O que se segue é uma entrevista com o autor. Pode ver Videogame, a história completa, na Piauí. Veja também o site de Rafael Coutinho.
©Rafael Roncato
arxvis: acho videogame um trabalho finíssimo, com várias camadas de entendimento: o texto (diálogo) é muito poético, o desenho - suas cores e a ausência delas! - perfeito, é uma história totalmente reconhecível e ao mesmo tempo surpreendente, mesmo para alguém da minha geração (cheguei a jogar pong!), e que me deixou pra trás com um tom agridoce na cabeça: a experiência foi linda mas o sentimento que ficou foi melancólico, e essa dualidade me acordou e enriqueceu!
Rafael: Queria fazer uma história com o tema do game, ou uma série delas. Esse negócio de contar histórias passa por duzentos prismas pra mim, tem a ver com grana, umas propostas interessantes (nesse caso o convite da Piauí), com desejos passados, obsessões, vontades gráficas, um fluxo de raciocínio de trabalhos anteriores, algo que vi de alguém que acende uma fagulha criativa, então sempre que tento explicar, fica meio longe do que aconteceu de fato. E tinha essa vontade de usar uma estrutura narrativa pré-determinada, um ambiente ou meio pra contar outra sub-história antagônica ao meio em si, ou que trouxesse essa estranheza das relações sociais. Joguei um jogo de rede uma vez na casa do amigo e quadrinista Caeto, um jogo de zumbis, e ficamos conversando com um moleque de uns 10 anos nos EUA enquanto matávamos aquele contingente assustador de monstros. E fiquei com isso na cabeça: quem era o garoto, quem éramos nós pra ele, e a doideira disso existir, essa plataforma maluca de interação entre pessoas. É muito comum hoje em dia, e o fato de ser no meio de uma carnificina doentia envolvendo um moleque de dez do outro lado do mundo me impressionou.
©rafael coutinho, Videogame
Veja a história completa, originalmente publicada pela revista piauí.
a: Qual foi sua formação - artística, e outras?
R: Fiz artes plásticas na UNESP, alguns cursos fora de pintura, escultura. Trabalhei muito tempo com animação também, aprendi muito com animadores mais experientes. Estudei francês e inglês, roteiro em cursos e com um grupo de amigos por dois anos. Aprendi muito na Base-V, coletivo de design e arte que montei com amigos da faculdade, três caras impressionantes. Mas foi mais trabalhando mesmo, fazendo projetos longos em parceria com gente do cinema, de galeria, artistas de rua, escritores. Dentro da minha casa sempre existiu arte, da parte da minha mãe também. Me peguei pensando nisso esses dias, no perfil dos meus pais e o quanto fazer bem foi, de uma forma não imposta ou claramente dita, algo que ambos tinham (meu pai e mãe). Minha mãe é obsessiva, estuda compulsivamente por prazer, é médica. Ama medicina e política, sempre leu muito, é um furacão no mundo, uma força da natureza (pro mal e pro bem, a mulher é intensa). Meu pai era do tom mais natural, também muito culto, mas passava essa onda mais do saber curioso. Cada um do seu jeito, ambos celebravam em casa essa coisa de "interessar-se pelas coisas com afinco". Tenho um filhote agora, então tenho pensado nisso, se herdei esse "prazer pelo conhecimento". Tomara. Meus pais são brilhantes no que fazem, então acho que tinha essa pressãozinha em casa, não dita. Meu irmão tinha isso também, sentia essa necessidade de fazer muito bem feito o que quer que fosse, estudar, essa obsessividade. Comecei a trabalhar cedo, com 16, por culpa de classe mesmo, queria ser independente e ter meu dinheiro. Sempre tive amigos duros de grana ou pobres mesmo, filhos de porteiro e faxineiras, minha vó morava na entrada do morro do Moscoso, em Vitória. Então também teve isso, sempre convivi com gente de todas as classes, e com pais de esquerda, militantes, engajados. Sei que alguma coisa saiu daí também, o apreço e valor do trabalho, de dar valor pro que eu tinha. E claro, tinha muita revista de quadrinhos em casa.
©rafael coutinho
a: Você tem algum tema que te ocupa?
R: Não sei se tenho UM tema, mas consigo ver alguns que se repetem, como a solidão, a masculinidade, a violência física, a carência física, o estar sozinho e querer algo obsessivamente. Durante um período a água apareceu muito, não sei bem porquê. Relação homem-mulher, questões de desacordo, alcolismo. Hahaha, colocado assim, parece muito deprê, mas acho que procuro pelas questões morais também, certo e errado, se permitir, a busca por algum tipo de inocência, redenção, leveza, a alegria que é resposta a uma tristeza anterior. Mas não acho que dure muito tempo, tento muito buscar pelo que não sei, encontrar os personagens que sejam algo familiar e oposto a mim.
