Hamlet: To be, or not to be, that is the question:
(Ser, ou não ser, eis a questão:)
Whether it is nobler in the mind to suffer
(Que é mais nobre para a alma suportar)
The slings and arrows of outrageous fortune,
(As pedradas e flechadas do destino feroz)
Or to take arms against a sea of troubles
(Ou armar-se contra um mar de desventuras)
And by opposing end them. To die — to sleep,
(E dar-lhes fim tentando resistir-lhes. Morrer — dormir...)
No more; and by a sleep to say we end
(Mais nada; imaginar que um sono põe remate)
The heartache and the thousand natural shocks
(Aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos)
That flesh is heir to: it is a consummation
(Que constituem a natural herança da carne: eis uma consumação)
Devoutly to be wished. To die, to sleep;
(Para almejar-se. Morrer, dormir;)
To sleep, perchance to dream — ay, there's the rub:
(Dormir, talvez sonhar — É aí que bate o ponto)
For in that sleep of death what dreams may come,
(Para que nesse sono da morte que os sonhos possam vir)
When we have shuffled off this mortal coil [...].
(Quando nos embaralham fora deste espiral mortal [...].)
Partindo para as explicações de como é realizada a produção deste trecho da peça, Hamlet, devemos olhar para o meio em que foi realizado na época Moderna, no qual o autor Michel de Certeau, em “A Escrita da História”, apresenta argumentos teóricos que discute o ofício do historiador bem como o “fazer história” com o fim de nos auxiliar em seus detalhes do período. Para o trecho assinalado, notadamente apresentará argumentos que dê conta de: “Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da "realidade" da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada "enquanto atividade humana", "enquanto prática".
Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas "científicas" e de uma escrita (grifo nosso). Essa análise das premissas, das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto”. (Certeau, pág. 56) A partir deste excerto de Certeau podemos criar ferramentas para se pensar e tentar compreender os textos literários como fontes historiográficas e de como os critérios “científicos” influenciam para sua efetiva utilização para se entender as possíveis formas do cotidiano a partir do olhar crítico dentro de uma pequena narração que pode ou não representar personagens reais através de nomes fictícios. Neste sentido relembra que muitos dos materiais produzidos devem, impreterivelmente, passar pelo crivo do método, no qual por vezes relegado à vulgarização de seus conteúdos quando não atendidas às exigências destes critérios, que delimitam seu meio de produção de forma explicativa ou dando apenas um modelo do cotidiano real para que se possa seguir com sua visão histórica do tempo escrito. Outro ponto abordado no excerto de Certeau relaciona-se ao produto final da produção historiográfica, sobretudo com relação ao público ao qual está sendo destinado.
Neste sentido, criando um paralelo com o trecho de Hamlet, é possível pensar esta obra literária como formadora de opinião pública, ou pelo menos aqueles que possuíam importância social para possuírem opinião e autonomia para utilizar-se dela. Ou seja, as obras literárias do período em questão eram destinadas, sobretudo ao público letrado, que possuía discernimento suficiente para perceber o que está sendo apresentado, assim como notar as sutis críticas que são realizadas neste tipo de trabalho. O excerto de Certeau apresenta justamente a questão do método como mecanismo científico para a utilização das fontes historiográficas, o vasto campo de ação que a obra literária pode alcançar seus agentes, ativos e passivos, que nem sempre reside em autor e espectador, mas em outras personagens ligadas direta ou indiretamente a produção e divulgação de tal obra literária, sendo certo que as instituições também estão submersas nas questões apresentadas pela obra literária e a sua respectiva utilização e/ou divulgação, e também as dificuldades para sua propagação entre o público. Em “As máscaras do mundo: Hamlet e os limites da tragédia”, o autor Felipe Charbel parte da “Poética” de Aristóteles com o objetivo de discutir os limites do gênero que compõe a tragédia de Shakespeare. Após uma breve introdução, divide o artigo em quatro partes distintas, sobre o qual desenvolve uma discussão dos fatores internos do protagonista desta tragédia, a saber: Hybris (Ato de arrogância e insubmissão as leis dos Deuses), Aparência, Melancolia e Tragicidade.
