, “O gato de botas”, possui vários quadros que conduzem a criança a um fluxo, acompanhando ações do personagem, permitindo até que os leitores de capacidade limitada de leitura possam entender a história. Assemelha-se muito a uma graphic novel:
The Marquis of Carabas’ Picture Book (1880)
E não é difícil, quando se observa a arte da tira Little Nemo in Slumberland, dos primórdios dos quadrinhos modernos, pensar um paralelo com a arte de Crane. Observemos a escolha das cores e o tratamento de ilustração que cada quadro de Little Nemo recebe.
E não é difícil, quando se observa a arte da tira Little Nemo in Slumberland, dos primórdios dos quadrinhos modernos, pensar um paralelo com a arte de Crane. Observemos a escolha das cores e o tratamento de ilustração que cada quadro de Little Nemo recebe.
Little Nemo in Slumberland (1906)
E de forma similar, a clássica série Prince Valiant, que, por sua vez, dispensa os balões de fala, também herda algumas das características das iluminuras de livros de fábulas medievais; ou seja, é irmã das ilustrações vitorianas. Atente para a preocupação da localização do texto na figura.
Prince Valiant (1943-1944)
É interessante notar que o desejo de Walter Crane de integrar nas suas ilustrações trechos dos livros (tentando criar para elas um meio integral) acabou proporcionando que sua arte empregasse técnicas de framing que se tornariam ferramentas básicas nas mãos de mestres dos quadrinhos como Will Eisner. No capítulo “O requadro como suporte estrutural” de seu livro Quadrinhos e arte sequencial, Eisner menciona as diversas maneiras como o enquadramento pode participar da ilustração em si. Observemos como, na arte de Crane, com frequência o trecho do livro se esgueira para que se torne elemento fundamental do requadro, 73 anos antes de Eisner:
Quando morreu, em 1915, seu legado foi inegável. Ao final de sua vida, Crane preocupou-se de questões políticas e educacionais. Foi o primeiro presidente da Arts & Crafts Exhibition de 1888, que ajudou a fundar. Envolveu-se com a direção de design da Manchester School of Art e diretor do Royal College of Art. Afiliou-se à Liga Socialista e produziu ainda muitos panfletos e capas de revista em favor de sua causa. Escreveu também diversos livros sobre teoria do design, dentre eles o Of the Decorative Illustration of Books (1896). Deixou novos padrões de qualidade para os livros infantis que são seguidos até hoje, no conteúdo e na forma. É possível dizer que se mantêm vivo seu espírito revolucionário, nos herdeiros da sua tradição: ilustradores que ainda procuram a melhor forma de trazer, para as crianças, os livros.
E de forma similar, a clássica série Prince Valiant, que, por sua vez, dispensa os balões de fala, também herda algumas das características das iluminuras de livros de fábulas medievais; ou seja, é irmã das ilustrações vitorianas. Atente para a preocupação da localização do texto na figura.
Prince Valiant (1943-1944)
É interessante notar que o desejo de Walter Crane de integrar nas suas ilustrações trechos dos livros (tentando criar para elas um meio integral) acabou proporcionando que sua arte empregasse técnicas de framing que se tornariam ferramentas básicas nas mãos de mestres dos quadrinhos como Will Eisner. No capítulo “O requadro como suporte estrutural” de seu livro Quadrinhos e arte sequencial, Eisner menciona as diversas maneiras como o enquadramento pode participar da ilustração em si. Observemos como, na arte de Crane, com frequência o trecho do livro se esgueira para que se torne elemento fundamental do requadro, 73 anos antes de Eisner:
A Gaping-Wide-Mouth-Waddling Frog (1866)
Reparemos como o pôster que contém o texto da página reforça a estrutura do quadro...
A Gaping-Wide-Mouth-Waddling Frog (1866)
...enquanto em outra imagem, não só participa do enquadramento como participa da ação dos personagens.Quando morreu, em 1915, seu legado foi inegável. Ao final de sua vida, Crane preocupou-se de questões políticas e educacionais. Foi o primeiro presidente da Arts & Crafts Exhibition de 1888, que ajudou a fundar. Envolveu-se com a direção de design da Manchester School of Art e diretor do Royal College of Art. Afiliou-se à Liga Socialista e produziu ainda muitos panfletos e capas de revista em favor de sua causa. Escreveu também diversos livros sobre teoria do design, dentre eles o Of the Decorative Illustration of Books (1896). Deixou novos padrões de qualidade para os livros infantis que são seguidos até hoje, no conteúdo e na forma. É possível dizer que se mantêm vivo seu espírito revolucionário, nos herdeiros da sua tradição: ilustradores que ainda procuram a melhor forma de trazer, para as crianças, os livros.
Fonte: Obvious
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