quinta-feira, 9 de maio de 2013

DEBRET E A NEGAÇÃO DO NEOCLASSICISMO BRASILEIRO


Jean Baptiste Debret, nascido em 18 de abril de 1768 na França, é conhecido até hoje como o pintor que retratou o cotidiano dos escravos no Brasil. O que poucos levam em consideração é que antes de vir pra cá, Debret era um pintor neoclássico, primo de Jacques-Louis David (1748-1825), principal nome desse estilo.

Autorretrato de Debret publicado em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil - 1834

O Neoclassicismo era muito ligado ao Academicismo, recebia forte influência do Iluminismo e fazia da política um elemento meramente estético para reforçar o resgate ao homem da antiguidade – cheio de virtudes, coragem, moral e felicidade. Os homens da escola neoclássica rejeitavam o rococó, da mesma forma que os renascentistas rejeitavam os medievais. O ideal era o mesmo: resgatar os intelectuais gregos e romanos e adapta-los ao contexto da época em que os franceses viviam, ou seja, a ebulição da Revolução Francesa.

 Autorretrato de David, 1794


Jacques-Louis David era o porta-voz artístico desse momento! Votou a favor da decapitação de Luis XVI e até determinado momento, caminhou ao lado dos revolucionários, tornando-se amigo de Jean-Paul Marat, assassinado pela oposição girondina em 1793. Foi com o objetivo de imortalizar o amigo que David pintou o quadro “A Morte de Marat” no mesmo ano.

A Morte de Marat - Jacques-Louis David, 1793


Debret seguia fielmente os passos do primo, pintando quadros como “Regulus voltando a Cartago” de 1791, com direito a representação da mulher como um ser doméstico e sensível, enquanto o homem é o ser superior, corajoso, heróico e exemplar para todos.

Acontece que, depois que a Revolução Francesa terminou, Napoleão assumiu o poder e tornou-se contraditoriamente imperador de um povo que antes lutara para a queda de uma monarquia absolutista! O que deveria ser absurdo virou algo cômodo e Napoleão logo virou o homem ideal às pinturas neoclássicas de David. Debret pintou “Napoleão presta homenagem à coragem infeliz” em 1805 e outros quadros que apenas retratavam episódios e não momentos heroicos relevantes à população enquanto David exaltava – de forma exagerada – a figura de Napoleão como, por exemplo, em “Napoleão cruzando os Alpes”.

Napoleão cruzando os Alpes - Jacques-Louis David, 1805


Foi numa dessas “cruzadas” que Napoleão caiu, em junho de 1815, e junto com ele todos os neoclássicos também! Os Bourbon que assumiram o poder francês não queriam por perto pessoas como David ou Debret, afinal de contas eles apoiaram a Revolução Francesa, certo? David decidiu se exilar na Bélgica e Debret permaneceu na França por mais um tempo comendo o pão que o diabo amassou: perdeu a esposa, perdeu o filho morto aos vinte anos e perdeu as chances de trabalhar. A solução chegou através de um convite de Joachim Lebreton para fundar a Academia de Belas Artes no Rio Janeiro, junto com um grupo de artistas que seriam enviados ao Brasil com essa missão. Sem ter o que fazer, ele topou o convite e depois de dois meses viajando, desembarcou no Rio de Janeiro em março de 1816.


Comboio de café rumo à cidade - Debret, 1826


A primeira dificuldade de Debret foi adaptar os supostos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade no Brasil – algo que ele estava habituado a fazer em seus quadros na época da Revolução Francesa. No Rio de Janeiro ele não encontrou nada disso! E pior: ele não enxergava nada de heroico em D. João VI. Para ele o rei português era o famoso fujão e só isso. Debret não conseguia pintar nada neoclássico no Brasil. A vida pública não era solicitada, o poder do rei e até mesmo de D. Pedro I após a proclamação da independência não simbolizava um exemplo a ser seguido pela população justamente por ela ser isenta nas questões políticas, e de forma geral, a realeza tinha uma feição muito mais caricata do que qualquer outra coisa.


