domingo, 6 de março de 2011

Mario Lago era frequentador assíduo do Teatro Municipal desde seus sete anos de idade, sabiam?

Revista Brasileira de Ciências Sociais

Print version ISSN 0102-6909

Rev. bras. Ci. Soc. vol. 13 n. 38 São Paulo Oct. 1998

doi: 10.1590/S0102-69091998000300014 

Entre biografia e história

Mônica VELLOSO. Mário Lago: boemia e política. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997. 404 páginas.

Santuza Cambraia Nave

Já no início da leitura de Mário Lago: boemia e política percebe-se a sintonia entre a autora e o biografado. A começar pelo fato de que a competência demonstrada por Mônica Velloso para exercer o ofício de historiadora não lhe retira a sensibilidade para lidar com o objeto investigado, respeitando-lhe as veleidades e idiossincrasias. Assim, por exemplo, como nos é revelado desde o início do livro, Mário Lago sempre desenvolveu uma aversão a qualquer tipo de linguagem — acadêmica, política ou artística — que se caracterizasse pela obscuridade e se afastasse do registro coloquial, principalmente o do cotidiano das ruas do Rio de Janeiro. Como se temesse melindrar a figura do biografado, a autora evita o uso de termos acadêmicos e de recursos estilísticos mais formais, optando pela adoção de um tom mais familiar, afinado com o gosto de Mário Lago.
Mas a historiadora arguta aparece, sem dúvida, nas questões pinçadas da trajetória profissional de Mário Lago que ajudam a traçar, junto com a biografia do artista, alguns pontos que marcaram o debate cultural deste século. Um dos temas ressaltados pela autora refere-se à tomada de posição de Mário Lago com relação aos embates sobre a "cultura erudita" e a "popular", um conflito vivenciado pelo artista no próprio ambiente familiar. Assim, por exemplo, sabe-se que Mário, desde os sete anos, não só era freqüentador assíduo dos concertos do Teatro Municipal como também, a partir desta idade, inicia seus estudos de piano com Lucília Villa-Lobos. A entrada na adolescência, entretanto, o faz vislumbrar a possibilidade de uma vida menos disciplinada do que a do virtuose, resignado a um estilo ascético, com o tempo totalmente devotado aos estudos e o espaço confinado à sala de música. São vários os apelos vindos de fora, como a pelada com os amigos, a sociabilidade de praia, e mesmo o samba que começa a se desenvolver na cidade. Mário reage, portanto, às intenções "civilizatórias" da família, comprometendo-se radicalmente com o "popular". Esta tomada de posição reaparece em vários momentos de sua biografia.
Quando trabalha como revistógrafo, por exemplo, Mário assume profundamente a vocação de artista popular, comprometendo-se com a tradição do humor e do improviso inaugurada no teatro por figuras como Procópio Ferreira. Ao invés de se atrelar ao script, atores como Procópio recorriam aos "cacos", isto é, à arte de reinventar sempre um novo texto à medida que o artista interage com a platéia. Nos anos 30 e 40, como nos mostra Mônica Velloso, criam-se classificações rígidas na crítica teatral, a partir da distinção entre o "teatro sério" e o "cômico". Atribuem-se ao primeiro todas as qualidades de uma arte "erudita" e "elevada", enquanto o segundo é associado ao "popularesco" e ao "baixo". As peças de Mário, naturalmente, eram consideradas de mau gosto, já que ele usava todos os ingredientes populares. E é curioso, no contexto do Estado Novo, o fato de as restrições ao "popularesco" não ficarem apenas por conta das autoridades ligadas ao Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP. Também os intelectuais modernistas, como Manuel Bandeira, Portinari, Di Cavalcanti e Villa-Lobos, entre outros, ao aderirem à proposta de Os Comediantes — grupo teatral que, em sintonia com algumas vanguardas européias, valorizava não só a fidelidade ao texto original como também o apuro formal e o trabalho de direção —, reprovavam a maneira espontânea de se fazer teatro de revista. Em meio a esse debate, Mário sempre se posicionava. Se não era contrário ao aprimoramento técnico, achava que ele não deveria, no entanto, se manter em desacordo com a nossa singularidade. Até que ponto, pensava, a modernidade estética se mostrava compatível com a nossa realidade de "bocas desdentadas"?
Esta busca de uma linguagem teatral adequada ao cotidiano aparece desde o final dos anos 10 com a chamada "geração Trianon", comandada por Oduvaldo Vianna. Se não recorria ao improviso, como se fazia no teatro de revista, Oduvaldo Vianna promoveu inovações ao substituir a fala dos atores à maneira portuguesa pelo sotaque corrente. E é justamente com este autor teatral que Mário Lago inicia a sua carreira de ator de radioteatro, na década de 40. A experiência no rádio vai exigir não só o desenvolvimento de uma nova linguagem — que explora mais a oralidade do que a representação cênica exigida no palco — como também uma grande atualização por parte dos atores, procedentes quase todos do teatro, para adaptarem-se ao novo veículo. Tal como os cantores populares dos anos 30, que tiveram de lidar com as técnicas de apresentação e gravação surgidas no período, os artistas de radioteatro deparam-se com um outro sistema de comunicação, em que se destaca o microfone, que os obriga a uma completa atualização.
