quinta-feira, 29 de março de 2012

Millôr, a generosidade de um gênio


A perda de Millôr Fernandes (1923 ou 1924-2012, ele dizia haver controvérsia sobre o ano de nascimento) chega a ser, sob muitos aspectos, ainda maior que a de Chico Anysio para a cultura brasileira, mas as duas nos atacam na mesma esquina, a da inteligência com a alegria, o que basta para tornar este março de 2012 um mês inesquecivelmente funesto. Para mim, existe ainda um agravante: com Millôr eu tive a sorte de ter contatos profissionais que, se não me permitem falar propriamente em amizade, enchem este momento de um luto mais sombrio e mais sentido. Não é à toa que o céu hoje está enfarruscado sobre o mar de Ipanema, bairro que “o grande filósofo brasileiro” – nas palavras do jornalista Sérgio Augusto – adotou precocemente em 1954, quando aquilo mal passava de um areal, e cuja mitologia ajudou a construir.
Pouco mais de três anos atrás, em novembro de 2008, quando, por encomenda da revista “Bravo!”, eu me encontrei com Millôr em sua cobertura-estúdio junto à hoje atarefadíssima praça General Osório, o gênio carioca já se movia com dificuldade, mas mentalmente conservava uma vivacidade e um fôlego que renderam muitas horas vertiginosas de conversa, piadas, maledicências, trocadilhos, mudanças bruscas de assunto, uma mistura de paraíso e inferno para qualquer entrevistador – paraíso pela riqueza de insights e frases lapidares, inferno pela extensão e profundidade de um material que depois precisaria ser penosamente editado e do qual eu não conseguiria aproveitar mais que uma pequena fração (o resultado está aqui).
Foi a única vez que encontrei Millôr ao vivo, mas não a primeira nem a última que conversamos. Isso ocorria e continuou a ocorrer de vez em quando, fosse em recados pela imprensa ou telefonemas eventuais, desde 2002, quando ele havia me recebido com generosidade rara, reiterada e pública entre os colunistas do extinto “Jornal do Brasil”, chegando a me atribuir uma autoridade em questões de língua portuguesa que, sobretudo naquela época, pertencia muito mais a ele.
Naquele dia de 2008, em seu estúdio, Millôr disse, com modéstia relativa, que será conhecido no futuro por “algumas frases”. Então aqui vão, como despedida, algumas frases proferidas naquela conversa por um frasista magistral que também foi cronista, cartunista, desenhista, artista plástico, dramaturgo, tradutor, pensador, poeta, filólogo, inventor do frescobol – e um grande etc.
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“Com a internet, cada um tem seu blog, e quando há um volume muito grande de gente praticando, tudo se abastarda. Quando se deliberou que não haveria mais métrica e rima na poesia, toda senhora de 50 anos começou a fazer poesia.”
“Dizem que o trocadilho é a mais baixa forma de humor, mas se você tirar o trocadilho de Shakespeare, ele desaparece. O Agrippino Grieco escreveu: ‘Menotti del Picchia, fecha a barguilha do teu nome!’ Isso é ótimo! Não dá para dizer de outra forma.”
“[O Barão de Itararé] tem meia dúzia de coisas, o marketing do Rio Grande do Sul e aquela bobeira fundamental: você diz que uma coisa é boa e as pessoas acreditam. Em São Paulo, houve um humorista popular muito bom, o Juó Bananere, que ninguém conhece.”
“Tudo que vira palhaçada é insuportável. Não gosto do Casseta e Planeta, que tem pretensão política mas é pornográfico. Prefiro o Zorra Total, que é maluquice mesmo.”
“No começo [anos 50 em Ipanema] era só peteca e mar, isto é, jacaré. No Arpoador começavam a chegar as primeiras pranchas, de dez metros. Um dia apareceu uma epessoa com uma caixa, que tinha dentro uma bola e uma raquete pesada. A gente batia e a bola voltava, como um boomerang. Chamava-se ‘La pelote basque sans fronton’ (pelota basca sem paredão). Depois a raquete já estava ali e apareceu alguém com outra bola. A gente pegava as bolas de tênis e esfregava com querosene, para deixá-las carecas. Nunca mais deixei de jogar frescobol. Cheguei a jogar muito bem.”
“Minha posição sobre a tecnologia é a seguinte: não tem revolução nem ideologia, nós estamos e sempre estivemos a reboque da tecnologia. A higiene foi inventada no início do século XX, e na França ainda não chegou. O celular mudou o mundo.”
“Não trabalho por dinheiro, mas sem dinheiro eu não trabalho.”
“O Lula ocupou seu espaço. Acho que o Fernando Henrique é intelectualmente pior, é o Lula em barroco.”
“Não acredito em obra, mas depois de 250 anos escrevendo, com aquele negócio de fazer uma frase hoje e outra amanhã, tenho muita coisa, muito pensamento espalhado por aí. ‘Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem’, por exemplo. É evidente que algumas dessas frases persistirão.
Fonte Veja

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