Escondida no extremo meridional do Saara encontramos a lendária cidade de Timbuktu, guardiã de milhares de manuscritos científicos antigos que prometem mudar o modo como olhamos para a história da astronomia. Depois de sobreviverem durante séculos à destruição e pilhagem, o perigo está agora na ponta das metralhadoras Kalashnikov, seguradas por fundamentalistas religiosos.
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Fundada há quase 900 anos, por nómadas
tuaregues, no Norte do actual Mali, Timbuktu acabou por se tornar num dos principais entrepostos comerciais para as caravanas que atravessavam o deserto do
Saara, carregadas de ouro, sal, marfim e escravos. Entretanto, e ao longo das rotas comerciais que percorriam, também viajaram eruditos, académicos e estudiosos, todos eles munidos de livros, manuscritos e muitas ideias. O objectivo que os unia era o de trocar entre si os conhecimentos que traziam.
Não tardou que inúmeras bibliotecas prosperassem pela cidade, com homens dedicados ao intricado processo de copiar à mão os livros que os viajantes traziam. Segundo algumas estimativas, o total de livros que a cidade chegou a acomodar foi um dos maiores que até então existiu, apenas superado pelos da antiga
Biblioteca de Alexandria.
Deste modo, e antes de o Renascimento deixar a sua marca na Europa, Timbuktu conseguiu ganhar renome, no mundo islâmico, como um dos grandes epicentros de conhecimento científico e de estudos religiosos. Tanto assim foi que, já no século XII, foram aí criadas três universidades de prestígio e cerca de 180 escolas corânicas. Só a principal universidade, durante o seu período de apogeu, chegou a acolher cerca de 25 mil estudantes, de origem africana ou árabe.
Ouro, conhecimento e espiritualismo. Tudo isto, combinado entre si, deu origem, no século XV, a uma efervescência comercial, cultural e intelectual sem paralelo na região, colocando Timbuktu ao nível de algumas das grandes cidades da Europa ou Médio Oriente.
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Mas a prosperidade acabou por ter um fim. Em 1591, um exército de tropas marroquinas, sob a liderança do paxá Mahmud ibn Zarqun, invadiu e pilhou Timbuktu, estripando-a de todas as suas riquezas. Só que o desastre não se ficou por aqui. As bibliotecas, onde estava a maior parte dos livros, acumulados ao longo de séculos, foram reduzidas a cinzas e apenas uma pequena parte do espólio se salvou. Os eruditos e os académicos que resistiram ao invasor foram chacinados e os sobreviventes deportados para as cidades de Fez e Marraquexe, para ficar ao serviço do paxá marroquino.
Económica e intelectualmente arruinada, Timbuktu entrou paulatinamente em declínio, até cair no esquecimento. Em finais do século XIX foi colonizada pelos franceses, ficando em 1960 sob influência do recém-independente
Mali. Longe vão os tempos em que uma fila indiana de camelos, carregados de produtos e riquezas, fluíam incessantemente pela cidade.
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No total, estima-se que tenham sobrevivido cerca de 700 mil documentos, estando eles nas bibliotecas privadas de algumas famílias ou guardados na grande biblioteca pública de Timbuktu.
Este espólio foi um dos primeiros a ser inscrito no Programa Memória do Mundo, da
UNESCO, com o objectivo de identificar e preservar documentos e arquivos de grande valor histórico. Em 1998, a cidade acabou mesmo por ser reconhecida como Património Mundial da Humanidade.
Fez-se ciência na África Subsaariana
Antes de se começar a estudar os manuscritos de Timbuktu, quase ninguém acreditava que a África Subsaariana tivesse estado, alguma vez, associada ao conhecimento astronómico que brotou, ao longo de milénios, em lugares como a antiga Mesopotâmia, a Índia, a China ou então nas cidades da Grécia Antiga. No Médio Oriente, entre os séculos VIII e XVI, os académicos islâmicos foram fortemente influenciados pelos textos gregos e pelas
investigações desenvolvidas pelos cientistas do mundo árabe. O conhecimento aqui produzido, assim como os textos traduzidos do grego para o árabe, acabaram por dar aos cientistas europeus do
Renascimento as bases de que tanto necessitavam para novos e revolucionários conhecimentos – incluindo a descoberta de que a Terra orbita o Sol e não o contrário –, abrindo as portas para uma nova forma de ver o Cosmos.
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Em 2006, uma equipa composta por investigadores da Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul) e da Universidade de Bamako (Mali) deu início a um projecto que tentou desmistificar a percepção (ocidental) de que as civilizações a sul do Saara nada construíram em termos de conhecimento científico. O objectivo passou por traduzir e analisar o conteúdo científico dos manuscritos de Timbuktu.