Mário assume uma atitude inusitada nos anos 40, ao tentar conciliar a defesa da linguagem coloquial na radionovela com um didatismo nacionalista, que defendia o uso do rádio para a educação das massas. Os ideólogos do rádio, nos seus primórdios — início dos anos 20 —, imbuídos de um projeto construtivo, buscaram uma linguagem "elevada" para este novo veículo. Desse modo, a programação, no início, consistia de palestras de teor instrutivo ou moralizante e de músicas da tradição "erudita". Quando, na década seguinte, o rádio passou a ser usado como veículo de entretenimento, divulgando principalmente a música popular tocada no Rio de Janeiro, sofreu críticas acirradas de músicos e musicólogos modernistas. De uma certa forma, ao adotar este procedimento, Mário Lago se antecipa aos intelectuais dos anos 50 que, reunidos em torno do Centro Popular de Cultura (CPC), propõem uma arte radicalmente comprometida com o povo. A idéia básica é a de se adotar uma linguagem clara e sedutora, que não apenas seja entendida pelo público mas que também o alicie para as causas políticas em questão.
Nos anos 50, Mário Lago se vê às voltas com a televisão, a novidade da época. Mais uma vez o ator é obrigado a se adaptar a uma nova linguagem cênica. A primeira experiência se dá num programa de teledramaturgia seriada da TV Tupi, denominado Câmera 1. Em seguida ele passa a trabalhar no Teatro Moinho de Ouro, da TV Rio. Mas uma e outra experiência na televisão, ainda sem o videoteipe e com um equipamento bastante precário, o levavam a lançar mão da velha técnica teatral do improviso. E apesar de todas as restrições que passou a fazer à televisão mais industrializada e menos artesanal dos anos 70, em que se teria substituído, segundo ele, o espírito de equipe por uma postura mais individualista, Mário assumiu a sua defesa nos debates da época. Questionava-se, neste momento, a participação dos intelectuais nas novelas, gênero "alienado" por excelência. Mário atualiza a sua antiga proposta de fazer arte para o povo em função da nova realidade engendrada pela televisão. Tratava-se, agora, de um veículo que atingia milhões de pessoas, e este fenômeno não poderia ser ignorado pelos intelectuais progressistas. Ao invés de negar esta realidade impactante, os artistas deveriam ocupar o espaço televisivo para modificá-lo e exercer a atividade crítica. Ao adotar essa postura, Mário mostra-se coerente com todo um projeto de "esquerda" do final dos anos 70, em que se previa a infiltração dos intelectuais esquerdistas nas instituições estatais e nos meios de comunicação. É desse modo que se explica, por exemplo, a absorção pela TV Globo, no início dos anos 80, de vários artistas oriundos do CPC e dos teatros de Arena e Opinião, dos anos 60, como Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Ferreira Gullar, Vianninha, Paulo Pontes e o próprio Mário Lago, entre outros.
Mário formou-se em Direito mas nunca exerceu a profissão. Em compensação, a passagem pela Faculdade Nacional de Direito lhe rendeu um forte e duradouro vínculo com o Partido Comunista, além de várias prisões, do período do Estado Novo ao do regime militar implantado no país em 1964. O ranço marxista, que demonstrava em algumas avaliações da cena cultural ou social, não o impediu, entretanto, de exercer a reflexão crítica, assim como não tolheu o seu senso crítico. Um dos momentos altos desta biografia é, por exemplo, a passagem em que Mário avalia sua experiência na União Soviética, em 1957, onde esteve a convite da Rádio Moscou, para participar da reestruturação do programa Conversando com o Brasil, do qual participavam artistas e intelectuais brasileiros.Mas os programas radiofônicos produzidos aqui, que Mário levou em sua bagagem, não foram apreciados pelos russos, que os qualificou de "burgueses" e "decadentes". De maneira semelhante, a avaliação que Mário Lago fez da União Soviética não foi das melhores. Se as condições materiais iam bem, as culturais nem tanto, pois pecavam, segundo ele, por excesso de gravidade e autoritarismo.
Mário Lago atuou como ator, compositor, jornalista, escritor e, apesar da decepção com a experiência soviética, nunca abandonou a militância política. Essa faceta sua nunca o impediu de freqüentar assiduamente os cafés do Rio de Janeiro, onde cultivava a vocação de boêmio. Sua atitude aberta para com o mundo, pelo que se depreende dos relatos, remonta à sua socialização no Rio de Janeiro, desde o início da adolescência, que inclui tanto os professores anarquistas do Colégio Pedro II, onde estudou, quanto as prostitutas que compunham a paisagem vespertina da Lapa. Mário Lago jamais se confinou a um único reduto — político ou artístico —, pautando-se pelo ecletismo, evitando autodefinições excludentes e tentando fruir das várias possibilidades que a vida lhe ofereceu. Mônica Velloso conseguiu captar este aspecto multifacetado do artista-militante. Ao fazê-lo, abriu também novas possibilidades em sua trajetória profissional, mostrando-se capaz de conciliar o texto histórico com o biográfico.


SANTUZA CAMBRAIA NAVE
é professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-RJ e da Universidade Cândido Mendes.

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