Clássico da literatura infantil brasileira recentemente adaptado para os cinemas, a história do menino Zezé é um convite à reflexão sobre um dos aspectos mais importantes do processo educativo.
A infância parece ser um universo tão vasto quanto o estudado pelos astrofísicos. Não à toa Freud ter se debruçado com máxima atenção sobre o assunto e analisado com afinco a importância do período infantil na construção do indivíduo, tornando-o um dos temas basilares da psicanálise. Em “Meu pé de laranja lima” a puerícia não é retratada de maneira diferente: a par a linguagem simples da obra, pouco extensa, a imensurabilidade da infância e a infinidade de questionamentos acerca da mesma estão presentes. Em verdade, “Meu pé de laranja lima” é uma reflexão literária sobre o caráter transformador do afeto, sua importância e os riscos de sua ausência para o bom desenvolvimento da criança.
Publicado pela primeira vez em 1968, “Meu pé de laranja lima” tornou-se rapidamente um clássico da literatura infantojuvenil brasileira. Foi traduzido para 32 idiomas e publicado em outros 19 países. Nesse livro de cunho fortemente autobiográfico, José Mauro de Vasconcelos não retrata somente suas impressões de uma infância difícil; não: Zezé, a personagem central da obra, é a representação de toda uma problemática relativa ao universo infantil. Daí, possivelmente, a fácil identificação de gerações e mais gerações com a história do menino pobre e sonhador que transita entre o real e o imaginário a fim de suportar as vicissitudes da vida.
De inteligência acima da média e aguda sensibilidade, característica que falta à maioria de seus familiares por conta da dureza do cotidiano em que vivem, Zezé é um menino hiperativo, vítima de violência física e psicológica dentro de casa pelo que os seus compreendem por peraltices da idade ou “coisa do demônio” - ideia na qual o garoto passa a acreditar com veemência e pela qual constantemente se martiriza. São inúmeras as vezes em que, tomado pela tristeza, o garoto questiona não só a falta de afeto da família, mas a sensação amarga de abandono por algo maior, metafísico.
Por meio de uma análise primária do perfil psicológico do menino Zezé, poder-se-ia dizer que a personagem é o retrato de uma criança que sofre com o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), uma síndrome psiquiátrica que atinge cerca de 3% a 6% das crianças em idade escolar em todo o mundo. A partir desse diagnóstico prévio, as traquinagens de Zezé, coisa que nem mesmo ele compreende o porquê de existirem, poderiam ser compreendidas como produtos de um impulso inconsciente: meios para que os demais simplesmente percebessem-no.
É a partir do insucesso de tais ações que a extrema necessidade de afeto faz com que Zezé crie um mundo a par da realidade circundante. Inventa amigos imaginários. Faz do pequeno pé de laranja lima, no fundo do quintal da casa onde mora, seu confidente, seu melhor amigo.
Nessa transitoriedade entre o real e o imaginário, Zezé também busca em outros seres humanos o afeto que nem mesmo Minguinho, o pé de laranja lima, é capaz de suprir: primeiro, em Ariovaldo, um cantor itinerante; depois, em D. Cecília Paim, sua professora (é interessante perceber nessa relação a importância do afeto, também, no processo de aprendizagem); na sequência, em sua irmã Glória e em seu irmão caçula, Luís, a quem tenta proteger a todo custo de qualquer infortúnio; e, por último, em Manuel Valadares, o Portuga.
Zezé e Portuga são, possivelmente, duas solidões que se completam. A relação entre os dois é a mais densa de toda a obra. É por meio de Portuga que Zezé passa a ser, pela primeira vez, emissor e receptor constante de uma afeição transformadora que permeará toda vida do menino, e que se refletirá em gratidão quando esse atinge a maturidade.
O escritor José Mauro de Vasconcelos
Embora a crítica especializada nunca tenha de fato reconhecido o valor do trabalho de José Mauro de Vasconcelos como autor, seja por seu manejo simples da linguagem, por seu lirismo exacerbado, ou mesmo por ser considerado um escritor popular, verdade é que Zé Mauro não escrevia apenas para o público infantil, mas, sobretudo, para um público adulto. Suas obras são um convite à reflexão sobre a infância, a criança, a organização do mundo, o afeto no processo educacional em oposição a uma educação extremamente rígida que não contempla a riqueza do universo infantil, mas é, acima de tudo, disciplinadamente autoritária.
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