Já li muitos livros sobre psicologia da educação, sociologia da educação, filosofia da educação, didática – mas, por mais que me esforce, não consigo me lembrar de qualquer referência à educação do olhar ou à importância do olhar na educação.
1 – Van Gogh tem uma delicada tela que representa esta cena: o pai, jardineiro, interrompeu seu trabalho, está ajoelhado no chão, com os braços estendidos para a criança que chega, conduzida pela mãe. O rosto do pai não pode ser visto. Mas é certo que ele está sorrindo. O rosto-olhar do pai está dizendo para o filhinho: «Eu quero que você ande». É o desejo de que a criança ande, desejo que assume forma sensível no rosto da mãe ou do pai, que incita a criança à aprendizagem dessa coisa que não pode ser ensinada nem por exemplo e nem por palavras.
2 – Segundo Nietzsche a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. É através dos olhos que as crianças tomam contacto com a beleza e o fascínio do mundo. Os olhos têm de ser educados para que a nossa alegria aumente. As crianças não veem « a fim de». O seu olhar não tem nenhum objetivo prático. Veem porque é divertido ver. Alberto Caeiro sabia tudo sobre o olhar das crianças…
3 – Educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu. O educador diz: «Veja!» – e ao falar, aponta. O aluno olha na direcção apontada e vê o que nunca viu. O seu mundo expande-se. Ele fica mais rico interiormente. E, ficando mais rico interiormente, ele pode sentir mais alegria e dar mais alegria – que é a razão pela qual vivemos.
4 – Já li muitos livros sobre psicologia da educação, sociologia da educação, filosofia da educação, didática – mas, por mais que me esforce, não consigo me lembrar de qualquer referência à educação do olhar, ou à importância do olhar na educação, em qualquer um deles.
5 – «O sentido está guardado no rosto com que te miro» é um verso da poetisa brasileira Cecília Meireles. Não te miro com os meus olhos. Te miro com o meu rosto. É o rosto que desvenda o mistério do olhar. O rosto da mãe revela à criança o segredo do seu olhar. E o rosto da criança revela à mãe o segredo do seu olhar. O rosto do professor revela ao aluno o segredo do seu olhar.
6 – «O meu lábio zombeteiro faz a lança dele refluir»: dito pela Adélia Prado. Lança? Falo ereto. Mas o lábio zombeteiro a altera. A lança, humilhada, se encolhe, torna-se incapaz do ato do amor. Há uma relação metafórica entre a lança fálica e a inteligência.
7 – Como a lança fálica, a inteligência ou se alonga e se levanta confiante para o ato de conhecer ou se encolhe, flácida e impotente. O olhar de um professor tem o poder de fazer a inteligência de uma criança ficar ereta ou flácida… O lábio zombeteiro do professor faz a inteligência do aluno refluir.
8 – Eu, menino, tinha grande prazer em ver figuras. Nos tempos da minha infância, livros de figura não se encontravam prontos para serem comprados nas livrarias. Eu mesmo fiz um álbum de figuras. Era um caderno grande no qual fui colando figuras de cachorros. Minha mãe não gostava de cachorros. Nunca pude ter um. Tinha inveja dos meninos que tinham. Fazendo o álbum de cachorros eu realizei, de alguma forma, o meu desejo.
9 – A criança de olhar vazio e distraído: ela não aprende. Os psicólogos apressam-se em diagnosticar alguma perturbação cognitiva. Mas uma outra hipótese tem de ser levantada: a inteligência dessa criança foi enfeitiçada pelo olhar de um adulto que a intimidou. Uma criança intimidada e humilhada não aprende.
10 – «Formatura»: «formar» é colocar na forma, fechar. Um ser humano «formado» é um ser humano fechado, terminado. Educar é abrir, «desformar». Uma festa de «desformatura…»
11 – Escrevo sobre educação porque amo as crianças e os jovens, seres ainda abertos, que enfrentam o perigo de serem «fechados». Joseph Knecht, o herói trágico do livro de Hesse «O jogo das contas de vidro», no final da vida desejava apenas educar uma criança ainda não deformada pela escola.
12 – Educação não é a transmissão de uma soma de conhecimentos. Conhecimentos podem ser mortos e inertes: uma carga que se carrega sem saber sua utilidade e sem que ela dê alegria. Educar é ensinar a pensar, isso é, a brincar com os conhecimentos, da mesma forma como se brinca com uma peteca.
13 – Quando o conhecimento é vivo ele se torna parte do nosso corpo: a gente brinca com ele e se sente feliz ao brincar. A educação acontece quando vemos o mundo como um brinquedo para os sentidos e o pensamento, e brincamos com ele como uma criança brinca com a sua bola. O educador é um mostrador de brinquedos…
14 – Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim não morre jamais.
Rubem Alves
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Agradeço sua participação que é muito importante para mim.