segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

AS VISÕES DO HOLOCAUSTO


“Uma casa como milhões de outras, em algum lugar na Alemanha. Pessoas simples, como eu e você, moram nesta casa: elas vivem com medo. Não pergunte o que elas temem: elas temem a Gestapo, é claro. [...] O medo está lá: portas furtivamente se abrem e os intimidados residentes olham cautelosamente para ver quem está sendo afetado”, escreveu Lea Grundig, artista e ativista política criada em um lar de judeus durante os anos que precederam a Segunda Guerra Mundial. Sua obra é o encrave de uma mudança política diabólica perpetrada pela história em nosso espírito. Uma insurgência de sadismo imperscrutável contra o homem. Grundig traz visão de quem já viu, esteve, tocou e já sentiu, resistiu à própria morte nos terríveis campos de concentração. Lea é antes de tudo, uma sobrevivente.

Quando Hitler chegou ao poder, poucos acreditariam que o mesmo líder responsável por levantar uma nação, resgatar a economia, salvar milhões de jovens da pobreza, e dar ao povo os seus discursos de calor exacerbado, seria responsável pela efetivação de um genocídio inexplicável, tenebroso, de dimensões incalculáveis e consequências desastrosas para a história. Mas mesmo na Alemanha, país onde o fascismo enclausurou-se como única medida esperançosa para o povo, e lugar onde os partidos radicais formavam a maior parte da direita, havia aqueles que ousavam discordar da hegemonia. Grundig, na época uma jovem alemã de classe média, estava inclusa neste meio.
De ascendência judaica, sua família não tinha ligações ao sangue árabe-semita, e ainda muito jovem, havia se rebelado contra os pais e a própria religião. Destarte à sua infância, Lea se inspirava nos afrescos expressionistas de um alemão proeminente e veterano da Primeira Guerra Mundial, Otto Dix, o pintor que após presenciar os horrores do campo de batalha pela Europa, assumira uma postura antibélica e voltada para a esquerda. Ainda consta que sua família, durante muito tempo, não fora perseguida por manter grande sigilo à sua cultura – a religião judaica, que constituía crime na Alemanha nazista segundo as leis de Nuremberg. Entretanto, a prole que em grande parte era dominada pela casta antepassada, garantia a segurança e até mesmo vagas na Academia de Belas Artes do local onde moravam, dominado pelo furor antissemita mesmo nos anos anteriores à ascensão de Adolf Hitler. Dresden, a capital da Saxônia. Lugar aonde este, porventura, o grande ídolo de Lea conduzia as aulas em uma classe separada para homens como Otto Griebel e Willhelm Lachnit. Jogo de sorte, mas não, ela realmente conseguira. E foi no ano de 1924, onde participou sumariamente de exposições onde a influência de artistas austríacos e alemães formou grande parte de seu futuro repertório. Era para valer. Nomes como Ernst Barlach, o famoso adepto do Kaiser durante o conflito anterior que alterou de posição, e Oskar Koroschka, o escritor austríaco, seriam junto a ela nos próximos anos, considerados participantes de todo o movimento agrupado à chamada “arte degenerada” da Alemanha. Excluída dos museus, porém, aberta ao público, com, ou sem esmero, no fundo de alçapões e nos barracos esquecidos de alguns subúrbios afastados. Foi onde ela também futuramente conhecera o seu marido, Hans Grundig, arranjado por seus pais, que a convencera a fazer parte do partido comunista em 1926.

Seu trabalho traz uma lástima de dor, um sentimento de perseguição autoinduzida, compreendida por aqueles que abriam as portas de suas casas e resolviam enfrentar as ruas da cidade. Lá fora, qualquer um, ao mesmo tempo do que em todos, carregava esta noção – aquela de que o próprio pai era o inimigo. A própria mãe podia ser uma espiã, ao mesmo passo de que o próprio pensamento, os amigos, o Estado, ou alguns milhares de soldados, não podiam confiar na própria sombra. A ideia era só uma: o inimigo estava à solta. E espreitava em todo canto.
Antes de ser presa em 1936, ela e seu marido haviam publicado a coletânea “Under the Swastika – o judeu é culpado”, além de outros títulos como “ A guerra se aproxima”, “Gueto” e “Vale da Morte”. Nestes trabalhos carregados de sugestividade, notava-se a clara crítica aos membros do partido nacional socialista, assim como a alusão à inocência dos judeus.
Detidos e levados a um campo de concentração de refugiados na capital da Eslováquia, em Bratislava, permaneceram por lá até a confirmação do exílio na Palestina, comutado pelo Reich, em dezembro de 1940.Suas gravuras demonstram a violência, a agonia, o sofrimento. O ódio e a amplitude de um holocausto sem cores, mas com toda a intensidade. Suas gravuras sobre a morte e o assassinato de milhares de judeus e a bestialidade inconsequente da “Noite dos Cristais”, é aqui representada ressaltando as evidências da selvageria, entrepostas, lado a lado a características humanas e inumanas. Um lembrete cruel do sentimento de apatia comparado ao rastejo de animais famintos. As pobres criaturas interpelam por alimento, tal qual um ser humano reduzido à humilhação, ao lado de olhos fundos e cruéis da carne apodrecida pela alma.
A magreza das figuras desnudas contrasta ao ânimo alemão, diante de tamanha atrocidade. Presos e acorrentados diante da incapacidade física, está o homem vetado por ganância, diante de uma implícita menção às prisões e ao encarceramento, conceitos construídos dentro de uma jaula ainda maior: a condição
humana.
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Diante de cidades magnânimas e utopias, imersas em escuridão, estão as máquinas, mecanizando a humanidade e o contrato social. Esquecidos, os pequenos são o futuro da criatura inexplicável, o ser humano, que em tempos de guerra e de negritude visceral, encontra o tempo e a razão para ser feliz. O holocausto, como prega George Steiner, “é algo muito além de um episódio negro e nefasto, incompreensível do ponto de vista humanista. É a completa negação da humanidade.
Em retalhos assombros, repletos da mais espectral fisionomia, Lea desempenha uma memória funérea. Uma breve recordação. Sem dar uma palavra, ela lembra do destino de milhões. Momentos trágicos. Verídicos. Hamartías incorpóreas petrificadas. Pelo lápis e pelo papel, em tom de sombra – o contorno do sofrimento e da angústia. O caminho de Caronte pelos mares de incompreensão.
Muito além do que Artesã, Lea é antes de tudo, uma Mulher Sobrevivente. Alguém que em uma época dominada pelo silêncio, não hesitou em levantar a voz. Lutou contra a injustiça e elucidou o mundo sobre os horrores que presenciava. A terrível elegia do tempo, pôs em prosa, em suas mãos, uma artista – alguém que vai contra a maré. Lea Grundig, a opositora da Suástica. 
Fonte: Obvious.

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