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sábado, 22 de novembro de 2014

Desde quando a palavra é verso? Brincações de palavras com Manoel de Barros



Começamos pela pergunta: desde quando a palavra é verso? Desdobramentos, incandescências palavrais, desvios, dilúvios e aflúvios verbais se fazem presentes numa tentativa de mergulho nesse questionamento. E deixo ainda outra questão que se insere nas entrelinhas do texto: quando nos tornamos poema durante orgias com as palavras? (ih, será que estraguei a surpresa?)


Desde quando a palavra é verso? Desde quando meu nome é pronome dado à alcunha de chamamento? Qual a beleza de uma palavra no rascunho de uma página, a ponto de se tornar canto em boca de poetas?

As tentativas para se dizer o que seja ou não poema são infindáveis. E ainda há a confusão entre poema e poesia para embaralhar ainda mais a situação. Bem, tentando esclarecer essa dúvida – ainda que não seja de vez por todas porque o fim de toda vez só existe na fragilidade do rigor científico –, arrisco: poema é produto (??!!). Explico: uma feitura elaborada na costura entre presença, forma, ritmo, melodia, palavras e, se considerarmos o apelo da tecnologia virtual e visual, o manejo com as várias maneiras de um texto (seja ele verbal ou não verbal) se conformar num constructo poemático, ou seja, que inaugura um mundo a cada leitura. E essa ideia de “produto” diz respeito à terminação “-ma” que, a partir do grego, tem-se ideia de algo feito, um produto.



Agora, o exposto acima só é possível pela poesia, e esta não está restrita à estética. A estética passa longe, principalmente quando perde seu apelo originário-etimológico: aístesis, que, do grego, diz “percepção”. Estética é o modo produtivo-conceitual da estesia, na medida em que esta perde sua força verbal pelo encarceramento conceitual das várias e muitas correntes teóricas. Poesia, então, não é gênero – ainda que assim muito se propague nos mais diversos estudos teóricos –, e sim movimento, ação. Poesia vem do grego poíesis e está presente não só nas manifestações artísticas, mas em todo acontecimento da realidade, pois o real se realiza poeticamente na medida em que nos apresenta a intangível dimensão daquilo que acontece sob a concretude (que concresce, ou seja, “cresce com”) da vida, da presença, da realidade.

Poesia possibilita o poema, pois é o verbo de toda ação. E verbo, por sua vez, não se restringe às categorias gramaticais. Aqui, sob nosso olhar, verbo se reinventa como tudo aquilo que é movimento, portanto, realidade; mais ainda: vida. O poético, podemos dizer, é um trânsito que trafega nas coisas (lembremos os numerosos estudos do filósofo alemão Martin Heidegger sobre a questão da "coisa") e se reluz em paragens e travessias. Mas não nos iludamos ao pretender arrebatar numas poucas frases o sentido do poético, ou a diferença luzidia entre poema e poesia. Ainda que tenhamos o respaldo da etimologia grega, onde poesia diz ação contínua e originária; e poema, um produto dessa ação, considerando respectivamente as terminações –sis (de poíesis) e –ma (de poema), a melhor maneira de se acolher tais (des)entendimentos é com as próprias obras poéticas. Assim, trago abaixo o poema “Experimentando a manhã dos galos”, de Manoel de Barros, onde encontramos uma possibilidade de se pensar essa questão:

… poesias, a poesia é

— é como a boca dos ventos na harpa

nuvem a comer na árvore vazia que desfolha noite

raiz entrando em orvalhos…

os silêncios sem poro

floresta que oculta quem aparece como quem fala desaparece na boca

cigarra que estoura o crepúsculo que a contém

o beijo dos rios aberto nos campos espalmando em álacres os pássaros

— e é livre como um rumo nem desconfiado… (BARROS, 2010, pp. 109-10)



Como num suspiro de vento levantando as saias das mentes corroídas por certezas, esse poema de Manoel de Barros diz muito sobre a artesania poética, embora não abocanhe o título de sumo conceito acerca do fazer poético. E poesia não tem recantos, é puro acontecer nas pálpebras de cada dia. Faz seu ninho nos olhares inventivos de quem se permite trançar lua e sol em pleno entardecer, onde os sumiços são alongados no horizonte de quem se atreve a dilúvios verbais.

No poema, lemos que “a poesia é...” e daí se desdobram uma série de imagens impossíveis de serem retidas na linearidade razoável da razão (e digo isso sem medo de incorrer em redundâncias!), até chegar na liberdade “como um rumo/ nem desconfiado...”. Livre são as palavras em gorjeios semânticos, rumando para a inutilidade que nos fecunda libertos em nossas próprias vozes.

Poeta é aquele, arrisco dizer, que se deixa libertar de si no âmbito verbo-imagético, onde passa a ser o próprio prelúdio de sua escuta, o rumor inocente, devasso, infantil ou lúdico de sua perdição em palavras, imagens e silêncios.

Manoel de Barros foi um grande sabedor de inutilidades, deixando-nos o riso solto de palavras descascadas de duras semânticas. Isso, esses “vareios do dizer” (BARROS, 2010, p. 265. Verso da parte VI do poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”), nos ensina mais da tensão poema/poesia do que qualquer compêndio acadêmico dos consagrados fazeres poéticos, com suas regras, infindas normas... E, voltando à pergunta inicial dessa pequena “proesia”, desde quando a palavra é verso?

Ainda não sei responder e espero nunca saber, pois se em algum dia tal resposta aparecer será o fim dos “vareios do dizer” e “vadiações com as palavras” (Id., p. 451)... Poesia não se explica, é para ser incorporada, como já dizia esse poeta das palavras inventadas!

Referências:

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

HEIDEGGER, Martin. “A coisa”. In: Ensaios e conferências. 2ª ed. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001.



© obvious: http://lounge.obviousmag.org/verbo_inverso/2014/11/desde-quando-a-palavra-e.html#ixzz3JnEidQse

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