"Precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aí a cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender (...), no interesse de todos nós".
Lima Barreto. Literatura militante. In: Impressões de leitura. 1956, p. 73.
O escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881 e cresceu em meio a uma família de poucas posses, mas de bom nível educacional. Sua mãe, Amália Augusta, era professora primária e morreu precocemente, quando o literato tinha apenas 6 anos, de tuberculose e seu pai, João Henrique, trabalhou na sede da Imprensa Nacional e traduziu, na época, do francês para o português oManual do Tipógrafo. No dia 13 de maio de 2013 completaram-se 132 anos do nascimento desse autor que teve uma vida intelectual e pessoal atribuladas, marcadas pelas rondas constantes dos espectros do alcoolismo, do racismo e da loucura. No contemporâneo, Lima Barreto é meio que celebrado como um tipo de santo padroeiro dos escritores bêbados e rebeldes. Porém, seu legado intelectual ultrapassa, em muito, os dissabores de sua trajetória biográfica.
Desde os tempos da Escola Politécnica, onde iniciou o curso de Engenharia, custeado pelo padrinho, o Visconde de Ouro Preto - um pitoresco monarquista da época - Lima Barreto apresentou tendência para a escrita, sobretudo a satírica. Juntamente com alguns colegas, criou um periódico que circulava na instituição com textos, poemas e algumas caricaturas dos professores mais sisudos como o lente Licínio Cardoso. Nessa época, o jovem escritor negro convivia com os filhos das elites branqueadas do Rio de Janeiro e a rejeição era um fato.
Desenvolveu, assim, um comportamento introspectivo e crítico e, durante seu tempo livre, passava horas e horas na biblioteca da Politécnica travando contato com obras de autores como Voltaire, Rousseau, Spinosa, Nietzsche, Schopenhauer, entre outros. Após sucessivas reprovações nas disciplinas de cálculos ministradas por Licínio Cardoso - um positivista intransigente - Lima Barreto desiste do sonho de se tornar engenheiro. O principal biógrafo do literato, o historiador e jornalista Francisco de Assis Barbosa, quando publicou a primeira edição de A vida de Lima Barreto, em 1952, sugeriu que essas perseguições tiveram motivações racistas e ideológicas. O tarimbado professor da Politécnica não aceitou o fato de um jovem aluno, negro e de origem modesta, ter criticado, em um artigo, com argumentos bem fundamentados, alguns princípios fundamentais do pensamento de Comte.
Lima Barreto presta concurso para trabalhar como amanuense - um modesto cargo público - no Ministério de Guerra, localizado no Rio de Janeiro. Em um tempo no qual não existiam máquinas fotocopiadoras, muitos documentos emitidos nas instituições tinham de ser reproduzidos manualmente. Ainda bem jovem, tem de arcar com a responsabilidade de sustentar o pai, que, literalmente, enlouqueceu após a transição do Império para a República, seus irmãos e a madrasta, juntamente com seus filhos. É na Secretaria que sente-se entediado pelo trabalho maçante e por ter de assistir o desfile diário de oficiais arrogantes e cheios de empáfias. Juntando-se a esse quadro, a loucura do pai, que passa a delirar em torno de uma suposta conspiração republicana para lhe prender, Lima Barreto vai obtendo material para escrever o célebre romance Triste fim de Policarpo Quaresma.
O errante personagem barretiano, interpretado pelo ator Paulo José, no filmePolicarpo Quaresma: héroi do Brasil de 1998.
O major Policarpo encarna a parte mais pura do idealismo humano, assim como Dom Quixote. Ao se envolver nos episódios que remetem a Revolta da Armada,um conflito entre o Exército e a Marinha brasileira pelo poder, que se passa, historicamente, em 1892, Policarpo entende estar contribuindo para a ordem e o progresso da pátria. Porém, ao presenciar os castigos e as execuções cometidas contra os membros da Marinha pelo exército florianista sofre um imenso desencanto existencial e político. O fim de Quaresma é triste porque, mesmo antes de ser considerado um visionário perigoso pelo próprio Floriano Peixoto, ao escrever uma carta para o ditador denunciado os crimes cometidos nas prisões e sugerindo uma reforma agrária, seus ideais ingênuos são esmagados pelo enorme peso da corrupção, do autoritarismo e da violência que alicerçaram a chamada República da Espada. Antes da morte física, o personagem morre espiritualmente.
Lima Barreto em uma foto tirada para a imprensa no começo do século XX
Quando se entregava ao consumo exagerado de álcool até ter alucinações - o que lhe rendeu as duas internações forçadas na Ala Pinel do Hospício Nacional - o escritor não o fazia com as intenções de ser visto como bon vivant ou um dândi. Lima Barreto bebia para se aniquilar, para esquecer os dramas familiares e o silenciamento imposto pela alta cúpula da Academia Brasileira de Letras aos méritos de sua produção intelectual. Em uma tocante passagem do seu Diário de Hospício, confessa que, quando foi obrigado a varrer a calçada da instituição psiquiátrica onde esteve internado, sob o olhar dos transeuntes da rua, havia sonhado ser equiparado a um Spinosa ou Dostoiévski, nas letras nacionais, e, de repente, estava ali: havia caído tão baixo que teve vontade de chorar como uma criança.
Fotografia de Lima Barreto tirada durante os três dias em que esteve internado no Hospício Nacional, em 1919. Apresenta feições mórbidas, deprimidas.
De fato, a dívida de Lima Barreto com a literatura russa é muito ampla. Esse enlace foi admitido em uma conferência que haveria de ser proferida em São Paulo, em Maringá, mas que nunca houve, porque, momentos antes de sua fala, Lima Barreto resolveu tomar alguns goles de aguardente para espantar a timidez e acabou sendo encontrando apenas no outro dia pelos seus anfitriões, estirado em uma sarjeta.
Nessa fala intitulada "O destino da literatura", publicada depois na revista Souza Cruz, em 1922, o literato carioca ressalta que seu contato com a obra Crime e castigo, de Dostoiévski, foi fundamental para que tivesse uma concepção de literatura muito mais ampla do que a de mero culto ao dicionário e das formas estéticas agradáveis. Também é a partir de Tolstoi que o autor trabalha com a ideia de que a função da arte literária é irmanar as pessoas das mais diferentes partes do mundo que partilham da imensa dor de serem humanas. Creio que a safra de boas publicações sobre a importância de Lima Barreto para a literatura brasileira é bem importante não só para o público especializado, mas também para o leitor que pode não se interessar pela linguagem acadêmica e é, no entanto, um inconformado com a atual situação da nossa República das Bruzundangas.
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