A música é o palco onde se expressa o ritmo social: nela encontramos os valores, aceitos ou impostos, que regem todas as nossas relações. Encontramos os modelos: o que entendemos por heróis e por anti-heróis. A música é a grande foto do contexto onde ela nasce. Apresenta o que nós mesmos gostamos, respeitamos, desejamos...E o que já não aceitamos. Ousaria dizer que a música e o direito são medidores e tradutores de nós mesmos e dos nossos limites.
Mulheres de Atenas é uma música que Chico escreveu, com a magnificência que só um gênio da MPB poderia fazer, transcrevendo para um pedaço de papel um pedaço de nós, mulheres do Brasil, mulheres do mundo, mulheres de Atenas. Essa música sempre me provocou arrepios. Arrepios de nostalgia, um quase sofrer por compaixão, porque as mulheres de Atenas são atemporais e se encontram em todos os espaços.
A música é um pedido: Desperta mulher de Atenas! Liberta-te, não te deixe secar. A letra é brilhante, a estrutura medieval é riquíssima e a melodia parece adentrar pelos poros.
Chico faz uma costura entre a Ilíada e a Odisséia, ambas de Homero, duas das maiores obras de todos os tempos. Trata especialmente de Penélope e de Helena de Tróia, dois símbolos de mulheres.
Penélope, mulher de Ulisses, herói de Odisséia, como símbolo de fidelidade e dignidade frente a seu amado. Ela o espera durante os 20 anos de sua ausência.
Helena, que desperta a paixão de París, filho do Rei de Tróia, por quem é raptada deixando para trás Menelau, rei de Esparta, deu origem a guerra de Tróia e é o símbolo da beleza. Ela mantém o encanto sobre os homens, despertando o desejo deles de regressarem: “quando se entopem de vinho costumam buscar um carinho de outras falenas. Mas no fim da noite, aos pedaços, quase sempre voltam pros braços de suas pequenas Helenas”.
Não é necessário ser um doutor em “direitos das mulheres”, como eu me ocupo em ser, para compreender uma parte repulsante da nossa história – a nossa como um todo, desde sempre, em todos os lugares e culturas – de posição e função de mulher “coisificada”. Especialmente as mulheres de Atenas de hoje, que se colocam ou se deixam colocar na posição das mulheres de Atenas: aceitam ser, mesmo que não sejam mais obrigadas, mulheres no molde de Atenas, da Grécia antiga. Ou seja, mulheres que “vivem, sofrem, despem-se, geram, temam e secam”, que “não têm gosto ou vontade, nem defeitos nem qualidade. Têm medo apenas”.
Os valores cravejados na cultura contemporânea ainda são maculados com uma imagem de mulher perfeita nos moldes do patriarcado. “Uma mulher boa”, que cuida dos filhos, do marido, que trabalha fora, que tem renda, que seja feliz, que aceite, que não conteste, que se faça bela. Resumindo: a beleza, assim como a de Helena, para manter o amor do seu amado, e a fidelidade, como a de Penélope, para ser “digna” do amor dele.
Abrir mão do seu próprio ser como sacrifício legítimo para a função social que exerce. Essa é a grande ironia. Mulheres de Atenas é uma música pautada na ironia: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”. Quer dizer justamente o contrário: Cuidado mulheres, para não caírem no modelo das mulheres de Atenas! Mirem-se no exemplo e façam o contrário! Para aquelas que não se dão conta que vivem nesse modelo de séculos atrás, se deixando secar por seus amores, para que assim sejam amadas ou dignas, mesmo que esse amor seja só delas para eles.
Os homens de Atenas, ironicamente enaltecidos por Chico, os heróis bravos, orgulhosos e poderosos, guerreiros e procriadores, que se deliciam com as falenas (prostitutas, sereias...) são na verdade aventureiros infiéis e ausentes, muitas vezes agressivos, violentos e irresponsáveis.
Essa suposta supremacia masculina é resultado de uma distorção de valores. Uma divisão sexista, com leis que até pouco tempo atrás protegiam o homem como senhor da verdade e da honra, um direito que ainda está engatinhando para deixar de ser discriminatório e que foi mantenedor de uma cultura Ateniense.
É a nossa MPB, nossa música popular brasileira que pede para nós mesmas deixarmos de sermos mulheres de Atenas e que tem a sensibilidade de sentir que há muitas mulheres de Atenas em terras canarinhas. A música suplica, em nome de todos, para as mulheres de hoje: não se deixem secar!
Não haverá mais nenhum homem de Atenas, aventureiros infiéis e ausentes, agressivos, violentos e irresponsáveis, se não houverem mais mulheres dispostas a serem mulheres de Atenas.
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