©rafael coutinho
a: Quais sao seus trabalhos já publicados?
R: Fiz a revista, "DRINK", da coleção MIL. Fiz "Cachalote", um livro com o Daniel Galera, e participei de algumas coletâneas, como a "Contos dos Irmãos Grimm", da Desiderata, e "Bang Bang", da Devir. Participei recentemente da SAMBA 3, coletânea de amigos de Brasília, e acabei de entregar minha parte em um projeto coletivo pra Lyon - França, chamado WEB TRIP. Publiquei histórias curtas na Folha de São Paulo, Piauí, e outras revistas, além da época de estudante, quando publicava bastante numa revista indie paulista chamada "Sociedade Radioativa".
©rafael coutinho
a: Entendo que vc tem uma galeria de arte te representado, a choque cultural, em São Paulo. Conte-nos um pouco sobre essa experiência - o mundo das artes plásticas, seus quadros - inspiração, técnica, exposições, essas coisas que ocupam um artista.
R: Saí da Choque Cultural no começo do ano. Foram cinco anos de muito aprendizado e parceria, e sou muito grato por tudo que fizeram por mim e pelo meu trabalho lá, fiz amigos pessoais ali dentro e desejo toda sorte do mundo pra eles. Desde então confesso que não tive tempo pra procurar por uma nova galeria. É um mundo com regras diferentes do mercado editorial, esse da dita ALTA ARTE. São colecionadores, curadores e galerias que entram no lugar das editoras, distribuidoras, revendedores, lojas. Tenho uma forte ligação com esse mundo, com o universo criativo e a poesia em torno das telas, da pintura, e tenho muito dificuldade de fazer as duas coisas conversarem intimamente.
Do ponto de vista de linguagem, não tenho mais dúvidas que sejam universos com um potencial de expressão muito distintos, e consigo sentir o limite entre os meios quando estou envolvido em cada um. Acho que é por isso que busco pelos dois com propósitos específicos, pra que as limitações do meio não me limitem também. Sou ainda um aprendiz em ambos, acho, tenho muito pra estudar e assimiliar. A coisa toda vem com seu aprendizado mesmo, cada momento que volto pra pintura entendo um pouco mais, chego um pouco mais longe. Depois de projetos tão cumpridos de quadrinhos, voltei pra pintura com um desejo narrativo muito latente, por exemplo, e esse novo projeto fogo fácil é fruto disso. Passei a encarar a pintura como uma história a ser contada, e percebi que agora olho pra ela completa, e não mais pra cada pintura individualmente. Do lado dos quadrinhos, passei a encarar o desenho pelo prisma das massas de cor também, o Beijo Adolescente foi bem junto com a pintura por exemplo. Enfim, é assim que ando, não sei fazer de outra forma e tenho pouco interesse em escolher e definir grau de importância no que faço.
©rafael coutinho
a: Conte-nos sobre seu projeto 'o beijo adolescente', como foi usar o catarse para subsidiar esse trabalho?
R: Usar o Catarse para 'O Beijo Adolescente' foi mais uma saída, a mais sensata até agora na minha vida de artista. Comercializar e vender um serviço é algo complexo que tratamos com uma naturalidade cruel, essa que envolve cobrar e fazer. Não acho que artista seja mais um profissional como outro qualquer não, é uma profissão meio convulsiva, principalmente no Brasil. Se você é autônomo, freela e seu conteúdo é esse mais artístico, menos voltado pra massa, é algo que exige uma disciplina e trabalho desumano. Tenho que manter uma vigília diária em cima de tudo que faço, senão cai. A estrutura em torno de um artista adulto é muito complexa, e é preciso construir um sistema de regras e controle muito precisos pra que a coisa ande. Existem milhares de formas disso acontecer, mas é sempre muito. O Catarse veio desse desejo de cortar com as amarras que vinham decidindo pra mim o que eu faria com o meu trabalho e a forma como ele funcionava. Percebi alguns problemas na conclusão do projeto, no funcionamento do sistema de financiamento coletivo, e aprendi que é preciso ter um controle firme em todas as etapas, pra que no fim todos recebam o que compraram e não haja erros. Mas quero fazer outros, é algo que realmente revolucionou a forma como arte é produzida no mundo.
a: Achei o espetáculo 'as jóias', seu e do Laerte, muito bom - eclético - erudito e simples, na mosca! Pode nos contar como esse trabalho/processo se deu?
