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quinta-feira, 15 de outubro de 2015

"Esquecer a gramática", escrito por Rubem Alves


. O aprendido é aquilo que fica depois que o esquecimento fez o seu trabalho.

. A memória não carrega peso inútil em suas malas. Viaja leve. Leva sempre duas malas. Numa estão os objectos úteis. Noutra estão os objectos que dão prazer.


. Um homem que, desejoso de montar uma oficina, comprasse todas as ferramentas que existem, seria considerado um tolo. Uma oficina se monta com ferramentas que vão ser usadas. Mas as escolas querem que os alunos carreguem ferramentas que nunca serão usadas. E depois se queixam de que elas são abandonadas.... Prova de inteligência não é possuir todas as ferramentas. É possuir as ferramentas de que se vai necessitar. Sabedoria oriental: «O tolo soma ferramentas. O sábio diminui as ferramentas». O importante não é ter. É saber onde encontrar. 


. É preciso distinguir «escolarização» de «educação». Nas escolas as crianças são submetidas ao «jugo» dos saberes impostos de cima: os programas. «Jugo» é canga. No Brasil fala-se mesmo em «grade curricular». «Grade», coisa de carcereiro. A educação segue o caminho inverso: começa não com os programas mas com a criança que vive seu momento presente. Saberes que permanecem não são impostos. Eles crescem da vida. Dizia Nietzsche: «Aquele que é um mestre, realmente um mestre, leva as coisas a sério - inclusive ele mesmo - somente em relação aos seus alunos. »


. A palavra amor se tornou maldita entre os educadores. Envergonham-se de que a educação seja coisa do amor - piegas. Mas o amor - Platão, Nietzsche e Freud o sabiam - nada tem de piegas. O amor marca o impreciso e forte círculo de prazer que liga o corpo aos objectos. Sem o amor tudo nos seria indiferente – indigno de ser aprendido, inclusive a ciência. Não teríamos sentido de direcção ou não teríamos prioridades. 



. Suspeito que nossas escolas ensinem com muita precisão a ciência de comprar as passagens e arrumar as malas. Mas tenho dúvidas que ensinem aos alunos a arte de ver enquanto viajam.
. Quando minha filha sofria se preparando para os exames de ingresso nas universidades (vestibulares), tendo de memorizar informações que iam das causas da Guerra dos 100 Anos a problemas de cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos, eu lhe dizia, como consolo: «Eu lhe juro, minha filha, que dois meses depois dos vestibulares você terá esquecido tudo isso.» Há um esquecimento que deriva da inteligência.
. Água fervendo, espagueti cozinhando. Nenhum cozinheiro seria tolo de levar a água à mesa. O que importa é o espagueti. Para isso existe o escorredor de macarrão: para deixar passar o que não vai ser comido. A memória é um escorredor de macarrão: o que não vai ser comido, ela esquece.
. Há pessoas que não esquecem nada: memória perfeita. Geralmente esse fenómeno se observa em idiotas.
. Depois do sofrimento dos vestibulares vem o vómito e a diarreia: o esquecimento. Expulsão das comidas não digeridas. Não por falta de memória ou inteligência curta. A memória esquece porque quer esquecer.
. Se o conhecimento científico de anatomia fosse condição para se fazer amor, os professores de anatomia seriam amantes insuperáveis. Se o conhecimento académico da gramática fosse condição para se fazer literatura, os gramáticos seria escritores insuperáveis.
. Não me consta que o Kamasutra tenha sido escrito por um professor de anatomia. Não conheço gramático que tenha feito literatura. Gramática se faz com palavras mortas. Literatura se faz com palavras vivas. Para se fazer amor com os livros é preciso se esquecer da gramática e aprender a música das palavras. Literatura é música.
. Inventaram um crime atroz, que deveria ser punido: fazer resumo das obras literárias que vão cair nos exames de ingresso às universidades para que o aluno não tenha de lê-las inteiras! Ah! Queria mesmo é ver o resumo que fariam das escrituras do Mia Couto...
. Gramática é necrotério, sala de anatomia, palavras mortas sob o bisturi da análise. Literatura são as palavras vivas, fazendo o que elas bem desejam, à revelia de quem escreve. Mas aí eu pergunto: Quem sentirá vontade de fazer amor fazendo a necrópsia da amada morta?
. Muitos pensam que o problema da educação é a falta de recursos. É verdade que há falta de recursos. É mentira que se eles vierem a existir a educação vai ficar inteligente. Cozinheiro que faz comida ruim não se transforma em cozinheiro que faz comida boa pela compra de panelas importadas. Culinária se faz com sonho. Educação se faz com sonho. Os grandes mestres na história da humanidade só tinham, à sua disposição, um recurso: a fala.


Rubem Alves

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