Ao que tudo indica, os estudiosos e os intelectuais da antiga cidade conseguiram criar todo um conjunto de conhecimentos próprios, no campo da astronomia. E isto sem que tivessem estabelecido qualquer contacto com o desenvolvimento científico que entretanto desabrochava na Europa renascentista. A base para algumas das investigações, contudo, residia ainda nos antigos textos gregos, pelo que os modelos utilizados ainda tinham a Terra como centro do Universo. Mesmo assim, e em alguns dos manuscritos, datados de há mais de 600 anos, podemos encontrar diversos e belíssimos diagramas que nos mostram as órbitas dos planetas, os quais só puderam ser desenhados através de complexos cálculos matemáticos. Alguns fenómenos astronómicos, como é o caso de uma chuva de meteoritos em 1583, encontram-se igualmente descritos.
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Mas a religiosidade também tinha o seu papel como fonte de saber e descoberta. Para onde tinham os crentes de se virar caso quisessem contemplar
Meca durante as suas orações? Para que lado deveriam estar orientadas as suas mesquitas? A distância entre Timbuktu e a cidade santa do Islão é enorme, pelo que a tarefa obrigou ao desenvolvimento e utilização de diversos algoritmos e instrumentos, capazes de estabelecer as localizações dos dois lugares. A par disto, conseguiram também determinar quais os períodos exactos do dia em que deveriam ser feitas as orações. Neste caso – e uma vez que os relógios que hoje em dia usamos estavam muito longe de serem inventados –, o uso da
trigonometria foi fundamental, permitindo descobrir a que período do dia correspondia determinada posição do Sol no céu.
Para os mais esotéricos, havia ainda o contributo para as predições astrológicas. “O conhecimento sobre as movimentações dos planetas, a importância de prever onde eles iriam estar e onde estavam naquele momento, foi motivada pela astrologia”, referiu na altura o investigador Brian Warner, da Universidade da Cidade do Cabo, à revista New Scientist. Esta necessidade levou à construção de observatórios astronómicos na cidade e à compilação de muitos livros dedicados à astrologia.
© Wikipedia, manuscritos de astronomia e matemática, Timbuktu.
Astronomia, botânica, medicina, biologia, química, matemática, climatologia, óptica, geografia, tratados políticos, jurisprudência e até astrologia. As áreas sobre os quais versam os antigos textos são várias. Mas os que se referem à astronomia são particularmente fascinantes, motivo pelo qual se coloca a questão sobre se não é legítimo inserir o nome de Timbuktu na história da ciência e da astronomia. Segundo o astrofísico Thebe Medupe, também da mesma universidade, “uma das razões para os africanos subsaarianos estarem sub-representados na ciência é porque não se revêem nos livros de ciência que lêem”. Um argumento forte e que deu alento à tarefa (nada fácil) de tradução e análise dos milhares de textos que existem.
O perigo vem agora do fundamentalismo
Escritos em delicadas folhas de papel, o estado de conservação dos textos deteriorou-se ao longo dos séculos devido às flutuações climatéricas, à humidade, ao pó e aos grãos de areia. Algo perfeitamente normal tendo em conta que se tem como companhia, ali mesmo ao lado, o Saara. Neste momento, o mais importante é manter os documentos no estado em que se encontram, para mais tarde serem estudados.
© Wikipedia, manuscritos de astronomia - tabelas, Timbuktu.
Contudo, e nos últimos anos, os manuscritos estão à mercê de uma nova força destruidora: o fundamentalismo religioso. A ameaça é tão séria que a UNESCO colocou a cidade, em 2012, na lista negra do Património Mundial da Humanidade em Perigo.
Muitos dos documentos, que ainda estão em Timbuktu, mantiveram-se escondidos em cavernas no deserto ou enterrados debaixo de algumas casas, num esforço, que tem durado várias gerações, para as proteger dos invasores marroquinos e europeus que por ali passaram ou de outros potenciais perigos. A tarefa tem ficado a cargo de algumas famílias da cidade, numa devoção titânica destinada a preservá-los para o futuro. E até agora, pode-se dizer que têm razão para desconfiar do futuro.
Timbuktu, uma cidade exótica que figura na lista da UNESCO como Património Mundial da Humanidade (UNESCO, F. Bandarin).
Em Abril de 2012, o grupo rebelde e islâmico
Ansar Dine tomou de assalto Timbuktu. A acção de conquista ocorreu depois de vários meses de convulsão política, com o Norte do Mali, dominado pelos tuaregues, a pedir a secessão. O problema é que este grupo independentista, armado de metralhadoras Kalashnikov , decidiu seguir à regra uma versão mais austera do movimento
Salafista, ligado ao Islão. O que significa que não são muito dados à tolerância religiosa e cultural.
Um dos resultados foi a destruição dos mausoléus de diversos santos, muitos deles sob proteção da UNESCO. O motivo para a destruição, segundo o Ansar Dine? A idolatria
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