Foto por Fernando Campanella |
Vícios de linguagem, com destaque à redundância, são apresentados no ensino formal da Língua Portuguesa como recursos linguísticos absolutamente indesejáveis, espécies de “capetinhas” a serem esconjurados.
Lembro-me de correções de professores, aqueles abomináveis riscos vermelhos em meus trabalhos de redação, as quais faziam meus escritos parecer atos criminosos contra a sacrossanta e indomável Língua Pátria.
Pleonasmos, por outro lado, adquiriam status de figura de linguagem, sendo louvados caso viessem de um autor literário ou de um compositor de música popular brasileira consagrados.
Redundâncias como “hemorragia de sangue”, “esposa do marido” soam obviamente estranhas a ferem-nos os ouvidos. Mas nunca podemos esquecer que linguagens são produtos de diferentes culturas, têm cor local, variantes de uma língua-padrão, efetivas em seu meio, e, sobretudo, que tantas vezes muitos de seus massacrados vícios trazem uma carga ou reforço que enriquecem afetivamente a comunicação.
Quando ainda menino eu passava as férias numa fazenda de parentes, e minha tia às vezes me levava em visitas a uma amiga de um sítio vizinho. Ao chegarmos, eram evidentes a alegria e a hospitalidade da anfitriã, dona Fiinha. Esta, quando abria a porta, com o mais largo sorriso nos lábios (belo pleonasmo), dizia à minha tia: entra pra dentro com o menino, dona Lela, vamo tomá um café cuado agorinha.
E que café, numa mesa transbordante de gostosuras da roça, sem sofisticação, mas muito limpa e bem posta. Aquilo era uma lição de civilidade e boa convivência que talvez nenhuma matéria escolar conseguisse ensinar tão bem. Eu gostava daquele tom carinhoso vindo de dona Fiinha, sempre que nos recebia. Só mais tarde viria a aprender no colégio que ela cometia vícios de linguagem. Mas tais vícios já lhe foram perdoados, todos, com certeza, a boa mulher hoje deve continuar distribuindo gentilezas lá do céu, extensão da prodigalidade de sua alma.
Há alguns dias, após tantos anos, Dona Fiinha e as peculiaridades de seu falar tão inerente, natural, vieram-me à memória. Em visita a uma pequena cidade aqui da região, encontrando-me perto da prefeitura, ouvi dobres fúnebres do sino da igreja matriz na tarde. Uma senhora que passava na rua cumprimentou um amigo ou conhecido perto de mim e lhe perguntou quem havia falecido. Diante do desconhecimento do homem sobre a identidade do defunto, ela expressou sua curiosidade com esta pérola de redundância:
- Quem será que pode ter sido?
Pleonasmos ou vícios de linguagem? Em alguns meios, ou situações, qual a diferença real entre eles? Quantas vezes já devo ter perguntado algo como “o que será que pode ter acontecido?” e nem me dei conta, não parei para refletir sobre impropriedades linguísticas. Falei, falamos, assim, aqui na região, e isso nos comunica. E a curiosidade da senhora ao ouvir o dobre triste do sino naquela cidade foi tão verdadeira, tão sentida, que, naquele contexto, ela foi enfática, quase hiperbólica, sua redundância no uso de tempos verbais funcionou plenamente. Eu entendi muito bem o que ela quis dizer, e também fiquei curioso em saber “quem seria que podia ter sido o defunto”, embora estivesse apenas de passagem e desconhecesse quase todo mundo ali.
Fernando Campanella
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