R: Fomos convidados pra participar do projeto "Autores em Cena", curado pelo amigo Marcelino Freire em parceria com o Itaú Cultural. Em tese, a coisa era pra acontecer de forma mais simples, eu "dirigindo" a peça e meu pai lendo algo do trabalho dele, meio como uma adaptação da obra do autor pro teatro. Decidimos juntos fazer algo novo, do zero, fez sentido pro momento em que estamos em nossas vidas, buscando frentes novas, batendo um tanto de cabeça com nossos afazeres e desejos profissionais diários (e de uma forma geral, buscando por soluções em parceria, eu e meu pai, o que tem sido muito bom também). Admiro muito meu pai e já brincamos de fazer coisas juntos no passado, nos damos bem falando essa língua criativa, acho. Bom, daí que começamos a ensaiar, dirigidos pela Fernanda D'Umbra, grande atriz, roteirista e diretora. Aí entrou mais gente, o Morris no som, minha mulher Marina Pontieri e a Flora Rebolo no figurino, enfim, um monte de outros muito talentosos pacas. Meu pai escreveu um texto, visto que o convite era dirigido pra ele e também pela naturalidade da coisa mesmo, e saimos com esse texto de humor divertido e ultra-crítico sobre esse momento reaça que vivemos em São Paulo, e como protagonista surgiu essa cantora de ópera, inspirada na personagem do Hergé, a Bianca Castafiore, que era claramente um reflexo das questões que meu pai vive atualmente, de gênero e militância, arte, vida. Meu papel era o do anjo, uma figura que envolvia a cantora numa mentira manipulatória rumo à sua execução, e foi muito divertido ir trocando de personagens, mas mantendo a safadeza do fato de ser o mesmo anjo, bem óbvio e assumido. Não somos atores, mas ambos sentiram a veia pulsar ali, é forte demais subir no palco e apresentar algo. Queremos fazer outras vezes.
©rafael coutinho, originalmente publicado pela revista SAMBA#3
a: Esse trabalho TERROR, pra SAMBA3, ficou lindíssimo também, e num estilo bem diferente! isso é uma coisa que você busca, em seu trabalho de quadrinista - experimentar com estilos diversos?
R: Acho que sim... não é um plano de carreira, sabe? Não começo o dia dizendo: "hoje vou fazer algo completamente diferente", tem mais a ver com o projeto, com o convite, com a ideia. Fazer histórias em quadrinhos ou qualquer projeto que seja tão longo quanto (pintar um série de telas em torno de uma ideia, por exemplo) me exaure, essa é a verdade. Saio daquilo esgotado, como se tivesse secado um fosso de ideias sobre aquilo. Meu instinto é de fazer algo diferente, senão enlouqueço. E não tenho esse preciosismo que alguns artistas têm com o próprio estilo, ou a busca por uma solução completa, homogênea. Esse tipo de reflexão é muito comum no nosso meio. Quando se é jovem, o cara quer a qualquer custo desenvolver uma linguagem própria, seja por reconhecimento ou amadurecimento. É como um selo de autenticidade, uma marca particular. Já na fase madura ou "profissionalizada", o sujeito precisa manter a tal marca, fortalece-la, garantir o fluxo de trabalho em torno daquilo que ele acredita ser SEU, e aos poucos isso pode ou não virar uma prisão.
Talvez porque eu tenha visto isso dentro de casa, pelo meu pai, mas acho que criei uma ideia bem fluida sobre isso. Não nutri o desejo incondicional de me tornar quadrinista ou pintor ou animador. Queria que fosse bom, queria amadurecer, e queria completar os projetos do mesmo jeito que comecei, acho que essa era a minha maior meta. Comecei fazendo projetos cumpridos, minha primeira animação foi com 22 e me tomou seis meses de trabalho. No final não aguentava mais, mas foi muito bom ver completo, ver que eu conseguia fazer, e o volume de trabalho me obrigava a praticar à exaustão aspectos do meu traço que me deixavam inseguro antes de começar. Acho que vou mais por aí hoje em dia: vou fazer isso aqui até o fim e vou focar em elementos que me deixem inseguro, tipo "matar o monstro". Lembro muito da minha primeira história longa, a "BINGO", publicada na Sociedade Radioativa, revista indie aqui de Sampa. Lembro do medo que sentia, um medo paralizante. Sabia que se eu fizesse, não teria mais como manter protegida a expectativa em torno daquela ideia, seria o que saísse, e eu teria que assumir aquilo, com todas as deficiências que estivessem ali. Era realmente mortificante, eu ficava repitindo enquanto desenhava: "sem medo", "sem medo". É difícil pra quem não desenha ou trabalha com arte entender o volume de responsabilidade e coragem que gira em torno de "fazer algo". Tenho medo até hoje, medo de assumir uma visão a respeito de um tema, de correr esse risco, de não ter como apagar o que foi feito depois. Hoje em dia entendo um pouco melhor que o resultado mais significativo nisso tudo eu só vou entender depois de alguns livros e algumas exposições, não sou capaz de controlar isso. O que consigo entender é que preciso fazer, sinto essa necessidade, e sofro muito quando não realizo essas obsessões.
Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2013/07/rafael_coutinho_reinventando_os_quadrinhos.html#ixzz2aiQ3t5T5
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