Para este autor, a consciência de si do herói trágico se choca a todo o momento com a ordem objetiva do mundo. Oposto ao modelo grego, onde o herói é submetido à tragédia após cometer erros que no texto tem-se o nome de “hamartia”, que, segundo Aristóteles, trata-se de um erro sem vício ou maldade. Para o autor, Hamlet já conhece seus objetivos e os possíveis resultados dos seus atos de vingança, sendo certo que esta conduta não condiz com o modelo de herói. As alternâncias, características do período ao qual o ator interage com o público, as introspecções e furor de Hamlet causam um tipo de crise de identificação entre o herói e a platéia, onde o primeiro é privado, ou priva-se, de sua razão, sobretudo com sentimentos que os levam a acessos de fúria, tendo como conseqüência o estar “fora de si” em diversos momentos da cena. A identificação existente entre platéia e herói, tal como pontua a tragédia segundo Aristóteles não encontra em Hamlet algo pronto, visto que as intenções e atos do jovem príncipe buscam o equilíbrio moral do sentido posto na peça, sendo permitido somente o fim trágico. O silêncio causado com sua morte permite surgir reflexões que permeiam o caminho que se deve trilhar para se alcançar o equilíbrio moral. Será que a vingança é o único caminho para se alcançar tal equilíbrio? O fim trágico será o destino de todos uma vez que Hamlet determinou esse destino, questões que surgem ao ligar as conclusões do autor Charbel ao trecho sugerido. Por fim, o autor deste artigo alerta-nos sobre o fato de a peça de Shakespeare não haver “catarse” (purgação ou purificação através de um purgatório), uma vez que não há espaço para a purificação da alma, ainda que Hamlet, com sua autoconsciência, determina sua posição na cosmologia do mundo em que vive, permitindo que as condições do gênero trágico se tornem objeto de reflexão do próprio herói que têm suas ações pautadas por esse senso crítico, ser ou não ser, eis a escolha de Hamlet. Com relação às divisões propostas pelo autor, cada uma apresenta características que, de certa forma, se apresentam no desenvolvimento das personagens da tragédia, sobretudo de Hamlet, conforme segue.
O primeiro termo é a “Hybris”, que está associado a uma mudança da ordem natural determinada pelos Deuses e o herói é convocado na tragédia a reestruturar a ordem normal das coisas. Na peça Hamlet é convocado por um fantasma a utilizar-se da vingança para restabelecer a ordem, porém será ele também envolto e sugado por este restabelecimento da ordem. As indecisões por parte de Hamlet o afastam da realidade, evidenciando a aparência e na conquista do ser, do seu próprio ser, contudo a chave para o drama vivenciado está na melancolia, condição primordial para o desenvolvimento de sua aguçada capacidade reflexiva, que resulta em uma cobrança cara a posição de Hamlet, que é o caminho do meio. O segundo termo é a “Aparência” que tratará, sobretudo do caráter singular de Hamlet e sua relação com a dualidade que gera obsessão com as duplicações. Tais duplos, que são tematizados em diversas passagens, resultam da capacidade de Hamlet de discorrer sobre a singularidade de sua posição e de sua consciência trágica, forte característica desta cena. Hamlet contraria sua natureza, ou ordem natural das coisas, sendo neste ponto que o príncipe lança a rede que acabará lhe envolvendo por inteiro. Tal escolha, porém, não é simples: como fala o autor Charbel, o monólogo, ser ou não ser, pode ser lido como o conflito entre a vontade de “pegar em armas contra o mar de angústias” e a postura de acorrentar nobremente seus sofrimentos à alma.
