SIMPLESMENTE MARIA.
Foi nos seios de Maria que eu mamei a esperança da sobrevivência. Foi nos seios dela onde eu adormeci tão puro de maldade quanto puro era o doce olhar que por inteiro me cobria. Foi junto ao peito. No calor do colo dela que eu aprendi a primeira prece. Quantas vezes o azul dos seus olhos derretia lágrimas por sobre o meu pequeno corpo? Poucas não foram as noites em que o seu soluçar me embalou o sono e a febre apiedada se esqueceu de mim.
Muitas e muitas vezes vi Maria choramingar a ausência do meu pai e quanto mais falta ele fazia, mais Maria me espremia junto ao rosto jovem e belo de mulher.
Foi ouvindo o palpitar daquele espezinhado coração que eu aprendi a compreender o tempo de cada coisa. O tempo do cultivo e do plantio, do colher e do armazenar para não faltar. O tempo de agradecer aos que, com ela, resistiram sem perder a fé no trabalho que premente se fazia.
Maria foi uma doce criatura. Não tinha sonhos, talvez nem tivesse vaidade. Era mulher de honra e de trabalho. De coragem e ousadia. Acordava cedo para madrugar na lida. Lavar, passar, cozinhar e cuidar para que os filhos não desgarrassem rumo aos perigos da rua, da marginalidade, dos vícios. Cuidava da ninhada como a galinha-choca dos ovos, cuida. Como a leoa da cria, a gata dos filhotes, como da roça, o lavrador.
Café da manhã, uniforme engomado;
Escola.
Almoço, marmita embrulhada;
Trabalho.
Café da tarde, jantar;
Formatura.
- Assim foi a vida sofrida de Maria que levada nos braços, quase carregada devido a artrose, adentra ao enorme pavilhão de uma universidade pública aonde orgulhosa v ê seu último filho, depois dos já formados, o mais novo, se tornar doutor.
- Missão cumprida, Maria.
Quantas e quantas noites tu sofrias ao lado dos filhos que em véspera de provas não dormiam?
Quantas orações ao te deitares tu rezavas para eles esquecendo-te de ti?
Quantas vezes tua barriga reclamou de fome enquanto um filho faminto, que chegava a noite do estudo e do trabalho, comia do pão o seu último pedaço?
Missão cumprida, sim. Tão cumprida que os teus dias de força e de coragem, de viço e de beleza, como provam as fotos amareladas em cada canto dessa casa, sucumbiram aos pés do tempo que pintou de rugas a bondade de tua face.
- Maria era o nome dela, que felizmente ainda vive.
Nome de valsa e de coragem, de conto de fada e resignação.
Nome precioso, de água pura de nascente, de céu azul e noite estrelada.
Nome de quero te amar enquanto vida eu tiver.
Nome doce, nome de mãe, que se esqueceu de ser mulher.
Silvio Afonso.
Imagem: Amamentação, obra de Picasso.
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