sexta-feira, 9 de novembro de 2012

CAFUNÉ


Ela levantava os cabelos longos e suados da brincadeira. Segurava com as duas mãos um bolo de fios no alto da cabeça e desfazia todo o penteado que a sua mãe havia lhe feito antes da festa. Fazendo isso, deixava à mostra a penugem que envolve o pescoço e me lembrava em tudo a criança que também fui um dia.

Kids Dancing, New York, Helen Levitt, c. 1940
A festa já devia ter terminado - os músicos haviam se despedido, os salgadinhos gelavam esquecidos em pratos de plástico sobre as mesas vazias e somente alguns homens repetiam as histórias engraçadas do trabalho incessante de ser macho. Nós esperávamos do lado de fora, por que a noite era quente e a temporada de pernilongos ainda não estava inaugurada.
Já havíamos feito todo o possível para desvelar o novelo do tempo ocioso, mas os aviões cessaram, deixando o céu menos interessante, e até a mesa de sinuca havia encerrado suas possibilidades de entretenimento. Não restava nada além de esperar que Otávio finalmente voltasse para buscar Vera e as meninas e as levasse dali, para que assim, finalmente, a nossa noite pudesse seguir o curso normal que desembocaria em alguma boate onde poderíamos dançar para esquecer o tédio.
Henrique estava embriagado, mas isso não o impedia de continuar na penúltima cerveja morna enquanto eu tentava prestar atenção na conversa das crianças que era a única que me interessava ali. Foi então que ela chegou e pediu que eu fizesse novamente o penteado que inventei no nosso último encontro. Expliquei a ela a impossibilidade:
___ Não temos um elástico de cabelo, Mari.

Anna Riwkin-Brick Macmillan, 1966
Ela... Essa a quem tenho chamado por um único pronome feminino, pode se chamar Mariana. É filha de um colega de trabalho de Henrique, deve ter completado seis anos há alguns meses, não posso afirmar com convicção por que faltei à festa.
Não sou dada ao convívio infantil. Confesso que Mariana nunca foi minha criança preferida, penso que é até um pouco mal-educada. Contudo, nessa noite entediante, ela se tornou uma brisa leve em meio ao mormaço tedioso da situação, muito embora eu deva revelar que não percebi isso naquele momento. Mas, não me culpo, essas sutilezas nos passam despercebidas em noventa por cento das chances que tem de acontecer.
Mariana chegou até mim por puro ciúme. Sua irmã adormecera no meu colo e como a sono é o pai da discórdia, a menina resolveu que era tempo de dar boa noite a todos e fazer com que Luíza cedesse o desconforto do meu regaço a ela, sua irmã mais nova e sonolenta. Sem muita queixa, Luíza cedeu o lugar à Mariana que com ar de satisfeita me olhou nos olhos e disse:
____ Faz aquele cafuné que você me fez outro dia?
Por um breve instante, meu cérebro tentou vasculhar as lembranças atrás do tal dia sem nada encontrar, porém a resposta encefálica foi a da brevidade. Um cálculo rápido entre o tempo que eu levaria para discordar do pedido e informá-la do erro, comparado aos poucos minutos em que ela estaria adormecida entre os meus braços, me provou que a omissão não é um pecado tão grave.
Aceitei o pedido. Mariana se sentou no meu colo e acredito que percebendo o próprio erro, fez questão de deixar claro:
____ Aquele assim, que você passa os dedos nos meus cabelos e no meu pescoço.
Então, levantou os cabelos no alto da cabeça e eu me dediquei à tarefa de fazê-la dormir. Meu cálculo estava certo, minutos depois ela adormeceu. Felizmente, em pouco tempo Otávio chegou. Mariana em um salto acordou do cochilo, bem a tempo de repreender o rapaz por tomar banhos tão demorados e acabar com a água do planeta.
Romualdas Požerskis. The girl spotted dress. Vilnius, 1977.

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