De certo modo, ele compreende a aproximação da “consumação desejável”, ou seja, a morte, especificamente a sua morte trágica. Existe claramente uma dualidade entre realizar um desejo e o desfecho sabido da catástrofe que lhe causará. O terceiro termo é a “Melancolia”, evidenciada como característica de Hamlet. A típica inteligência do melancólico relaciona-se, em Hamlet, à prematura consciência do príncipe acerca do próprio destino e, conseqüentemente, à reflexão sobre a tragicidade de sua condição. O mundo social como uma imensa máscara em que todos se refugiam para fugir do único pensamento digno de ocupação, a morte. Por fim o quarto termo é a “Tragicidade”. Tendo Hamlet o aprendizado da morte, constitui uma experiência da tragicidade aliada à reflexão sobre a condição-limite da tragédia como gênero, uma vez que o choque entre subjetivo e objetivo é concebido pelo herói à distância, como se ele pudesse, diante das máscaras do mundo, perceber todas as etapas necessárias ao restabelecimento da ordem natural. Hamlet apresenta em alguns momentos uma posição “anti-trágica”, pois sabe e questiona sua sina, aceitando-a, contudo tem a liberdade de decidir, o que usualmente em tragédia esta possibilidade não ocorre, já que o livre arbítrio não é um fator determinante para o período, porém Hamlet tem a percepção de que pode usá-lo para mudar seu destino e sorte. Em Hamlet, o sujeito descobre tragicamente que o remédio para sua condição é a retirada do mundo, retirada para dentro de si, enquanto a ordem objetiva opera alguns outros pontos que por ele não podem mais ser percorridos. Um terceiro texto que nos ajuda a compreender esta passagem de Hamlet intitulado “Notas sobre o Barroco”, João Adolfo Hansen traz um levantamento filosófico e filológico sobre as letras coloniais e a historiografia literária, fala sobre grandes escritores da história da colônia ibérica e suas relações com o barroco, ou que se pensa sobre o barroco, apresenta também referências sobre o discurso, o interlocutor, a recepção de uma obra, entre outros fatores. Em seu desenvolvimento, apresenta uma versão sobre um tipo de história que ele pontua como “epidítica”, como se a história fosse algo criado somente por Deus. Assim, a partir do século XVIII este tipo de história providencialista acabou caindo no esquecimento e em seu lugar passa a ser produzida uma história voltada para o conhecimento humano e cientifico, sendo resultado em partes pelo advento do Iluminismo. Este evento propicia a possibilidade de delimitação de tempo nas produções literárias e historiográficas. Postula que a descontinuidade é o principio de alternância que garante o retorno de um estilo depois do outro. Neste sentido, observa a produção literária brasileira, que para além da produção historiográfica é também um estilo de escrita e propõe uma espécie de cruzamento entre as leituras das letras com uma espécie de “filosofia da literatura”, tentando buscar a interpretação dos escritos, tal como diz que em tudo que leu pode ver uma espécie mimese aristotélica, a definição escolástica da pessoa, a teologia-política católica, a tópica da razão de estado e um forte senso de providencialismo da História. Logo, discute sobre o uso de manuscritos e o exame de códigos lingüísticos que modelam e interpretam as representações de um certo período histórico, separando dois blocos distintos, os “greco-latinos”, quando encontra códigos como: retórico-poético e teológico-político, e a “arqueologia” que relaciona as letras coloniais com o campo semântico da cultura do presente examinando também documentações de não-ficção. Assim, este processo postulado pelo autor procura relacionar o que foi produzido em matéria de letras com a produção historiográfica, ou seja, de que maneira a História aparece nas produções literárias e artísticas, e como é possível utilizar as possíveis interpretações no processo de produção do conhecimento. Outro ponto tratado por este autor reside no fenômeno relacionado ao leitor ou espectador, que acaba por se identificar com o que está sendo visto ou dito, como uma espécie de verossimilhança do que se quer que as pessoas interpretem, assim como também discute Charbel na sua relação do público com o herói, apresentado anteriormente. Em suas considerações sobre o barroco, sobretudo quando o classifica como um estilo sombrio e cheio de altos e baixos passando a dialogar com o excerto de Hamlet, sobretudo quando esta personagem passa a se questionar e reverenciar a morte, comparando-a como um sono bem vindo.
