"Um país se faz com homens e livros."
Monteiro Lobato
A leitura é imprescindível para a formação sociocultural de um indivíduo. São muitas as campanhas de incentivo à leitura em todo o país. Mas o que é leitura afinal? Será que ler se restringe ao simples ato de decodificar símbolos impressos?
O verbo ler, etimologicamente, deriva do latim lego/legere, que significa recolher, apanhar, escolher, captar com os olhos. Desta última acepção, estabelecemos o conceito primordial de leitura, que é ´pronunciar em voz alta as letras grafadas no papel´. Mas imaginemos a seguinte situação: um sertanejo, considerado analfabeto, por não ter tido acesso à escola durante toda sua vida, reconhece os sinais da natureza e pode determinar o tempo de estiagem, de chuvas etc. Então verificamos que o sertanejo lê e interpreta os sinais da natureza, baseado apenas na sua vivência de mundo.
A conceituação
Portanto o conceito de leitura se expande, saindo da mera expressão oral de símbolos gráficos impressos e passando a ser a ´decodificação de signos, símbolos´. Observemos a definição de signo, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: ´designação comum a qualquer objeto, forma ou fenômeno que remete para algo diferente de si mesmo e que é usado no lugar deste numa série de situações´. Assim, o canto do sabiá, para o sertanejo, ultrapassa os limites de seu significado passando a remeter a algo diferente, como o sinal de que virá chuva em breve. Já um agrônomo utilizaria outros elementos para determinar os períodos de chuva ou de seca, pois sua formação acadêmica proporcionou-lhe tal possibilidade. O conceito de ler abrange também o de interpretar e o de compreender, pois tanto o profissional letrado quanto o trabalhador rural analfabeto, a partir de leituras diferentes, podem decodificar certos sinais da natureza e estabelecer o calendário das atividades agrícolas.
A polissemia
O conceito moderno de leitura implica ´atribuir voluntariamente sentido à escrita´. Se escrevermos a palavra Carnaval, assim, com inicial maiúscula, imediatamente lembraríamos da festa que antecede o período da Quaresma. Já um filólogo relacionaria a palavra a carnelevarium - ´adeus à carne´ em latim.
Houve um momento na história da leitura em que ler significava pronunciar em voz alta as letras grafadas no papel. No entanto, as teorias mais recentes concebem o ato de ler como atribuição voluntária de sentido à escrita, entendendo a leitura também como prática social. Vejamos o que alguns autores escrevem sobre o conceito de leitura.
Freire (1982) propõe uma concepção de leitura que se distancia dos tradicionais entendimentos do termo como sonorização do texto escrito, defendendo que a leitura começa na compreensão do contexto em que se vive: a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.
Múltiplas visões
Foucambert (1994) define a leitura como a formulação de um juízo sobre a escrita no ato de questionar e explorar o texto na busca de respostas - textuais e contextuais - que geram uma ação crítica do sujeito no mundo ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que certas respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma resposta que integra parte das novas informações ao que já se é.
Resende (1993) também concebe a leitura como possibilidade de abertura ao mundo e caminho para um conhecimento mais aprofundado do leitor sobre si mesmo: A leitura é um ato de abertura para o mundo. A cada mergulho nas camadas simbólicas dos livros, emerge-se vendo o universo interior e exterior com mais claridade. Entra-se no território da palavra com tudo o que se é e se leu até então, e a volta se faz com novas dimensões, que levam a re-inaugurar, desse modo, o que já se sabia antes.
A letra libertária
Numa escola em que todos os educadores se ocupassem da formação de leitores com as características que acabamos de mostrar, as atividades de leitura/escrita seriam atos libertadores, assegurando que perguntas e respostas pessoais passem a fazer parte do programa. Numa escola assim, a leitura seria um instrumento do processo de humanização, uma vez que construir sentidos significaria construir respostas pessoais para a edificação de um mundo humano, considerando nessa tarefa as idéias, os sonhos, os sentimentos e a imaginação do sujeito leitor em diálogo com outros homens. Sabemos que inúmeros problemas vêm contribuindo para que a escola não esteja vencendo o desafio de promover o letramento da parcela da população que consegue chegar a ela. Tanto a evasão quanto os baixos índices de aproveitamento escolar detectados pelos testes de avaliação do ensino básico (SAEB) se devem, entre outros fatores, a uma compreensão equivocada e limitada do conceito de texto.