Oficial da corte chegando ao palácio - Debret, 1822


Debret dizia que o Brasil ainda vivia na infância. Essa visão fortaleceu quando 15 mil pessoas chegaram ao Rio de Janeiro numa época em que a cidade abrigava 60 mil. Resumindo: a cidade teve que se remodelar para abrigar essa gente e a coisa virou uma bagunça geral! Não existia o mínimo de saneamento básico ou de planejamento urbano. Mas, pelo incrível que pareça, não foi essa falta de estrutura que fez Debret desistir de pintar algo neoclássico no Brasil. A existência de uma escravidão generalizada diferenciava totalmente o Rio de Janeiro de qualquer outra cidade europeia. Não havia nada de virtuoso nisso.

“São sobretudo os desenhos realizados para compor futuramente a Viagem pitoresca e histórica ao Brasil – ao menos parte significativa deles – que revelam o esforço de Debret para ultrapassar seu dilema brasileiro, fazendo uma arte que mantivesse um vínculo com a realidade do país, sem perder de vista a dimensão crítica da postura ética neoclássica.” (NAVES, p. 72)

O pintor passou a fazer litografias e aquarelas de cenas típicas da cidade carioca, focando principalmente nos escravos.


Negociantes de tabaco em sua loja - Debret, 1834



Cena de Carnaval - Debret, 1834



Feitores castigando negros - Debret, 1834



O cirurgião negro - Debret, 1834


Os pontos positivos desses retratos, além da força documental, é que Debret jogava a atenção do quadro em cima do negro ao contrário de seu companheiro de Missão, Thomas Ender, que fazia do negro um elemento simples e muitas vezes semelhante aos objetos. Debret atribuía personalidade ao escravo como na aquarela “Negra tatuada vendendo caju” de 1827. É possível perceber a tristeza dela, o descaso àquela realidade e a desistência melancólica de sair daquela situação servil.


Negra tatuada vendendo caju - Debret, 1827


Em aquarelas que retratavam os castigos aplicados aos negros, nós sentimos o sofrimento deles e também a crueldade do branco que bate. Debret chegou a ser criticado pelo IHGB por fazer isso, acredite! Diziam que “entre todos os senhores de escravos, os portugueses eram os mais humanos”.

Mas como nem tudo que reluz é ouro, Debret também era racista. Era do tipo que concordava com os naturalistas que diziam que o negro era uma espécie “à parte da raça humana e destinada, pela sua apatia, à escravidão, mesmo em sua pátria”. Debret costumava naturalizar a condição servil dos negros. Os corpos quando estão exigindo força não possuem traços que detalhem os músculos, por exemplo. Acabam ficando frouxos e homogeneizados.

Negro com máscara - Debret, sem data


Quando retratava uma situação mais “tranquila”, o escravo aparenta sempre ter uma certa inocência e preguiça. De maneira geral também impera um aspecto negativo que atribui o negro à sujeira e ao que é precário.

Ao mesmo tempo em que ele criticava, ele também se resignava. Um pintor como ele acostumado a retratar pessoas ao nível de Napoleão Bonaparte, não poderia igualar os escravos aos heróis europeus. Entre 1836 e 1845, após o retorno a Paris, Debret voltou ao velho traço neoclássico com seus companheiros de escola, “como a dizer que num ambiente instruído cumpria abandonar o acanhamento brasileiro e reatar com a grande arte”.

Foi por essa limitação (temos que tomar cuidado para não cair no anacronismo) além de motivos técnicos, que Debret nunca chegou a ser considerado um grande pintor. O que nos interessa é que além de ser uma fonte documental, sua obra é o ápice de um dilema que nos persegue até hoje: o de vivermos num país racista sem racistas.

Nota: O academicismo brasileiro, famoso pelos quadros do Pedro Américo e do Victor Meirelles, só surgiu depois da estadia de Debret no Rio de Janeiro, quando foi instituído os prêmios de viagem ao exterior.

Leia:
A Forma Difícil – Ensaios sobre a arte brasileira
Autor: Rodrigo Naves
Editora Ática

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