Desenvolvendo mais adiante os argumentos teóricos de Hansen, o autor fala sobre o espaço público sendo algo como bem comum nessa época, como um teatro corporativista, repetição de modelos, uma retórica que causa um efeito de entendimento. Este tipo de entendimento ou capacidade de interpretação era conhecido como “discreto”. A discrição é como uma coisa dita ou feita com bom juízo. Neste sentido, o autor coloca que a discrição implica uma arte do fingimento das aparências convenientes à ocasião. Os grandes tópicos seiscentistas dos “sonho a vida” e do “teatro do mundo”, correntes nas letras do século XVII, são cenas alegóricas que generalizam o fingimento da ficção pela luz divina. Em suma, cada texto e autor apresentam maneiras divergentes de se abordar e compreender o excerto de Hamlet, sendo evidente que cada qual traz em si interpretações diferentes para o mesmo fragmento. Neste sentido, pensamos que para se chegar em um possível entendimento da cena, devemos passar por algumas etapas que serão descritas abaixo. Abordando o contexto de produção do século XVII temos como resultados o elemento de análise histórica, no qual é possível pensar esta passagem como o retrato dos problemas políticos e sociais que a sociedade da época estava vivenciando. O sentimento de incerteza, patente do período, por conta das guerras entre os reinos e os problemas religiosos relacionados à reforma e a contra-reforma, contrastando com o movimento renascentista e proto-iluminista, dão o tom da dualidade presente em boa parte do excerto. Sendo oportuno pontuar ainda que não somente o texto, mas as imagens apresentadas na obra literária e historiográfica servem como fonte, como no caso do símbolo na capa da obra em questão, que traz elementos que possibilitam a identificação da data e o local de produção bem o seu destinatário entre outras informações de interesse, em outras palavras, a capa da obra esta carregada de características que podem identificar o período de sua produção mesmo que falte estas informações definidas, porém com a forma de escrita de forte presença na arte, a exemplificar a escrita da letra “s” ser parecida com a letra “f” como pode-se notar na capa do excerto de Hamlet. Partindo para o conteúdo, temos como elemento de análise a literatura, ao qual nota-se claramente o estilo “Barroco” que, segundo João Adolfo Hansen, privilegia o extremo, o sombrio e a dualidade. Portanto, a utilização dos vocabulários ligados, sobretudo a martirização, tanto do corpo como da alma (mente e sentimentos) apontam para os extremos. Neste ponto devemos realizar algumas observações e considerações relacionadas à historiografia.
No período em que a peça foi produzida, o homem ocidental receava por sua alma imortal, para além das obras literárias, as esculturas, construções e quadros retratavam toda esta insegurança. Sendo um elemento subjetivo e de difícil comprovação, nem sempre são considerados em uma análise mais profunda, sobretudo quando não há outras fontes para a comparação. Como forma de expressão esta peça servia, além do usual entretenimento e, de certa forma, fonte de renda para seu autor e atores, uma forma de externar toda esta insegurança a que esta sociedade está mergulhada. Outro ponto relevante é a forma como os eventos se desenrolam na peça; embora no excerto em questão não apareça à menção do fantasma que convoca Hamlet à vingança para o restabelecimento da ordem, este personagem, por ser um elemento não material, representa o mundo do além, e que, de certa forma, propõe que a alma talvez não encontre a paz prometida pelas instituições religiosas do período e esperada pelas pessoas, independente da posição social em que se encontrava. Portanto, sendo oportuno frisar que, tanto para a produção literária como historiográfica, deve-se considerar quem escreve, para quem se escreve, quem financiou e quem autorizou sua publicação, circulação e apresentação, uma vez que grande parte dos reinos europeus possuíam um tipo de censura aplicada as formas de conhecimento e literatura. Estes elementos são de grande importância para se tentar entender porque as linhas apresentadas possuem tanto conteúdo em seus entre-linhas, mecanismo usado para se fugir da censura, porém de difícil compreensão do público, ao qual exige um alto grau de conhecimento da realidade vivida para se criar uma conexão com o fictício, mas ao mesmo tempo de difícil acesso. Neste sentido, concluímos que esta obra foi produzida, não somente para entreter, como se pode pensar num primeiro momento, mas para proporcionar um tipo de questionamento sobre questões urgentes atreladas ao cotidiano das pessoas que possuíam certa base cultural para, em tese, dar conta de todos os conteúdos apresentados.
Américo Afonso Polichetti, Danylo Almeita Ferrenha, Luíz Alberto Machiori e Rosávio de Lima Silva, estudantes de História, UNIFESP.
Fonte: http://discuthistoria.blogspot.com.br/2011/08/hamlet-e-seu-contexto-moderno.html
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