Geralmente, no contexto escolar, o texto não é concebido como representação simbólica das produções humanas nas mais diversas práticas sociais. Além disso, há também uma incompreensão do significado do ato de ler, reduzido à tarefa de simples reconhecimento de um único sentido para o texto. Tal redução, que dissocia as atividades de leitura das práticas sociais comunicativas, acaba por produzir um ´modelo escolar´ de utilização do livro. Como resultado, os atos de leitura efetivados no espaço escolar revelam-se como singularidades estranhas, não se repetindo na vida cotidiana.
A realidade escolar
Nesse contexto, a questão dos materiais de leitura é crucial. Trata-se, em linhas gerais, da qualidade dos textos de que o aluno dispõe para constituir-se leitor. É bem verdade que, na tradição da escola brasileira, o único material escrito com que o aluno tem oportunidade de convívio prolongado é o livro didático. Entretanto, em função de suas conhecidas limitações, a utilização do livro didático precisa ser redimensionada de forma a assegurar que seu uso contribua efetivamente para o alargamento da visão de mundo do aluno, possibilitando-lhe uma leitura mais lúcida de si mesmo e do mundo que o cerca.
Cabe ao educador, portanto, a tarefa de avaliar criticamente o livro didático, a fim de poder superar as limitações do material pedagógico com que trabalha. Por melhor que seja o livro didático, o educador sempre necessitará enriquecê-lo com a crítica dos conteúdos e da abordagem dos temas propostos, através do confronto dos posicionamentos do livro didático com outros textos.
Importa destacar o papel fundamental que o educador desempenha na formação do leitor e sua responsabilidade no preenchimento das lacunas presentes no livro didático. Além disso, a mediação do educador é também decisiva no encaminhamento da reflexão sobre as questões fundamentais que devem permear o cotidiano da sala de aula: o que é ler? Ler para quê? Ler para quem? O que ler? Como ler?. É justamente a postura crítica e aberta do professor que possibilitará um trabalho diferenciado e com perspectivas de sucesso. Esse posicionamento reafirma a exigência de o professor trazer para a sala de aula os diferentes tipos de textos que circulam socialmente, sejam textos ficcionais ou não ficcionais, uma vez que é pelo confronto com temas e enfoques variados que o aluno vai construindo seus pontos de vista sobre as questões vitais com que se defronta. Tal confronto de textos oferece a possibilidade da emersão de um leitor crítico. Os textos ficcionais, por exemplo, possibilitam a constituição do sujeito-cidadão, na medida em que, além de funcionarem também como fonte de informação, estimulam e oferecem ao aluno a possibilidade de uma leitura plural e mais abrangente, levando-o a interrogar-se sobre si mesmo e sobre o mundo. Ao mesmo tempo, permitem a fruição da dimensão lúdica da linguagem.
A ação interdisciplinar
Vale destacar, também, que a formação do leitor requer um trabalho de natureza interdisciplinar, uma vez que não se pode construir um posicionamento crítico a partir de uma única perspectiva. Dessa forma, é necessário que um tema, ao ser trabalhado em sala de aula, seja abordado pelos ângulos das diversas áreas do conhecimento, a fim de permitir que idéias e valores possam ser comparados e criticados. Isso significa que a leitura de um texto não se esgota nele mesmo, mas deve abrir-se ao diálogo com outros textos, estabelecendo-se um jogo intertextual indispensável ao processo de formação do leitor.
Esse jogo intertextual estabelece, por sua vez, um jogo interdisciplinar. Assim, um poema, por exemplo, não constitui um material de leitura que, restrito às aulas de Língua Portuguesa, pode e deve compor o conjunto de textos trabalhados em aulas de História, Geografia, Ciências.... É possível (e talvez muito mais agradável e produtivo) que um estudo sobre anatomia seja inaugurado com o poema ´Mapa de Anatomia: o olho´, de Cecília Meireles. Ou que uma aula de História sobre a Região Nordeste seja enriquecida com a leitura de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Ou que uma aula de Geografia sobre a construção do espaço pelo homem seja trabalhada a partir da música ´Sobradinho´ , de Sá e Guarabira.
SAIBA MAIS
FREIRE,Paulo. A importância do ato de ler. Cortez, 1982
CHARTIER, A. M. & HEBRARD, J. Discurso Sobre Leitura: 1880-1980. Ática, 1995
Cf. KLEIMAN,A. B. (org.) Os Significados do Letramento. Mercado de Letras, 1995
FOUCAMBERT,J. A Leitura em Questão. Artes Médicas, 1994
RESENDE, Vânia Maria. Literatura Infantil e Juvenil. Vivências de leitura e expressão criadora. Saraiva, 1993
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