O PRESENTE ESTÁ EM NOSSAS MÃOS [1]
Gerivaldo Neiva [2]
“Si eu tivé di vivê obrigado, um dia i antes dêsse dia eu morro”
Elomar Figueira Mello, violeiro e poeta.
Um dia, em uma bela manhã, recebi uma mensagem via Internet com o convite para ser o Patrono de uma turma de formandos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, a nossa querida UESB. Com surpresa, precisei ler com cuidado para confirmar a autenticidade da mensagem, pois a Internet tem de tudo um pouco e é preciso ter muito cuidado.
Confirmado o convite, transbordei de alegria e felicidade e o filme de uma vida inteira me veio à mente. No enredo desse filme, minha infância pobre no sertão da Bahia, a ida para Salvador, as primeiras lutas estudantis, a luta pela anistia aos exilados e perseguidos pela ditadura, pelas “diretas já”, o curso de Direito, a advocacia e a opção pela magistratura. Ao final desse filme, um traço foi presente em todos os momentos da minha vida: o inconformismo com a pobreza, a miséria e a injustiça!
No momento seguinte, passei a buscar razões para o convite. Por que eu? Ora, o Patrono é o advogado da Turma, é quem defende os novos profissionais perante a sociedade e seu discurso deverá destacar a importância do curso escolhido e da profissão dos graduados.
Eu, como já era do conhecimento da Turma, trazendo sempre comigo a rebeldia da juventude e a revolta com a absurda desigualdade social desse país, também não me conformo com o modelo de Poder Judiciário implantado no Brasil. Além disso, sou um crítico ferrenho do ensino jurídico que transformou uma das mais belas profissões em mercadoria e também crítico das correntes do Direito que querem minimizá-lo ao estudo das leis e técnicas em busca de uma decisão judicial, ou seja, a profissão que deveria estudar o Direito como o modelo de legítima organização social da liberdade, como pregava Roberto Lyra Filho, foi transformado pela modernidade em mera técnica de aprendizagem de legislação.
Assim, o mais belo e importante estudo para a condição de convivência harmônica entre os seres humanos, e destes com o planeta, foi transformado pela modernidade em um estudo desprovido de vida, com os olhos vendados para o mundo, desprovido de emoção e de humanismo, retirando dos profissionais do direito, com seu racionalismo e frieza, a sensibilidade e a possibilidade de fazer do Direito, não o símbolo da proibição e da repressão, mas o promotor da liberdade, da felicidade e da vida plena e abundante.
Como, portanto, pensando assim, poderia ser o Patrono, o defensor de uma turma de formandos em Direito? Como poderia dizer a eles que escolheram a melhor profissão? Como dizer à sociedade e seus pais que seus filhos seriam felizes e bem sucedidos com a profissão que escolheram?
Pois bem, pensando nisso, elaborei um discurso falso e cheio de ilusões para me desvencilhar facilmente do papel de Patrono. Ao final da escrita, lembrei-me de Luiz Alberto Warat, o maior filósofo do Direito da América Latina, ao pregar que todo final feliz é mentiroso. Assim, como não quero ser hipócrita, rasguei aquele discurso cheio de ilusões e resolvi lhes falar com serenidade e, sobretudo, trazendo-lhes minhas angústias, sofrimentos, dúvidas e inconformismos, depois de 6 anos de advocacia e mais de 20 anos na magistratura da Bahia.
Portanto, posso dizer a todos vocês que agora quem vos fala é um coração cheio de angústias, mas também – e isso não é contraditório – cheio de esperanças e de alegrias.
Sendo assim, sofro com as crianças desse país que já nascem como se marcadas para a subnutrição, para o analfabetismo, para a imundície de esgotos a céu aberto e abandono pelos poderes públicos.
Sofro com os jovens pobres e excluídos desse país que perambulam a esmo, sem sonhos e perspectivas, pelos becos e favelas, à espera de uma bala perdida, de um convite para a vida aparentemente fácil do tráfico ou para ser apenas mais um número na estatística da violência policial.
Sofro com os sem-teto que passam noites ao relento, adormecidos pela embriaguez e sonhando com um lar, sob o risco de ser queimado vivo por alguma mente deformada pelo consumismo, pelo egoísmo e insensibilidade que lhes ensinou esta dita sociedade civilizada.
Sofro com os sem-terra que buscam um pedaço de terra para plantar e produzir alimentos para sua família e para a cidade, que dormem com o medo do despejo e da morte, embora saibam mais do que todas as leis que a terra é o lugar sagrado, não como propriedade privada, mas como o lugar detentor dos recursos naturais, o lugar da produção de alimentos e da possibilidade única de continuidade da sobrevivência da espécie humana sobre o planeta.
Sofro com todos os presos provisórios, jogados em prisões que envergonham o mundo civilizado, sob o falso pretexto de garantia da ordem pública, à espera de um julgamento pelo Poder Judiciário, que não lhes reconhece, sequer, como pessoa humana e sujeito de direitos, mas como lixo a ser removido e escondido.
Sofro com este modelo de Poder Judiciário que venda os olhos para os poderosos, mas faz descer implacável sua espada contra os destituídos de riqueza e de poder.
Sofro com todos os explorados, excluídos, miseráveis, marginalizados e vilipendiados de todo o mundo.
Sofro, e ao mesmo tempo me regozijo, por fim, com todos aqueles que têm fome e sede de Justiça.
Todo este sofrimento, no entanto, me enche de esperanças e certezas de que nós, artesãos do Direito (não “operadores do Direito”, pois não lidamos com máquinas), temos em nossas mãos a mais bela profissão do mundo, pois temos a possibilidade de contribuir, com nossas ações e nosso trabalho, para amenizar o sofrimento das pessoas, para realizar a justiça, para construir uma sociedade livre justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, como está escrito em nossa Constituição.
Agora, por fim, posso me dirigir aos pais e a todos os presentes para defender esses graduados e a profissão que escolheram.
E digo, por fim, que somos, em verdade, privilegiados por estarmos vivendo uma era de grandes desafios. Estamos no olho do furacão e o futuro desse país, como a grande nação de todos que ainda precisa ser construída, depende de nós. Sobretudo, o presente dessa nação está em nossas mãos.
Como uma benção final, digo a todos que tenho o maior orgulho de ser o Patrono dessa Turma e que seremos companheiros, como disse Che Guevara, se formos capazes de nos indignarmos a cada vez que uma injustiça é cometida em qualquer lugar do mundo. Finalmente, na difícil e árdua jornada que lhes espera, quando se depararem com um conflito entre a Lei e a Justiça, não tenham a menor dúvida, não tenham o menor receio, de permanecerem sempre ao lado da Justiça.
Abraço fraternalmente cada um de vocês.
Contem sempre comigo!
Muito obrigado!
Gerivaldo Neiva.
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