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sábado, 9 de dezembro de 2017

Dialética da inveja - OLAVO DE CARVALHO


A inveja nasce de um conflito insolúvel entre a aversão a si mesmo e o anseio de autovalorização, de tal modo que a alma, dividida, fala para fora com a voz do orgulho e para dentro com a do desprezo, não logrando jamais aquela unidade de intenção e de tom que evidencia a sinceridade. Por isso ela é o mais dissimulado dos sentimentos humanos.

A gente confessa ódio, medo, ciúme, tristeza, cobiça. Inveja, nunca. A inveja admitida se transmutaria em competição franca ou em desistência resignada. A inveja é o único sentimento que se alimenta de sua própria ocultação. Ela é uma cobiça que se nega como tal e se afirma como repulsa. O invejoso recusa a si mesmo os bens que cobiça, por julgar que não os merece, e, quanto mais os ama, mais se odeia, tentando destruir neles a sua vergonha de amante rejeitado e odiando-se ainda mais por conceder ao objeto de seus tormentos a homenagem do rancor em vez do desprezo autêntico, que não está ao seu alcance, já que depende de superioridade real.

Qualquer que seja a forma de dissimulação, a inveja essencial, primordial, tem sempre por objeto bens espirituais, os mais abstratos e impalpáveis, mais aptos a despertar no invejoso aquele sentimento de exclusão irremediável que faz dele, em vida, um condenado do inferno. Riqueza e poder nunca são tão distantes, tão misteriosos quanto a amizade de Abel com Deus, que leva Caim ao desespero, ou o dom do gênio criador, que humilha as inteligências medíocres mesmo quando bem-sucedidas social e economicamente. Por trás da inveja vulgar há sempre inveja espiritual.

Mas a inveja espiritual muda de motivos conforme os tempos. A época moderna, explica Lionel Trilling em "Beyond Culture" (1964), "é a primeira em que muitos homens aspiram a altas realizações nas artes e, na sua frustração, formam uma classe despossuída, um proletariado do espírito".
Para novos motivos, novas dissimulações. O "proletariado do espírito", dizia Otto Maria Carpeaux em "A Cinza do Purgatório" (1943), é a classe revolucionária por excelência. As ideologias de massa sempre recrutaram o grosso de seus militantes entre os semi-intelectuais ressentidos. Afastados do trabalho manual pela instrução, separados da realização nas letras e nas artes pela mediocridade, que lhes restava? A revolta. Mas uma revolta em nome da inépcia se desmoralizaria no ato. O único que a confessou, com candura suicida, foi o "Sobrinho de Rameau" (1762), personagem de Denis Diderot, tipo propositadamente irreal, concebido para dizer em voz alta o que ninguém diria.

As ideologias de massa sempre recrutaram o grosso de seus militantes entre os semi-intelectuais ressentidos


Como que advertidos por essa cruel caricatura, os demais notaram que era preciso a camuflagem de um pretexto edificante. Para isso serviram os pobres. A facilidade com que todo revolucionário derrama lágrimas de piedade por eles enquanto luta pelo poder, passando a oprimi-los tão logo vitorioso, só tem uma explicação: o que o comovia não era o sofrimento material deles, mas o seu próprio sofrimento psíquico. Os pobres são o espelho deformante em que o intelectual ativista falseia os motivos da sua conduta. E é o próprio drama interior da inveja espiritual que dá ao seu discurso aquela hipnótica intensidade emocional que W. B. Yeats notava nos apóstolos do pior (v. "The Second Coming" e "The Leaders of the Crowd", 1921). Nenhum sentimento autêntico se expressa com furor comparável ao da encenação histérica.

Por ironia, o que deu origem ao "grand guignol" das revoluções modernas não foi a exclusão, mas a inclusão: foi quando as portas das atividades culturais superiores se abriram para a maioria que, fatalmente, o número de frustrados das letras se multiplicou por milhões. A "rebelião das massas" assinalada por José Ortega y Gasset ("La Rebelión de las Masas", 1928) não consistia na ascensão das multidões à cultura superior, mas na concomitante impossibilidade de democratizar o gênio. A inveja resultante tornava odiosos os próprios bens recém-conquistados, tanto mais inacessíveis às almas quanto mais democratizados no mundo: daí o clamor geral contra a "cultura de elite", justamente no momento em que ela já não era privilégio da elite.

Ortega, de maneira tão injusta quanto compreensível, foi por isso acusado de elitista. Mas Eric Hoffer, operário elevado por mérito próprio ao nível de grande intelectual, também escreveu páginas penetrantes sobre a psicologia dos ativistas, "pseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose (...) Vivendo vidas estéreis e inúteis, não possuem autoconfiança e auto-respeito e anseiam pela ilusão de peso e importância" ("The Ordeal of Change", 1952).

Por isso, leitores, não estranhem quando virem as lideranças dos "movimentos sociais" repletas de cidadãos de classe média e alta diplomados pelas universidades mais caras, como é o caso do próprio sr. João Pedro Stedile, economista da PUC-RS.
Se esses movimentos fossem autenticamente de pobres, eles se contentariam com o atendimento de suas reivindicações nominais: um pedaço de terra, uma casa, ferramentas de trabalho. Mas o vazio no coração do intelectual ativista, o buraco negro da inveja espiritual, é tão profundo quanto o abismo do inferno. Nem a Terra inteira pode preenchê-lo. 

Por isso a demanda razoável dos bens mais simples da vida, esperança inicial dos liderados, acaba sempre se ampliando, por obra dos líderes, na exigência louca de uma transformação total da realidade, de uma mutação revolucionária do mundo. E, no caos das revoluções, as esperanças dos pobres acabam sempre sacrificadas à glória dos intelectuais ativistas.


Olavo de Carvalho, 56, jornalista e ensaísta, é autor de "O Jardim das Aflições" (É Realizações), entre outros livros.

Obs.: foto de Aroldo Vieira de Souza.

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